A declaração do governador Jorginho Mello (PL), durante a abertura da 40ª edição da Festa Pomerana, em Pomerode — cidade conhecida como a mais alemã do Brasil — gerou uma polêmica que coloca Santa Catarina novamente no centro de um debate sobre racismo e supremacia branca. Ao elogiar os atrativos locais, Mello destacou a beleza turística, a arquitetura e a “cor da pele das pessoas”, afirmando que esses elementos fazem de Pomerode um lugar especial e marcante para quem a visita.
Pomerode, com mais de 80% de sua população branca, foi palco de uma fala que, para especialistas, reflete o racismo estrutural ainda presente no estado, o segundo com maior número de pessoas autodeclaradas brancas, segundo o Censo 2022.
Mello negou qualquer conotação racista, mas, ao fazê-lo, segue a lógica descrita pela intelectual Lélia Gonzalez como um “apartheid sofisticadíssimo”, onde a violência racial se disfarça pela ausência de segregação explícita, mas permanece enraizada nas práticas sociais e políticas.
A situação é vista por especialistas e representantes da sociedade civil como reflexo do racismo estrutural e das influências da extrema direita, cujos discursos têm ganhado força no cenário político nacional.
“Quando o governador faz uma fala como essa, ele só reforça o racismo estrutural […] Por que onde estão os negros nos espaços de poder deste estado? Eles não estão nem nas assembleias, nem no governo do Estado, nem nas câmaras municipais, nem nos tribunais”, afirmou Vera Lúcia Fermiano, membra da Casa da Mulher Catarina e da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB/SC).
O comentário, publicado em áudio na página oficial da Secretaria de Comunicação (Secom) do governo estadual, foi rapidamente compartilhado nas redes sociais pelo vereador de Florianópolis, Leonel Camasão (PSOL), que acusou o governador de promover uma prática racista.
Em resposta, Mello afirmou que o vereador estava distorcendo o teor de sua fala e anunciou que tomaria medidas judiciais contra as acusações. “Racismo é crime, e essa acusação não se aplica a mim”, declarou o governador.
O fato é que o caso já chegou à Justiça. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-SC) acionou a Procuradoria-Geral da República (PGR), enquanto o Partido dos Trabalhadores (PT-SC) solicitou que o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) e o Ministério Público Federal (MPF) investiguem o ocorrido.
A Notícia de Fato, elaborada pelo PSOL-SC e encaminhada à Procuradoria Geral da República (PGR), argumenta que, ao destacar a “cor da pele”, Jorginho Mello estaria valorizando a branquitude da população local, de ascendência alemã, e, implicitamente, inferiorizando os catarinenses de outras etnias, como se suas características não contribuíssem para a “beleza turística” do estado.
A sigla pediu que o caso fosse investigado por possível racismo, sugerindo que, se o crime for comprovado, o processo seja encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Procurada pela reportagem, a PGR informou que o procurador designado para o caso analisará, no prazo de 30 dias, os elementos apresentados para decidir sobre a abertura de um inquérito ou outras providências.
“Temos observado uma tendência na extrema direita em substituir os ‘apitos de cachorro’ por manifestações de extremismo. Na posse do presidente Donald Trump, Elon Musk fez uma saudação nazista. Queremos que esses atos tenham consequências, para que não se repitam”, declarou Camasão ao Portal Catarinas.
A representação do PT, por sua vez, classificou a conduta de Mello como racista e supremacista. A denúncia encaminhada ao MP salienta que “o governador trata a cor branca da pele como algo de destaque, algo que torne a cidade atrativa, claramente denotando uma conduta supremacista ao valorizar a cor branca em detrimento das demais”.
A presidenta nacional do partido, Gleisi Hoffmann, repudiou a fala do político. “Essa espécie odiosa de discriminação é a marca registrada do nazismo e de seus seguidores no mundo inteiro”, afirmou.
Crime de racismo
O crime de racismo, segundo a Constituição Federal (artigo 5, inciso XLII), é inafiançável e imprescritível. O racismo é considerado um crime contra uma coletividade indeterminada de indivíduos e está tipificado na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. O artigo 20 dessa lei prevê que induzir ou incitar a discriminação ou preconceito com base em raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é passível de pena de reclusão de até cinco anos, além de multa.
Apenas em 2023, com a Lei 14.532/23, a injúria racial foi considerada como crime de racismo, assim como o racismo recreativo e religioso. Além disso, essa lei trouxe uma determinação importante para interpretação sobre os crimes dessa natureza, em que o juiz deve considerar como discriminatória “qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
A advogada criminalista Mariana Goulart destaca que, em sua visão, a fala do governador teve, sim, um caráter racista, especialmente sob a perspectiva do racismo estrutural. No entanto, ela ressalta que isso não significa que ele tenha cometido um crime, pois é necessário que a situação seja devidamente investigada.
“É preciso avaliar o dolo, a intenção e a vontade da pessoa em praticar aquele crime, então isso tem que estar expresso. Isso será averiguado futuramente, até porque já vi que abriram notícia-crime contra ele. Enfim, isso vai ser investigado. […] A partir de uma perspectiva de racismo estrutural, sim, houve cunho racista, mas em uma perspectiva de direito penal, é preciso ter cautela”, diz a entrevistada.
Vanda Pinedo, do Movimento Negro Unificado, afirmou ao Catarinas que a fala de Mello é uma evidência do racismo estrutural e da falta de preocupação com a desigualdade racial em Santa Catarina.
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“Jorginho está no marco desse governo do conservadorismo racista, de descrédito à população negra, quilombola, indígena. Então, por estar nesse contexto, a fala que ele fez reafirma o campo político que ele defende. Ela reafirma que defende um campo político conservador, racista, beirando o nazifascismo”, pontua.
