Em 1945, uma jovem na cidade de Ponta Grossa no Paraná, recebeu a visita de seu ex-noivo, que buscava permissão de seus pais para reatar o noivado. Esse compromisso havia sido rompido quando o noivo se preparava para ir à Itália, junto com a Força Expedicionária Brasileira (FEB), lutar contra os nazistas e não desejava correr o risco de que sua noiva ficasse viúva antes mesmo do casamento. Ao retornar da 2ª Guerra Mundial, durante a qual trocaram diversas cartas de amor, ele desejava, e ela e seus pais aceitaram, reatar o noivado. Mas ele tinha uma ressalva: “preciso te contar algo e entenderei se diante dessa revelação você não desejar mais se casar comigo. Eu sou comunista”.
Dona Lila, Anna Alyria Vilela (nascida Oberg), que com 49 anos, a idade que tenho hoje, se tornaria minha avó, me contou que ficou tentando descobrir o que “ser comunista” significaria. Me confessou também: “ele seguia sendo o meu grande amor e era lindo, e ainda voltou como um herói de guerra. Então, eu casei”.
Mas, olhando para trás e tendo enfrentado tudo que enfrentou, ao me contar essa história na década de 1990, ela dizia se questionar se deveria ter casado. Não pela ideologia, porque ela entendia a justeza de lutar pela igualdade, pelos direitos e pela dignidade, mas pelo sofrimento que ela passou.
Ditadura Militar
Dona Lila nunca se envolveu em nenhuma atividade política e acompanhava de longe a atuação do seu marido, que tinha uma carreira bastante exitosa no Exército Brasileiro. Posteriormente, acompanhou a dos filhos, que se reuniram com pessoas que lutavam pela soberania do Brasil. Por essa carreira, a família se mudou inicialmente para Curitiba, para Paris e depois para o Rio de Janeiro.
Em 1962, Carlos Gomes Villela, meu avô, se juntou ao Gabinete Militar do recém empossado governo de João Goulart e trabalhava no Palácio do Planalto. Lila tentou trabalhar no Mobral, pois não desejava ser apenas uma dona de casa, mas não conseguiu.
Em 1964, Lila viu seu companheiro retornar de uma viagem do Rio de Janeiro e receber ordens de não resistir ao Golpe Militar que um setor inconstitucional e anti-patriótico do exército, patrocinado pelos Estados Unidos e por empresários, impôs ao país. Ela contava que ele disse que deviam esperar em casa. No dia 3 de abril, foi sequestrado pelos golpistas e minha avó ficou mais de um mês sem ter notícias dele.
Ela contava que os golpistas tentaram expulsá-la junto com as demais esposas e filhos dos membros do Gabinete Militar do governo constitucional, dos apartamentos funcionais em que viviam e elas se recusaram.
Afirmaram que não iriam a nenhum lugar até saberem onde estavam seus maridos, por muitas semanas Dona Lila ficou sem nenhuma notícia se Carlos estava vivo ou morto.
Em 20 de maio, ela recebeu um telegrama dele em resposta a uma carta que ela lhe enviou. O telegrama dizia “RECEBI SUA CARTA DE 12 PT CIENTE ORDEM POSTERIOR ENTREGAR APARTAMENTO PT TUDO QUE RESOLVERES ESTARAH BEM FEITO VG INCLUSIVE QUANTO POSSIVEL PERMANENCIA CARLOS HELOISA ATEH JULHO PT ABRAÇOS ET BEIJOS CARLOS”.
Ela contava que no dia que recebeu um ultimato dos golpistas pela desocupação, estava reunida com as demais esposas em um dos apartamentos e respondeu por todas: “certo, nós vamos sair, descer com todas as coisas, ficar morando embaixo do prédio com as crianças e vamos chamar a imprensa para denunciar como vocês tratam heróis de guerra e militares consagrados do Brasil”. Eles recuaram e as famílias puderam ficar.
Mas a vida não foi fácil: eram muitas mulheres e crianças sem acesso às contas bancárias.
Minha avó contava que foi ao banco e persuadiu o gerente a permiti-la acessar o valor que ainda tinha na conta para as despesas e tentou seguir a vida.
Algum tempo depois, uma vizinha veio lhe dizer que descobriu que os maridos estavam presos em Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Como os filhos dela eram mais velhos que os da vizinha, ela aceitou uma carona de Kombi de Brasília até o Rio, uma viagem de mais de mil quilômetros, para confirmar as informações e tentar ver Carlos.
