“A luta contra o latifúndio ainda é um tabu”, diz diretora do “Lua em Sagitário”
Ainda somos uma minoria na direção audiovisual, assim como em cargos de chefias em quase todas as áreas.
Por Linete Martins.
Em entrevista exclusiva ao Portal Catarinas, a diretora do filme “Lua em Sagitário”, Márcia Paraíso, falou sobre a experiência com a realização do seu primeiro longa, que traz para as telonas um olhar próprio sobre questões da juventude, a relação com a música, expectativas, a descoberta do amor. O filme, que ao mesmo tempo é comprometido e trata de questões muito atuais da conjuntura do país, também tem leveza, música boa, locações em cidades pequeninas do estado. Em cena, um ótimo elenco. Esta semana, Lua estreou nos cinemas de Santa Catarina e, também, neste mês, estará no circuito nacional. E já chega bonito e premiado – recentemente, o filme recebeu Menção Honrosa e Prêmio de Melhor Atriz para Manuela Campagna (que faz a protagonista, Ana) em Festival realizado em Portugal.
CATARINAS – Márcia, conte um pouco sobre o desafio de fazer um longa, com orçamento enxuto, e com uma temática bem diferente do que estamos acostumados a ver no cinema…
Márcia Paraíso – Tive apenas uma experiência na direção de um filme de ficção: em 1995, quando codirigi o curta metragem “Livre”. A partir de 96, comecei meu trabalho na realização de documentários, com o “ocupar, resistir, produzir”, onde registrava a voz das mulheres no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O tema da questão agrária e da cultura de raiz são recorrentes no meu trabalho. É o lugar onde eu me sinto bem, é o tema que me interessa, que me envolve, que me movimenta, que me dá vontade de dividir o meu olhar com outras pessoas, especialmente porque penso que há muito preconceito em relação à luta pela terra e em relação a quaisquer movimentos sociais organizados que lutem por igualdade. Até mesmo dentro da intelectualidade brasileira, a luta contra o latifúndio é ainda um tabu. Realizei outros filmes que abordavam a questão. Mas eu caminhava com o desafio de levar para a dramaturgia a questão da terra.
Queria fazer um filme sobre o tema que dialogasse com os jovens da cidade. Que os jovens da cidade percebessem que os seus sentimentos, inseguranças e incertezas são os mesmos de muitos jovens, de todo o Brasil.
Em 2013, ganhamos o prêmio Ibermedia, que funciona como um pontapé inicial para produção de projetos de filmes iberoamericanos. A premiação, no valor de 80 mil dólares, é inferior ao custo de realização de um filme de longa-metragem de ficção. Tentamos, regionalmente e nacionalmente, levantar mais recursos, o que não aconteceu. Muitos distribuidores e possíveis patrocinadores não acreditavam no filme, ou se o público poderia ter qualquer interesse, já que não se tratava de uma história urbana, com locações distantes das grandes cidades. Peitamos iniciar a filmagem no final de 2014 com o recurso que tínhamos do Prêmio, mais uma parte do recurso da coprodutora Argentina. Ao finalizarmos a primeira etapa de filmagem, veio a resposta da Ancine, a aprovação no Fundo Setorial do Audiovisual, Prodecine 4, que viabilizou a continuidade das filmagens. Penso que o Lua era um filme que tinha que ser feito. Quando existe muita força de vontade e um entendimento de toda a equipe sobre a necessidade do projeto sair do papel, a concretização acontece, independente do orçamento. Claro que é muito difícil realizarmos um filme com limitação de gastos, tendo que negociar cada item. Mas era o que tínhamos. E eu faria tudo de novo.
CATARINAS – O filme fala do cotidiano de jovens de cidades pequenas do interior de SC e também traz questões da política, do momento atual brasileiro. Mesmo assim, é leve. Como foi o processo de construção desse roteiro?
Márcia Paraíso – Apesar de eu ter nascido no Rio de Janeiro eu não me sinto uma pessoa urbana. Me sinto completamente à vontade no campo. Minha opção de vida em Florianópolis foi muito pelo fato de poder viver em uma casa, no sul da ilha, integrada à natureza, poder pisar na terra quando me dá vontade. Convidei o roteirista e diretor Will Martins, 20 anos mais jovem que eu, para trabalharmos juntos na escritura do roteiro.
