No imaginário popular, ao ouvir falar sobre violência contra as mulheres, dificilmente a primeira imagem a vir a tona são as violências psicológicas. O pensamento inicial pode se voltar para situações de agressões físicas ou sexuais, mas, muitas vezes, essas agressões são descredibilizadas. Usa-se o imaginário da “mulher de bandido” ou a dicotomia “madonna-prostituta”, tropos cinematográficos que contrastam a mulher que segue valores tradicionais com a femme fatale. Dessa forma, busca-se invalidar o sofrimento das mulheres nas mãos de seus “parceiros”.

Embora saibamos que violências também existem em relações homoafetivas, cito parceiros, no masculino, porque é dos homens que parte a maior parte dessas violências. Pudera: a noção de que mulheres são inferiores aos homens é milenar, e a de que eles têm não só o direito, mas o dever de violentá-las quando não cumprem seus caprichos já foi até determinada por lei: nas Ordenações Filipinas era permitido ao marido matar sua esposa.

Embora legalmente tenhamos avançado na proteção aos direitos das mulheres, no aspecto cultural ainda temos muito a avançar.

A naturalização da violência contra as mulheres se escancara na cultura brasileira – na mídia, em fóruns de internet, em casos de feminicídio e na própria política, onde falas e posturas agressivas às mulheres são toleradas e, por vezes, celebradas.

A violência doméstica é, por natureza, privada. Recentemente, um relatório da ONU determinou o que muitas feministas já sabiam: a casa é o local mais perigoso para as mulheres. E essa esfera é onde fica difícil encontrar apoio – mais ainda porque nem toda violência deixa marcas visíveis.

Se a naturalização do fenômeno da violência contra as mulheres é tão corriqueira na esfera pública e no mundo online, como fazem as mulheres para navegar as esferas afetivas onde frequentemente são expostas a agressões? 

Se todas as violências fatais contra as mulheres iniciam na violência psicológica – e se essa sozinha já causa suficientes danos à saúde física e psicológica das mulheres, tornando-se um verdadeiro problema de saúde pública – como os tomadores de decisão podem enxergá-la a tempo, criar políticas públicas que a previnam e amparam eventuais vítimas?

Nesse artigo, falaremos sobre alguns sinais de violência psicológica, essa forma insidiosa de agressão que, muitas vezes, passa despercebida. Nesse sentido, o objetivo é apoiar a população e gestores públicos na compreensão do problema.  Afinal, é só compreendendo-o que é possível agir de forma certeira.

Sinais de violência psicológica nas relações afetivas

Pesquisadores desenharam o modelo do ciclo do relacionamento abusivo para melhor ilustrar o que acontece numa relação em que a violência psicológica está presente.

Geralmente, essas relações se iniciam por meio de uma espécie de conto de fadas, onde a vítima é bombardeada de atenção e promessas de amor. Essa tática foi nomeada de “love bombing” e costuma funcionar principalmente devido às questões sociais, como o estado de privação de afeto e sobrecarga que a maior parte das mulheres se encontram.

Além disso, os aspectos culturais desempenham um papel importante, já que meninas são ensinadas desde cedo a idealizar um modelo de amor romântico, frequentemente associado a estereótipos de gênero.

Após essa primeira fase, há o isolamento gradual da vítima daqueles que a amam, como amigos e família, podendo ser seguida de momentos de insultos disfarçados de elogios e uma fase de crescente tensão. Nessa fase, a vítima se sente como se estivesse “pisando em ovos” – e a escalada de tensão cresce até que aconteça uma explosão violenta – seja em formato de violência verbal, patrimonial, sexual ou física.

Seguindo-se a essa explosão, a próxima fase é de arrependimento, pedido de desculpas, promessas de que o agressor irá melhorar. Nessa fase, como a vítima já está isolada de sua família e amigos, e o agressor volta a se comportar de forma encantadora, semelhante ao início do relacionamento, há uma tendência de que a relação continue e entre na fase de “lua de mel”. Contudo, essa fase é temporária e logo é seguida pelo aumento da tensão, a explosão de violência e o ciclo se reinicia.

Nesse sentido, em relações afetivas a violência psicológica pode se manifestar por meio de comportamentos como controle excessivo, manipulação emocional, desvalorização constante, ameaças veladas, isolamento de amigos e familiares, entre outros.

Muitas vezes, a parceira sente-se culpada ou confusa, acreditando que suas reações são exageradas, o que dificulta ainda mais a identificação do abuso.

Sinais de violência psicológica no trabalho

No ambiente de trabalho, a violência psicológica pode se manifestar de diferentes formas. Ela pode ocorrer horizontalmente, no formato de bullying de colegas de mesmo nível hierárquico, ou hierarquicamente, quando superiores realizam práticas de assédio ou violência psicológica com as vítimas.

Não à toa, ao acontecerem contra mulheres costumam vir carregados dos estereótipos das expectativas de gênero e, muitas vezes, raça e sexualidade, sendo comum em profissões feminizadas, como a enfermagem ou contra trabalhadoras domésticas.

A violência psicológica no trabalho produz efeitos devastadores na autoestima das vítimas, que sentem-se muitas vezes impossibilitadas de saírem da situação, dado que o trabalho é a sua fonte de subsistência, e o medo de perda do emprego muitas vezes faz com que a situação seja mais difícil de ser superada.

Algumas das formas pelas quais a violência psicológica se manifesta incluem o assédio moral, onde as mulheres são alvos de críticas constantes, desvalorização de seu trabalho ou até exclusão social; o assédio sexual, quando há sugestões ou avanços sexuais indesejados; e a exposição a gritos e psicoterror, entre outros.

