A forma e o conteúdo do discurso do secretário nacional da cultura, Roberto Alvim, plagiados de Joseph Goebbels — responsável pela estratégia de comunicação nazista que levou a massa alemã a apoiar o regime eugênico de Hitler — carimbaram o que já vinha sendo denunciado por grupos políticos do campo democrático. Apesar de ter se sentido “sufocada” ao assistir a cena teatralizada por um executivo do governo federal, para a pesquisadora Adriana Dias, não há surpresa: o nazismo não só vem sendo gestado por este governo, como o constitui em sua política de eliminação do outro.

“Essas pessoas odeiam, têm uma noção deturpada de governo e país que acham que o país é só delas. Bolsonaro é profundamente racista, recentemente ele falou à jornalista de origem japonesa que ela deveria voltar ao Japão. Para eles não há cultura nenhuma, não há nada. O branco brasileiro que é formado por determinadas culturas europeias é o Brasil. O negro, o indígena, o restante é algo a ser eliminado, não é nem a ser colonizado, e isso que é horrível porque é um governo de eliminação do diferente”, afirma a doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Segundo a entrevistada, que é uma mulher com deficiência física e pesquisa grupos nazistas há 18 anos, Bolsonaro tem usado toda a metodologia goebbeliana em sua comunicação, mesmo antes de ser eleito, tais como o princípio das simplificações e do inimigo único — a esquerda — , o princípio de orquestração na maneira de espalhar boato, negar e depois replicar o que foi negado, o princípio do bombardeiro de notícias e o princípio do sigilo.

“São milhões de características reproduzidas de modo contínuo. Não é possível dizer que esse governo é nazista porque tem uma característica, mas porque se pauta em padrões de totalitarismo o tempo todo […] É representativo, um supremacista, negacionista da história da ditadura, governo que não permite diálogos, contradições, chegou ao ponto de negar a escravidão”, avalia a entrevistada.

Dias identificou mais de 334 grupos nazistas espalhados em diferentes cidades do país, apesar de estarem concentrados no Sul e Sudeste. São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul despontam nas primeiras posições com 99, 69, 66 e 47 células respectivamente, integrando de três a 40 pessoas. Além disso, a pesquisadora descobriu que mais de 500 mil brasileiros/a já baixaram material com conteúdo nazista na Internet em grande quantidade, ou seja, mais de 100 arquivos de 100 megabytes em redes de download.

Praticamente todos os 334 grupos identificados em fóruns na Internet apoiam a política de Bolsonaro. “Somente um grupo não gosta de Bolsonaro porque ele apoia demais Israel, mas acha que ele é melhor do que os outros políticos. Tem uma sala que é bem Bolsonaro, e de 13 a 23 salas que esperavam que ele fosse mais à direita ainda, ou seja estão decepcionados porque esperavam que ele fosse muito pior. Tem gente esperando lei para matar gay”, indigna-se.

Não há unidade entre esses grupos que representam, níveis de nazificação e violência diversos. Blumenau, por exemplo, tem dois grupos de Ku Klux Klan (KKK) diferentes, ou seja, seus integrantes ainda não conseguiram decidir que tipo de clã querem na cidade. Os grupos pesquisados também não necessariamente falam entre si.

Em trabalho anterior, a pesquisadora identificou em 2009, que 45 mil simpatizantes do nazismo moravam em SC. Em 1928, antes de Hitler tomar o poder, a primeira célula do partido nazista no Brasil foi fundada em Timbó (SC). Seria a primeira fora da Alemanha e chegou a ter 528 filiados.

Blumenau foi a cidade mais hitlerista do Brasil na época da guerra. “Tem essa questão da narrativa feita na época que não foi resolvida do nacionalismo alemão de SC. As pessoas tendem a atribuir ao diferente o problema, quando chega o imigrante, o neonazismo acaba dando resposta teórica para isso. Junta tudo e chega a esse cenário terrível que estamos vivendo”.

Crescimento das células nazistas

O fato de o ministro de um governo brasileiro citar Goebbels com tranquilidade como referência já demonstra uma certa naturalização dos ideais nazistas que chegaram ao poder. Desde que Bolsonaro passou a ser identificado como presidenciável, a quantidade de células nazistas não só aumentou, como também ganhou visibilidade, pela facilidade com que passou a se mover no espaço público.

“Antes as células cresciam de 5 a 8% por ano, desde a ascensão do Bolsonaro vem crescendo na casa de 12% e 15%.”

