Curiosidade e paixão pela ciência. Essas foram as duas características pessoais que motivaram a jovem Maíra Assunção Bicca a optar pelo curso de Farmácia há exatos dez anos. De lá para cá, Maíra que tem apenas 28 anos, vem consolidando uma sólida carreira no campo científico. Formada em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Maíra seguiu a carreira acadêmica e atualmente realiza estágio pós-doutoral na mesma universidade.
Não é uma tarefa simples para as mulheres enfrentar o mundo da pesquisa e da ciência, ainda bastante marcado pelo masculino. A catarinense, premiada pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) na 20ª edição do prêmio Jovem Talento para Ciências da Vida, destaca que o campo da ciência ainda é um espaço hostil para as mulheres “Vejo mulheres que decidem pela carreira acadêmica e que são menosprezadas pelos colegas homens ou que são rebaixadas. Somos a todo momento alvos de piadinhas”, afirma.
Natural de Laguna, cidade da proeminente Anita Garibaldi, Maíra é uma mulher que não se acanha diante dos desafios, assim como a histórica conterrânea. Em 2013, no segundo ano de doutorado, se candidatou a uma bolsa do Ciência sem Fronteiras – programa federal de incentivo à ciência – e foi aprovada com o projeto de pesquisa que, embora estivesse em fase inicial de estudo, já apresentava dados sólidos sobre a proteína TRPA1, que aponta caminhos importantes para o tratamento do Alzhemier, doença que, segundo a Associação Brasileira de Alzheimer, acomete 1,2 milhões de brasileirxs. Boa parte da sua pesquisa foi realizada durante o período em que esteve no Departamento de Neurobiologia da Northwestern University em Chicago.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), as mulheres representam 30% dxs pesquisadorxs no mundo. Em entrevista a Catarinas, Maíra relata suas percepções sobre o mundo acadêmico para as mulheres e o machismo ainda presente neste campo.
CATARINAS: Maíra, você acaba de ganhar um prêmio por conta da tua pesquisa relativa ao Alzheimer. Qual é o ponto chave dela?
MAÍRA: O prêmio foi concedido pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) pela minha recente projeção na carreira científica e pelo meu trabalho de doutorado. A minha tese de doutorado teve como título “A participação do receptor TRPA1 na toxicidade induzida por oligômeros de beta-amilóide em diferentes modelos experimentais: um potencial novo alvo para a doença de Alzheimer. O ponto chave do meu trabalho foi caracterizar a participação da proteína receptora TRPA1 na iniciação e progressão da doença de Alzheimer”. Esta proteína nunca antes havia sido estudada na doença, e muito pouco se sabia de sua presença no cérebro em si.
CATARINAS: Como vê os resultados da pesquisa para ciência médica?
MAÍRA: O que nós fazemos na universidade é pesquisa básica e alguma coisa de pesquisa pré-clínica. Isto quer dizer que utilizamos, em sua maioria, cultura de células, modelos experimentais animais e tecidos de pacientes que doam seus órgãos para a pesquisa. A pesquisa feita durante meu doutorado conseguiu contemplar todos esses aspectos, e portanto, possui um alto potencial translacional. Porém, serão necessárias pesquisas adicionais até que isso possa representar um avanço médico, que de fato possa atingir os pacientes. Gosto de pensar que demos o primeiro passo para muitas outras descobertas, e quem sabe para um possível avanço significativo.
CATARINAS: Há quanto tempo você se dedica a esse estudo? Quais dificuldades encontrou ao longo do caminho?
MAÍRA: Eu pesquiso sobre a doença desde os 18 anos, quando ingressei na universidade. Ao todo, foram 10 anos de dedicação e abdicação. Este estudo em particular começamos em 2011, no final do meu mestrado. O reconhecimento por parte da sociedade é um fator importante, porque são muitos sacrifícios que são feitos, tanto pessoais quanto profissionais, para fazer o tipo de pesquisa que fazemos. Fazer pesquisa no Brasil é um desafio diário. A começar pela carreira em si, de cientista, que não é reconhecida como profissão. O que quer dizer que não temos nenhum direito trabalhista, nem o que fazemos conta como tempo de contribuição, sem férias, sem 13º salário, sem insalubridade (embora trabalhemos em um meio cheio de reagentes tóxicos e cancerígenos). Estou acostumada a ouvir piadinhas do tipo: “mas você não trabalha então, só estuda?” Quando na verdade faço um turno no laboratório diário de quase 12 h por dia, todos os dias. Trabalhamos finais de semana e feriados quando é preciso. Usualmente os primeiros a te questionarem são os familiares, é um estilo de vida diferente do que se leva batendo ponto todos os dias. Diferente de muitos trabalhos, a pesquisa vai além do horário de trabalho, o trabalho te acompanha em casa, nos dias de folga e por aí vai. Precisamos ler muito, estar atualizados o tempo todo, isso se quisermos fazer a diferença. Como todo outro trabalho você pode fazer bem feito e se dedicar, ou pode ser comum. Para alcançar o tipo de avanço que alcançamos com a tese do doutorado é preciso muito esforço de todos os colaboradores envolvidos.
CATARINAS: Como você vê o incentivo à produção científica no Brasil hoje?