Esse tipo de comportamento gera um clima hostil e pode afetar a autoestima da vítima, tornando-a hesitante em buscar ajuda ou denunciar a situação.

Sinais de violência psicológica nas comunidades de fé

No livro “Cultos: a linguagem do fanatismo“, Amanda Montell aborda como a linguagem de seitas é usada para facilitar a violência psicológica contra mulheres em comunidades de fé.

Nele, a autora explica como conceitos como submissão feminina, autorresponsabilização, perdão e até a ideia de amor são manipulados por alguns líderes de religiões para praticar a violência psicológica contra mulheres.

Esse tipo de violência, muitas vezes semelhante a um relacionamento abusivo, frequentemente leva a outros tipos de violência, especialmente a patrimonial.

Para além da violência praticada pelos próprios líderes de comunidades de fé — que frequentemente tem um impacto maior na vítima, pois é realizada sob a justificativa de autoridade divina — também pode haver a naturalização da violência cometida por terceiros, em nome da manutenção da comunidade de fé, de valores que prezam por papéis de gênero tradicionais ou simplesmente da falta de preparo dos líderes dessas comunidades para lidar com essa questão

Sinais de Violência Psicológica na Internet

A violência psicológica na internet é difícil de mensurar, pois envolve interações algorítmicas em plataformas digitais, ações de grupos organizados (como incels ou redpills), comentários privados e pode ser exacerbada por redes de deep fake ou até mesmo por crimes organizados que operam na deep web.

Entendendo a complexidade do problema, num primeiro momento focaremos na violência que acontece nas plataformas, em especial contra defensoras de direitos humanos, mulheres e outros representantes de minorias.

Nesses ambientes, grupos conservadores — e até indivíduos que se sentem protegidos pelo anonimato ou pela ausência de reações diretas, como ocorreria na vida real — costumam se organizar para realizar uma forma de assédio moral contra quem eles querem ter como alvo da vez.

A pesquisadora Lola Aronovich, desde 2013, sofre assédio digital de um grupo organizado de incels, que já extrapolou a esfera do online e passou para ameaças reais de morte e violência contra sua família.

Outras mulheres feministas relatam com frequência um tipo de assédio que ocorre nos comentários, geralmente em massa e seguido de denúncias de suas contas, para que seus pensamentos progressistas sejam literalmente derrubados da plataforma.

Com todas suas nuances, dentro da esfera digital podemos dizer que a violência psicológica se manifesta através do cyberbullying, stalking ou do uso de redes sociais para controle e humilhação.

As vítimas podem ser alvo de comentários depreciativos, ameaças e perseguições, muitas vezes, sem que outros percebam a gravidade da situação.

Sinais de violência psicológica na política

Num Brasil com representação feminina muito abaixo da média da América Latina, é comum que mulheres que ousam ocupar os espaços da política institucional passem a ser vítimas de diversos tipos de assédio, incluindo ameaças às suas vidas e de suas famílias. Em alguns casos, essas ameaças resultam em homicídios, como no assassinato de Marielle Franco, ou em tentativas de assassinato, como ocorreu com a vereadora Tainá de Paula no Rio de Janeiro. 

A violência psicológica contra mulheres na política já atingiu patamares absurdos no Brasil, por exemplo a campanha difamatória contra a ex-presidenta Dilma Rousseff e a fala do então deputado Jair Bolsonaro sobre “não estupro porque não merece”, além do assédio sofrido pela ex-deputada Manuela d’Ávila.

Após séculos de falta de representatividade feminina na política, os avanços de ocupação dos espaços nas últimas décadas foram tímidos e tomados por backlash [retaliação negativa].

De forma resumida, no âmbito político, a violência psicológica se tornou comum e pode se manifestar através de discursos que deslegitimam a voz das mulheres, promovendo a ideia de que suas opiniões são irrelevantes. A misoginia nas políticas públicas e na representação política pode criar um ambiente hostil, onde as mulheres se sentem inseguras e subestimadas, dificultando sua participação plena na sociedade.


Este texto faz parte da Cartilha Violência Psicológica Contra a Mulher, produzida pelas organizações da Aliança Pelas Mulheres (APM).

Sobre a APM 

A Aliança Pelas Mulheres (APM) é uma coalizão de organizações que atua na promoção dos direitos das mulheres através de advocacy, eventos, pesquisas e a promoção de conscientização sobre violência de gênero.

A coalizão nasce do entendimento que as violências contra as mulheres e a estrutura patriarcal da qual elas nascem, sempre atreladas às estruturas racistas e classistas, são um problema complexo e que, portanto, depende de múltiplas soluções.

Ainda, a coalizão entende que a diversidade do Brasil, com suas múltiplas regiões, costumes e desigualdades, também deve ser observada ao construírem-se ações coletivas que visem a promoção dos direitos das mulheres, usando da interseccionalidade como método para pensar ações e estratégias de educação, prevenção e enfrentamento à todas as formas de violência contra as mulheres. 

Formada por organizações e consultoras residentes nas 5 regiões brasileiras, com atuações nas áreas do direito, assistência social, comunicação, educação em direitos humanos, pesquisa e psicologia, a APM traz um olhar sobre gênero multiprofissional e com foco nas interseccionalidades entre raça, classe, gênero, origens geográficas e outros marcadores sociais.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Gabriela Toso

    Formada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, especialista em Comunicação Pública pela USP, e mestre em Econ...

Últimas