Chegando ao Rio, ela fez contato com a estrutura do exército e não entendeu nada: eles se prontificaram a levá-la para visitá-lo. Até aquele momento, ele estava bem. Foi a única vez que ela o viu encarcerado.
Ela retornou à Brasília e passou a aguardar. Até que um dia, ele apareceu em casa. Estava livre, mas ele havia sido expulso do exército no dia 9 de abril por um Ato Institucional. Eles se mudaram de volta para o Rio de Janeiro. Sem nunca ter trabalhado em outra coisa que não servir ao exército, Carlos não sabia do que iria viver. Foram tempos difíceis. Mas o pior ainda não tinha acontecido.
Em 1968, Carlinhos, como meu pai era chamado na família, foi preso na manifestação estudantil em 19 de junho de 1968, juntamente com outros 3 estudantes. Dona Lila viu Carlos, o pai, ser preso por procurar seu filho que ficou dias incomunicável. Viu seu filho (e companheiros) tentar uma estratégia para se livrar da perseguição e acabar condenado por algo que não tinha feito. Meu pai fugiu em setembro, durante seu julgamento, e entrou para a clandestinidade.
Em carta enviada logo depois do primeiro encontro clandestino, escreveu: “Mãe, a Helô me contou que você saiu chorando na volta para o Rio. Eu compreendo tua aflição, mas é preciso que você tenha mais coragem, mais confiança no teu filho. (…) Estou muito preocupado com você. Sei que você está passando uma fase difícil, eu compreendo. Mas é necessário que você faça um esforço para superá-la.”
Ela foi a pessoa mais forte com quem eu convivi. Meu pai viveu 10 anos na clandestinidade, se casou, nasceram as netas da Dona Lila, eu inclusive, e as notícias eram poucas. Nunca saíram do Brasil, mas os contatos eram raríssimos.
Leia mais
- Por que falar da regulação da internet para barrar a violência de redpills e incels?
- Mulheres no cinema e o fim da narrativa única
- De liderança estudantil à vereança: as mulheres que ocupam a política institucional em Florianópolis
- O que é a machosfera e como ela afeta a vida das brasileiras
- Mais de 100 mulheres debatem estratégias contra a violência política de gênero e raça em Brasília
Rubens Paiva foi perseguido por servir de intermediário para correspondências como essa, que eram imprescindíveis para mães, amores, companheiras/os e camaradas. Dona Lila me contava como ficava ansiosa buscando a pessoa que normalmente trazia as notícias, ele ligava para avisar e ela ia em seu escritório buscar as notícias.
Mas, esse ainda não foi o pior momento…
No início da década de 1970, Dona Lila descobre que sua filha e o genro haviam sido presos. Esse sempre foi um assunto proibido na minha família e Dona Lila não comentava, mas não é preciso esforço para compreender o tamanho do sofrimento de uma mãe em saber pelo que a filha estava passando, procurar e não encontrar, não poder impedir a dor, encontrar e demorar para conseguir vê-la libertada, recebê-la com as sequelas do pior sofrimento, depois demorar que o genro fosse libertado, recebê-lo após um período ainda maior e de torturas ainda mais duras.
Desclandestinização
Depois de ter o marido e os filhos anistiados com a retomada democrática, Dona Lila assistiu o processo de desclandestinização do filho, a aproximação com as netas e a estabilização relativa da família, equacionando todas as sequelas. Também acompanhou o câncer do companheiro que faleceu em 1983, um trágico acidente em que um dos netos foi vitimado em 1998 e a morte do filho por uma doença degenerativa em 2012.
Se reinventou muitas vezes e morreu em 2017, com quase 91 anos. Linda, vivendo sozinha no mesmo apartamento em que viveu por quase 5 décadas do canto mais lindo do mundo, segundo ela mesma, próximo à Praia do Arpoador, no Rio de Janeiro.
Dona Lila é somente uma entre tantas mulheres (e homens) que participou do enfrentamento à ditadura em um papel que costuma ficar apagado, mas que sustentou várias famílias, tal qual Eunice Paiva, Helenalda e Heleonora Resende, Elzita Santa Cruz, Zuzu Angel, Lúcia Haygert, Amélia Telles e tantas outras que seguiram lutando pelos que sobreviveram ou pelos que se foram, pelas suas memórias, pela história, pela reparação, pelo reconhecimento, pela dignidade das pessoas e pelo Brasil.