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MAÍRA: Além de tudo que eu citei anteriormente em relação a nossa profissão, sofremos no Brasil com falta de financiamento, com demora para chegada de reagentes e equipamentos (de 3 a 6 meses por exemplo para reagentes, por algo que fora do país, compraríamos no dia, e receberíamos em no máximo 3 dias úteis), com os preços absurdos para os materiais e reagentes de laboratório, com os impostos altíssimos. Enfim, por tudo que vivi neste período, acredito que nossas idéias são muito boas, mas estamos sempre correndo contra o tempo. Outro fator, para ser cientista no Brasil você necessariamente precisa ser professorx e estar vinculado a uma universidade. O que quer dizer que a maior parte do seu tempo vai ser dedicado ao ensino e a outra parte à pesquisa. Considero um sistema néscio. Conheço ótimxs professorxs que não são bons/boas pesquisadorxs, e pesquisadorxs incríveis que precisam gastar tempo na sala de aula, sem gostar disso. No país, existe tanto a boa ciência quanto a ciência ruim e estas são feitas pelxs pesquisadorxs que hoje estão nas universidades, e em parte esta distinção existe porque o incentivo é baixo e porque os méritos em uma carreira são quantificados de maneira deturpada que privilegia a quantidade e não a qualidade.
CATARINAS: Você é a quinta jovem mulher a ganhar o prêmio Jovem Talento para Ciências da Vida ao longo de 20 edições. Como avalia a participação das mulheres em espaços de produção da ciência?
MAÍRA: É uma honra muito grande. É também um momento para refletir não somente o meio acadêmico, mas a nossa sociedade. O meio acadêmico é reflexo da nossa sociedade: Machista. As mulheres são maioria em número, mas a voz mais expressiva continua sendo a masculina. No âmbito profissional, na política, na polícia, na universidade.
CATARINAS: O espaço acadêmico muitas vezes é visto como um lugar machista? Qual sua opinião sobre isso?
MAÍRA: O meio acadêmico é reflexo da nossa sociedade. Em parte muitas de nós que podemos fazer a diferença somos subestimadas, em parte muitas somos ensinadas a nos submeter a pressão, seja ela qual for. Vejo, por exemplo, mulheres inteligentes e guerreiras que decidem pela carreira acadêmica e que são menosprezadas pelos colegas homens ou que são rebaixadas. Somos a todo momento alvos de piadinhas e cumprimentos elogiosos. Precisamos certas vezes provar por mil maneiras o que um homem poderia fazer sem precisar provar nada. Constantemente somos julgadas por optarmos por ter filhxs ou vida fora da academia. Professores homens não gostam de ter alunas mulheres porque elas podem engravidar, e isso irá prejudicar o andamento da pesquisa. São inúmeras situações de disparidade. Eu poderia listar 100 delas nesses 10 anos de universidade sem muito trabalho. Isso é triste. Quando a reportagem sobre o prêmio foi divulgada nacionalmente, fui alvo de vários comentários do tipo: “gata, casaria com ela”, “além de inteligente é linda” e coisas do tipo. Pensei que se fosse a mesma reportagem com um homem que tivesse ganhado o prêmio não haveriam comentários desse teor. Como se para ser inteligente ou escolher desenvolver o cérebro e o raciocínio a mulher precisasse ser feia, afinal, o que restou pra ela? Já que não é bonita tem que estudar. São coisas sutis que você vivencia todos os dias e que estão impregnadas no comportamento da sociedade. O mais impressionante é ver atitude machistas vindas das próprias mulheres.
CATARINAS: Você acredita que teu exemplo pode influenciar mais mulheres a se dedicar a pesquisa e a ciência? De que forma?
MAÍRA: Sinceramente, se eu puder servir de exemplo para quem quer que seja eu já estou muito feliz! Acho maravilhoso quando podemos atingir a mídia e as grandes massas com o que fazemos na universidade. Geralmente, as coisas que fazemos na academia permanecem no meio acadêmico. Acredito na igualdade de gêneros e acho que para chegarmos neste patamar é preciso muito luta. É preciso empoderar e que somos nós que damos a luz. Conheci muitas mulheres brilhantes nessa longa jornada e elas foram inspiração constante para chegar onde cheguei. Se eu puder ser para alguém o que a minha mãe, minha avó, minhas professoras foram para mim, eu estou completamente realizada.
CATARINAS: Como você vê o engajamento das mulheres para a igualdade entre gêneros?
MAÍRA: Acho que as mulheres estão cada vez mais descobrindo a sua força. E que não estão sozinhas. Tenho várias amigas que lutam bravamente pela causa, das quais tenho muito orgulho. Infelizmente, há ainda mulheres machistas e aquelas que reconhecem a causa, mas acham que não precisam fazer nada para isso ser mudado. O que eu sei é que a cada dia que passa os conceitos de mundo são mudados, temos que estar abertxs a novas ideias e inovações. Só porque a maioria faz uma coisa, não quer dizer que isto está certo. Precisamos com pequenas atitudes, as mínimas que sejam, mostrar que estamos o tempo todo atentas a tudo o que acontece, e que estamos dispostas a lutar pela mudança.
CATARINAS: Quais medidas, na sua opinião, são necessárias para incentivar a participação de mulheres na ciência?
MAÍRA: Quanto mais mulheres fizerem parte do meio científico acadêmico, mais teremos voz! No início pode parecer difícil, mas só vamos conseguir fazer a diferença se formos fortes.