Além da polêmica envolvendo o governador, Santa Catarina também tem sido palco de outros casos de racismo, como o de Sonia Maria de Jesus. Resgatada após 40 anos de trabalho escravo na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa, em Florianópolis, Sonia foi enviada de volta à família que a explorou, por decisão do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
“É o primeiro caso de desresgate no Brasil. Essa mulher foi resgatada de uma situação de violência, de mulher negra, adulta e com deficiência. Ela foi para uma casa de acolhimento, e voltou para a casa onde sofreu violência”, alerta Pinedo, que faz parte da mobilização.
Direita, supremacia branca e neonazismo
Pomerode ficou marcada em dezembro de 2014 pela descoberta de uma suástica nazista no fundo da piscina de uma residência. O proprietário do imóvel foi identificado como um professor de História, o que gerou ainda mais surpresa.
Wandercy Antônio Pugliesi chegou a ser investigado pelo Ministério Público do estado, mas o caso foi arquivado. De forma curiosa, ou até previsível, o simpatizante do ideário nazista chegou a tentar se candidatar a vereador na cidade pelo Partido Lideral (PL). No entanto, desistiu de concorrer nas eleições de 2020 após o partido anunciar que o expulsaria por “não compactuar ideologicamente” com ele.
A tentativa de apagar as diferenças e os “diferentes” remonta à colonização do estado. Segundo a historiadora Marlene de Fáveri, a forte valorização da identidade étnica, centrada nos valores ítalo-germânicos, moldou Santa Catarina desde o início, apesar da presença de imigrantes de outras etnias, como poloneses e russos.
“Existe uma forte valorização da identidade étnica, ou seja, da preservação dos costumes, ideologias e sentimentos que seus avós e pais consideram originários da Europa”, afirma.
Esse cenário tem se intensificado com o crescimento de grupos de extrema direita, que reforçam ideologias de supremacia branca e neonazismo. Um relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) apresentado à Organização das Nações Unidas (ONU) alertou para o avanço dos grupos neonazistas no país, destacando o aumento de células neonazistas em Santa Catarina e em outras regiões.
Dados de pesquisa da antropóloga Adriana Dias indicam um crescimento alarmante de 270,6% desses grupos entre 2019 e 2021, impulsionado por discursos de ódio contra minorias, como negros, judeus, feministas e a população LGBTQIAP+.
A pesquisadora revelou que Blumenau, cidade no Vale do Itajaí com 365 mil habitantes, abrigava no período 63 células neonazistas. Esse número é especialmente preocupante quando comparado aos 96 grupos identificados em São Paulo, a maior cidade do país, com 12 milhões de habitantes.
Já o levantamento da agência Fiquem Sabendo aponta que, de janeiro de 2019 a novembro de 2020, foram abertos 159 inquéritos pela Polícia Federal por apologia ao nazismo. O número supera o total de 143 investigações abertas ao longo de 15 anos, entre 2003 e 2018. Além disso, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta um aumento alarmante de 75,9% nos registros policiais de racismo em 2023 em comparação com 2022: 13.897 casos de injúria racial e 11.610 de racismo.
Esse fenômeno também foi impulsionado pelo governo Bolsonaro que fomentou um ambiente favorável à articulação e disseminação de grupos extremistas. Exemplos de conexões com ideologias nazistas incluem Roberto Alvim, ex-secretário de Cultura, que reproduziu trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, e Filipe Martins, ex-assessor internacional da Presidência, que fez um gesto associado ao supremacismo durante uma sessão no Senado.
Como explicou o doutor em História Social João Klug ao Catarinas em 2023, o nazismo é uma ideologia nacionalista, xenófoba e belicista que surgiu no período pós-Primeira Guerra Mundial. Essa ideologia buscava inflamar o sentimento nacionalista e exaltar ideias que, segundo o historiador, tinham no racismo um de seus elementos centrais.
O neonazismo preserva todos esses elementos nos dias atuais, mas com o agravante do negacionismo. “Ele nega, por exemplo, o Holocausto. Incorpora as ideias racistas no seu labor político, desenvolvendo ódio ao diferente, ao outro, não consegue trabalhar com a diversidade”, apontou o historiador.
Supremacia branca, meritocracia e misoginia
A historiadora e professora aposentada do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Marlene de Fáveri, explica que o nazismo e neonazismo se fundamentam em três ideias principais: supremacia branca, meritocracia e misoginia.
O supremacismo branco é uma forma de racismo baseada na crença — e na promoção dessa crença — de que pessoas brancas são superiores a indivíduos de outras raças, como indígenas e negros.
“Dentro dessa ideologia do nazismo e neonazismo, os brancos são considerados os melhores, os verdadeiros portadores da civilização”, ressalta Fáveri.
Já a meritocracia, segundo a entrevistada, é a ideia de que pessoas brancas, por serem consideradas mais trabalhadoras e superiores, merecem ocupar os melhores postos na economia, cargos públicos, as melhores vagas em universidades e empregos de prestígio. Por isso, são contra as políticas de cotas.
O terceiro ponto destacado por Fáveri é a misoginia, que envolve discriminação, preconceito e a propagação de ódio ou aversão às mulheres. A historiadora ressalta que as mulheres eram vistas pelo nazismo como as responsáveis pela reprodução da raça branca, com o lar sendo considerado seu espaço de subserviência, dedicado à educação dos filhos e à formação da pátria.
“Esse neonazismo que a gente vê aparecendo em Santa Catarina é o mesmo nazismo das décadas de 1930 e 1940, só que hoje transmutado em nossa sociedade e aplicado por grupos da extrema direita”, analisa a entrevistada.