Aos 51 anos, Sonia Maria de Jesus tornou-se o símbolo da resistência feminista e antirracista deste 8 de março em Santa Catarina, levando manifestantes a marcharem pelo centro de Florianópolis, na última segunda-feira (10). Mulher negra e surda mantida em regime de escravidão moderna por 40 anos, Sonia foi tirada de sua casa em São Paulo por volta de seus 9 anos. Desde então, trabalhou na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz de Borba, sem contato com a família. Sua mãe morreu em 2016 sem reencontrar a filha que tanto procurou.
A concentração para a Marcha, realizada pela frente feminista 8M, foi marcada por uma tenda com cadeiras dispostas em círculo, estrategicamente posicionada em frente ao Tribunal de Justiça e à Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). Pouco antes do início da caminhada, parte dos manifestantes tentou pendurar aventais com os dizeres “Sonia Livre” nas grades do TJSC. A ação, no entanto, foi rapidamente interrompida pelos seguranças do local.
“Nós estamos preocupadas. Se nós perdermos, se não conseguirmos resgatar Sonia, vamos voltar à escravidão”, disse Lúcia Helena Conceição de Souza, durante o ato, em nome da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).
A adoção do mote pelo 8M representou um marco decisivo para a Campanha Sonia Livre, como destacou, ao Catarinas, Luciana Xavier Sans de Carvalho, Auditora Fiscal do Trabalho e Coordenadora Estadual dos Projetos de Combate ao Trabalho Infantil e Inclusão de Pessoas com Deficiência no Mundo do Trabalho. “A incorporação da causa ao movimento do 8M ampliou o alcance da campanha, com pedidos pela liberdade de Sonia ecoando não apenas em Santa Catarina, mas também em diversas cidades do Brasil”, ressaltou Luciana, que atuou no pós-resgate de Sonia.
Entre 1995 e 2024, mais de 65 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão no Brasil, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Em 1995, o país criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, substituído em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
Com relação ao perfil das vítimas até hoje, a soma de pretos e pardos representa 66,8% de todos os resgates. Além disso, analfabetos concentram 25,5% do total, enquanto aqueles que possuem até o 5º ano incompleto são 32,8%.
“A história do Brasil se faz pela mão de mulheres negras. Não avançaremos sem lutar contra o racismo”, afirmou Luciana de Freitas Silveira, militante do Movimento Negro Unificado (MNU) de Santa Catarina, durante o ato.
A ex-coordenadora estadual e nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), Vanda Pinedo, concordou e se diz insatisfeita contra a falta de ação dos que se dizem “antirracistas”. “Aqueles que querem o protagonismo do povo negro, que mostrem a sua cara, que mostrem o seu trabalho, que mostre suas ações, porque só falar não tá me convencendo mais e eu quero ser convencida”, disse Pinedo.
Ainda durante a concentração, Sônia Coelho, liderança da Marcha Mundial das Mulheres, apontou que o sistema judiciário do estado é cúmplice da situação de Sonia Maria de Jesus. “Essa justiça aqui de Santa Catarina frequentemente mostra de que lado ela está”. Em seguida, Coelho relembrou o caso da menina estuprada em Florianópolis que teve o direito ao aborto legal negado.
Iniciado na rua em frente ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o ato recebeu apoio da Guarda Civil para coordenar alterações no trânsito. Neste ano, diferentemente de 2024, a marcha não foi dividida por alas temáticas. A pauta principal era a liberdade de Sônia. A marcha passou em frente ao TJSC e circulou pelas principais ruas do centro de Florianópolis, circundando o Mercado Público e o Terminal Cidade, finalizando em frente ao Terminal de Integração do Centro.
No Dia Internacional das Mulheres, a frente 8M realizou um ato preparatório para a marcha, iniciando às 10h com uma agitação feminista que incluiu pintura de faixas, ensaios de bateria e distribuição de panfletos. Ao meio-dia, os manifestantes partiram em um cortejo pelo centro da cidade, entoando palavras de ordem como “A nossa voz já ecoou, é Sônia livre do desembargador” e “Sônia livre, com direitos, igualdade, chega de impunidade”.
A decisão de realizar a marcha em uma segunda-feira foi estratégica, como explica Izabele Cristini da Silva, integrante do movimento feminista Alicerce. A proposta, fruto de um debate interno, teve como objetivo ampliar a visibilidade e o impacto da pauta, aproveitando o horário comercial para chamar a atenção da sociedade e das instituições.
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Vanda Pinedo, ex-coordenadora estadual e nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), explicou que o ato, além de trazer as pautas históricas dos movimentos do 8 de março, traz a denúncia sobre a escravidão moderna. “Borba é uma pessoa irregular e está escondido atrás das capas encouraçadas dos magistrados de Santa Catarina”, disse.