Ainda estamos aqui
A repercussão do filme “Ainda estou aqui” e da importância de Eunice Paiva, é fundamental para que contemos essas histórias. No momento em que o mundo vê o capitalismo acionar o botão do fascismo, que ganhou um enorme aparato do Estado dos EUA com o governo Trump, e a retirada do véu democrático da ação das big techs pelo discurso de Mark Zuckerberg, a arte permitiu reportagens como as da Folha, da BBC, do New York Times sobre os horrores da ditadura empresarial militar imposta em 1964 ao Brasil.
Permitiu contar histórias, ações como a busca social pela suspensão dos pagamentos a torturadores de Paiva, permitiu a exposição sobre os horrores da ditadura no Museu da República no Rio de Janeiro e tantas outras iniciativas para que a história seja contada e que as tentativas de falseá-la sejam derrotadas.
O Presidente Lula declarou querer que 2025 seja o ano da democracia no Brasil, depois de ter cometido o erro histórico, a mando dos super ricos, de ter impedido que compartilhássemos as memórias dos horrores que ocorreram, quando completamos 60 anos do Golpe Militar.
Os nazistas que agora tentam voltar ao poder em todo o mundo só foram derrotados enquanto foram encarados, desnudados e os horrores por eles cometidos foram expostos, além de julgados e condenados. E agora a pós-verdade tenta recriá-los em sua glória da morte. Não é possível virar uma página suja antes de encarar a sujeira.
O governo do mal militar e os ataques em 12 de dezembro de 2023, os ataques tramados para 24 de dezembro e 8 de janeiro, só foram possíveis porque não escrevemos a história, não a divulgamos o suficiente para que a sociedade a entenda, não julgamos e punimos os culpados, não revivemos simbolicamente essas dores e esses erros para que não os cometam novamente.
O governo do neofascista brasileiro havia extinguido a Comissão de Mortos e Desaparecidos. O governo de reconstrução levou quase 2 anos para reativá-la porque os responsáveis e a cultura que permitiu a ditadura de 1964 não foi expurgada. O Brasil precisa homenagear e feminagear quem enfrentou esses horrores e foi fundamental para derrotá-los, para que possamos ter vivido 3 décadas de liberdade e democracia.
Críticas corretas foram feitas (mal dirigidas ao filme, já que deveriam ser dirigidas ao país como um todo) que vários grupos atingidos não tem sido retratados: negros, pobres, periféricos, operários, indígenas, entre outros que enfrentaram à ditadura ou por ela foram brutalmente atingidos e suas memórias, suas dores não foram contadas.
Um desses grupos são os militares. Sim, ironicamente, ou não, se refletirmos bem, os primeiros atingidos pelo golpe militar são os militares constitucionalistas e há milhares que sofreram, bem para além do grande Capitão Lamarca, porque, como meu avô e seus colegas do gabinete militar do governo de Jango, estavam simplesmente trabalhando no governo constitucional ou como tantos que participaram de revoltas antes mesmo da ditadura, como os marinheiros e fuzileiros que se rebelaram no sindicato dos metalúrgicos do Rio em 26 de março de 1964 e foram perseguidos em número superior aos mil, até os que se recusaram a participar de torturas, entre outros.
Outro desses grupos é o dessas mulheres que mantiveram famílias e grupos em pé e que o livro e o filme são alguma reparação.
O mundo está mudando rapidamente e o Brasil está nesse mundo. O desequilíbrio climático e suas tragédias, as guerras, os governos fascistas/colonialistas, as crises de refugiados, a violência contra o conhecimento e contra maiorias minorizadas não nos permitem caminhar no escuro e somente as ciências, especialmente a História, a arte e a organização popular podem iluminar a práxis de um outro mundo possível.
Em 2015, quando o novo golpe começava a se desenhar no Brasil, Dona Lila falava para mim: “Elenira, você não consegue se expor menos? Estou preocupada, está tudo voltando. Acho que eu não aguento ver mais alguém passar por aquilo de novo”.
Eu respondi: “Não adiantaria, né, vó? Mesmo que eu parasse tudo agora, se amanhã tiver novo golpe, sabemos que serei perseguida” e ela “Vamos enfrentar tudo de novo…”. Uma de suas últimas postagens em rede social foi um discurso do Frei Betto sobre manipulação da informação.
Ditadura Nunca Mais!