Eu tinha já o argumento traçado, a ideia, um caminho para onde íamos. Mas tinha uma forte preocupação em realizar algo que não fosse panfletário, que não levantasse bandeiras de forma explícita, que comunicasse com a juventude.
O desafio era realizar um filme que fosse entretenimento, que chegasse aos jovens não só da zona rural e das cidades de interior, mas que gerasse uma identificação com jovens das cidades, seja no Brasil ou no mundo. Junto com o Will, parceiro de outros projetos, fomos dando forma a um primeiro tratamento do roteiro onde o que contava era a história de Ana, em sua viagem de transformação. O fato dela se apaixonar e namorar um rapaz do MST era irrelevante naquele momento. A gente seguiu uma linha de desenvolvimento de que era uma história de amor jovem, um road movie. Só que Ana se apaixona por um assentado da reforma agrária. Ele não usa camiseta do Che Guevara, não tá com a foice e o martelo, ele é um jovem que curte rock e astrologia. É um jovem como qualquer jovem apaixonado. Só que, como na construção de qualquer personagem/indivíduo, o Murilo traz muitas questões implícitas à sua história de lutas. E, de forma muito sutil e especial, essa sua trajetória, vivência e formação no MST, são determinantes para o desenrolar da trama. Depois de uma primeira redação do roteiro, submeti o texto a muitas mãos, inclusive de jovens que vivem no oeste, de jovens assentados. Muitos amigos também leram. Fui filtrando as sugestões até chegar no roteiro final, que taí.
Leia mais
- Qual o legado de Marta para o esporte brasileiro?
- Filme Levante mostra como o aborto faz parte do cotidiano
- Construção da Casa de Passagem Indígena é adiada pela prefeitura de Florianópolis
- Andrielli é submetida à laqueadura sem seu consentimento
- Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia
CATARINAS – Recentemente o filme foi premiado em Portugal, ganhando bastante visibilidade. Qual a sua expectativa em relação ao público brasileiro?
Márcia Paraíso – Portugal foi importante pra mim especialmente porque me deu uma segurança em relação ao entendimento do público sobre o filme. Foi a primeira exibição pública do Lua, e eu tinha receio que o filme fosse incompreendido – que não emocionasse. O Festival de Avanca, que existe há 20 anos, agrega uma conferência internacional sobre audiovisual e muitas exibições paralelas, além dos longas. Possui um público forte de pesquisadores e tem em sua essência um público adulto, fora da faixa etária do Lua. Eu queria jovens na plateia e saí convidando os voluntários que vêm de várias partes da Europa pra trabalharem na organização do Festival. Eles foram. Tinham jovens da Bélgica, da Rússia, da Itália, de Portugal, do Reino Unido. Foi muito emocionante. Quando o filme acabou, todos correram pra mim, me agradeceram. Acho que tem uma coisa que é universal no filme, que é uma forma de revelar o conflito do jovem além do que a gente costuma ver na TV, no cinema. Tenho uma grande expectativa em relação ao lançamento no Brasil, é claro. Quero muito que os jovens e o público em geral assistam ao Lua e mergulhem na aventura de amor e de transformação da Ana. Porque eu acho que o amor carrega em si, pelo sentimento, essa força da transformação. E isso acontece com todo mundo que ama, em qualquer lugar do mundo e com qualquer idade.
CATARINAS – Uma mulher na direção e personagens fortes de mulheres nas telas. Como é o universo feminino no cinema, por tanto tempo considerado um espaço masculino, pelo menos na direção?
MÁRCIA PARAÍSO – Ainda somos uma minoria na direção audiovisual, assim como em cargos de chefias em quase todas as áreas. O mundo do cinema, apesar de muitos pensarem que é um universo a parte, glamouroso, especial, não se difere de qualquer meio profissional. Sendo assim, existe machismo, existe assédio, existe homofobia, existem preconceitos de todas as espécies. Na minha trajetória profissional, atuei em diversas frentes, trabalhei com muitas pessoas, tive chefes mulheres, tive chefes homens. Não imaginava que chegaria a dirigir um longa-metragem, mas isso aconteceu, com muito esforço, trabalho, persistência e, claro – sorte. Acho que as mulheres têm sempre que provar o que pensam, têm que explicar e insistir nos seus pontos de vista. É cansativo às vezes esse peso de termos que provar que estamos seguras de nossas opções. Eu tracei um rumo e fui, de peito aberto.