Irmão de Sonia reconhece importância da mobilização
“Infelizmente o nosso maior inimigo passou a ser a própria justiça”, afirmou Marcelo de Jesus, 38 anos, irmão de Sonia, em entrevista ao Catarinas. Ele acredita que a mobilização pode contribuir para que o caso não caia no esquecimento. “Um movimento como esse, em frente ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pode causar algum constrangimento ao desembargador. Principalmente neste dia, que é um marco histórico, contribui para que o caso permaneça vivo”, aponta.
Para Marcelo, o maior desafio é garantir a libertação de sua irmã por meio da Justiça, um desfecho que poderia ter um impacto significativo em casos semelhantes. “Eu acho que não só pelo caso da Sonia, mas também é um momento de conscientização e reflexão por todos os trabalhadores que têm sido expostos a condições de trabalho análogas à escravidão”.
Ele destaca a esperança de que a data seja um marco na luta pela liberdade de Sonia e pela garantia de seus direitos.
“Agradecemos toda a mobilização do 8M. Esperamos que este 8 de Março também seja um marco na história da Sonia, pela sua liberdade e garantia dos seus direitos como mulher, cidadã e trabalhadora”.
“Parte da família”
Investigações anteriores demonstraram que Borba busca o reconhecimento de paternidade socioafetiva da doméstica e que a considera “parte da família”. Se concretizada, a adoção legal forneceria um tipo de respaldo para os anos que Sônia passou sem salário, moradia adequada e acesso a cuidados médicos. Ela também nunca foi alfabetizada nem aprendeu a Língua Brasileira de Sinais (Libras), apesar de ser surda.
Vanda Pinedo contesta o argumento utilizado por Borba. “Eu gosto sempre de saudar a família de Sonia, porque isso significa que ela tem uma família. Sonia não é da família do escravizador. Ninguém pode ser de uma família que tenta ser seu dono”.
A vereadora Carla Ayres (PT-SC) manifestou sua crítica em relação às decisões da justiça que levaram Sonia de volta à casa do desembargador. “Esse caso deveria estar nítido para todos os catarinenses para que a gente pudesse dialogar com o conjunto da população dentro e fora do nosso estado. Há um conluio entre o relator no STF, o relator no CNJ e o processo no TJ de Santa Catarina sobre essa adoção que se busca”.
No período em que ocupou a cadeira de deputada federal, Ayres propôs o Projeto de Lei 3351/2024, denominado Lei Sonia Maria de Jesus. O texto propõe diretrizes para o atendimento das trabalhadoras resgatadas em situação análoga à escravidão em ambiente doméstico e tráfico de pessoas. O projeto também sugere medidas para a ressocialização e a garantia de reparação integral das vítimas.
Além disso, a vereadora elaborou um abaixo-assinado para acelerar a votação da lei Sonia Maria de Jesus. Já uma petição pública da campanha pede a liberdade imediata de Sonia.
A parlamentar também expressou preocupação com a lentidão na tramitação do habeas corpus impetrado em favor de Sonia pela Defensoria Pública da União (DPU) em 2023, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). O pedido é uma contestação à decisão do ministro Campbel Marques, que autorizou o retorno da doméstica à casa do desembargador. Quando foi resgatada, antes de ser “devolvida”, descobriu-se que Sônia estava com condições de saúde deterioradas e um tumor no útero. “É caso de vida ou morte”, diz a vereadora.
Cirene Cândido, gestora ambiental e promotora do projeto Economia Solidária, iniciou sua fala com um coro direcionado ao TJSC de “Borba, você é racista”. Ela também contou durante a concentração que se identifica muito com a história de Sonia. Quando tinha 9 anos, uma família tentou “adotá-la”. Sua mãe, que morava em uma área rural do Paraná, teve que se deslocar até a cidade de Assaí para buscá-la.
Cândido possui uma filha, hoje já adulta, que também sofreu o mesmo risco quando criança. “Quando minha filha nasceu, uma outra mulher branca entrou na minha casa, na favela, na miséria, porque essa mulher branca teria condição de dar uma vida melhor para ela. Minha filha hoje tem 26 anos, caminha com as suas próprias pernas e está na Irlanda, andando pela Europa livre”.
Entenda o caso
Sonia foi resgatada em junho de 2023 pelo Ministério do Trabalho. Entretanto, em agosto daquele mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou a decisão de resgate e Sonia retornou à casa do desembargador, onde ainda se encontra. O Ministério Público do Trabalho (MPT) aderiu em 2024 a uma campanha junto com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e movimentos sociais em defesa da liberdade de Sonia. A campanha, junto dos movimentos sociais, tem expectativa que o caso seja avaliado pelo STF ainda este ano.