Ouvi de alguns que por vezes fui autoritária, de forma bem semelhante ao que ouvimos em relação à postura da Presidenta Dilma Roussef. Mas é aquela história, a sociedade espera da mulher um comportamento, uma forma de dizer, de ser, dentro de uma caixinha, associada ao que é aceito enquanto comportamento feminino. Mas não somos iguais. E por muitas vezes, termos que nos posicionar soa como braveza.
CATARINAS – No elenco tem a presença marcante de Elke Maravilha, último trabalho da atriz. O que representa essa participação neste momento?
Márcia Paraíso – Eu sempre tive muita admiração pela Elke – ela é quase que uma unanimidade, entre muitas gerações que conviveram com sua imagem na TV, nos cinemas, nas passarelas. Mas há uma nova geração que desconhece Elke Maravilha. Queria prestar uma homenagem a ela, trazê-la para um filme jovem, assim como o Serguei.
Como o Lua é um filme que fala de preconceito, a Elke para mim representa um ícone em diversas lutas contra o preconceito. Sua partida fez com que essa vontade – de prestar uma homenagem – de fato funcionasse como tal. Acabou que o Lua foi a última aparição de Elke nas telonas. Eu me sinto uma privilegiada de tê-la conhecido de perto, de tê-la dirigido. Uma figura alto astral, de energia contagiante. Com certeza, uma parte dela, de suas prosas, de seus conhecimentos e experiências de vida, segue comigo e com toda a equipe.
CATARINAS – Como alguém que produz cultura, como você vê o atual momento político brasileiro? E o papel das mulheres nesse cenário?
Márcia Paraíso – Se existe um setor que se revolucionou a partir de 2003, foi a Cultura. Antes disso o Ministério era uma alegoria, um departamento para organizar coquetéis, pagar passagens aéreas sem critérios transparentes e distribuir dinheiro entre os mesmos. O Gilberto Gil e sua equipe, tendo Orlando Sena à frente da Secretaria do Audiovisual, conseguiram abraçar a cultura como um todo, incluindo com visibilidade a cultura de raiz, criando pontos de cultura esparramados por todo o país, atendendo a uma demanda que vinha de fora pra dentro, não a partir de um entendimento restrito de cultura. Os editais de produção audiovisual redistribuíram os recursos da Cultura, até então muito centrados no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre. O Brasil começou a ver Pernambuco, Ceará, Bahia, na telona. Nessa democratização da cultura – foram criados editais gerais e editais específicos para mulheres, para negros, para indígenas. O resultado foi que nós mulheres conseguimos ter acesso aos recursos, de forma transparente, concorrendo entre iguais. Houve também um fortalecimento na nossa formação, com o surgimento de cursos de cinema fora do eixo de sempre. O Golpe em curso compromete todas as conquistas.
Primeiro, veio a notícia do fim do Ministério da Cultura. Depois o governo voltou atrás, mas recriando um ministério pra “gringo ver”. Não sabemos o que nos aguarda, mas pelos cortes orçamentários e pelo perfil conservador do novo Ministro, temos as piores expectativas.
CATARINAS – Antes do lançamento do filme você voltou a algumas locações, especialmente assentamentos do Movimento Sem Terra. Como foi essa experiência de voltar e apresentar a eles o filme pronto? Márcia Paraíso – Uma preocupação que nós tínhamos desde o princípio, e isso não só com o Lua, mas também com outros trabalhos que realizamos, é de retornarmos aos locais onde filmamos. De termos esse compromisso com quem participou, de dar a chance para que eles se vejam antes do público em geral, antes do público comercial. Por isso elegemos os assentamentos de Abelardo Luz – Zé Maria – e Conquista na Fronteira – Dionísio Cerqueira – como locais de pré estreia. Foi muito emocionante ver como os assentados reagiram, aplaudiram, agradeceram a mim, a toda a equipe. Foram mais de 1000 assentados nos assistindo.
Acho que a minha experiência como documentarista, registrando a questão agrária, de estar perto dos personagens reais, me deu uma visão de dentro, do ser do MST, do ser assentado, descolada dos estereótipos de quem “escreve sobre”. Eu tentei escrever junto.
Sempre refleti que os documentários sobre o movimento e sobre as questões de luta pela terra comunicavam entre os mesmos. O Lua é uma tentativa de ir além, de comunicar com quem não tem ideia do que seja o movimento, ou com quem já construiu uma ideia a partir do que a mídia reproduz.