“As pessoas estão perdendo o medo da impunidade, estão saindo com suástica no braço, estão fazendo manifestação, dizem ‘eu sou mesmo, tenho direito de ser’. Essa fala dele (secretário) permite que todos os protofascistas e protonazistas saíam às ruas, deu aval para muita gente, é disso que tenho medo: agora as pessoas se sentem muito confortáveis. Ele caiu porque teve uma comoção, a pessoa vai achar que com ela, que não é tão evidente e famosa, não vai acontecer nada”.

O recente ataque ao estúdio que grava o programa do Porta dos Fundos, assumido por um grupo integralista, é um exemplo de encorajamento dessas células. “É o primeiro ataque terrorista supremacista branco no Brasil. A gente vai ter que rever como fala, para não dar espaço e propaganda porque muita gente twittou o grupo e eles ganharam mais membros. Não se pode dar a entender que isso é uma coisa viável, senão essas pessoas vão continuar”.

O crescimento desses grupos, ainda que sutil, foi constatado já no início da pesquisa da antropóloga, antes mesmo das eleições que elegeram Lula. “Eu falava que a gente precisava discutir o neonazismo, olhavam para minha cara e diziam que eu estava ficando louca, hoje, querem saber qual a solução. Eu só tenho dados, não tenho solução. Sei o que essas pessoas odeiam e como odeiam”.

Apesar de buscar confundir a opinião pública ao tentar descolar o discurso de Goebbles (método nazista) do nazismo em seu nível mais violento, o holocausto, Alvim é um representante desse sistema de poder, como analisa a entrevistada. “Ele escreve e conhece bem o alemão, não desconhece o nazismo, pelo contrário, ele é bastante de direita, uma pessoa muito ressentida, tem todo o ressentimento da supremacia branca, porque a questão crucial é esse ressentimento. Eles vivem de reminiscências e ressentimentos de que o judeu, o negro, ocuparam o lugar dele. O tempo todo ficam justificando porque não conseguiram”.

O pedido de desculpas direcionado unicamente à comunidade judaica, tanto do secretário quanto do presidente, em nota nas redes, é uma questão estratégica, apesar de não haver uma história de antissionismo no Brasil, os dois compartilham do mesmo preconceito ao povo judeu, como avalia Dias. “Ele (Alvim) foi obrigado pelo presidente a pedir perdão à comunidade judaica, porque ele mesmo é um grande antissionista. No Brasil, eles atacam judeus, negros, gays e nordestinos, que sempre foi considerada por eles uma sub-raça”.

A substituição da pauta social pela pauta moral, tratando o pensamento, a arte provocadora, como degeneração moral, é a mesma estratégia de ataque aos judeus que ocorreu na Europa, segundo analisa a estudiosa. Ocorre que, agora, o presidente da república não pode conflitar com Israel, aliado dos EUA, e apoiado por grande parte da comunidade evangélica. “Bolsonaro sabe que uma balança quem sustenta o governo dele é a comunidade evangélica que apoia Israel, mas esse apoio é para converter no limite, se apossar para converter o judeu. Não é porque acha que Israel tem o direito à livre manifestação como povo, não é nada disso, é projeto religioso. Na verdade, esse governo tem um projeto de apocalipse”.

A entrevistada cita a série Berlim Babylon, que retrata a Berlim de 1928, para abordar as semelhanças com o atual contexto brasileiro. “A série trata do caldo cultural muito parecido com Rio de Janeiro e Porto Alegre, que tem aquela efervescência cultural, LGBT, muita arte, dança e um discurso de que esses artistas estão causando degeneração moral. Na série milícias feitas por ex-combatentes da primeira guerra e ex-combatentes da polícia corrupta, milicianos tomam conta dos bairros pobres, casas noturnas, ‘protegendo’, questionando essa falta de moral, ao mesmo tempo em que foram eles que levaram Hitler ao poder. Essas milícias foram chamadas pelos ingleses de hitlermínios, é tão parecido que assusta, é muito anos 30”, descreve.

O voto no nazismo de Bolsonaro teve apoio de boa parte da grande mídia, assim como daqueles que, descontentes com as duas opções, decidiram não votar. “Uma boa parte da imprensa contribuiu para isso, como o editorial Estadão que falou em uma escolha muito difícil. Qual é a escolha muito difícil? Não havia uma decisão difícil, e sim uma decisão a ser tomada. […] muita gente não foi votar, está cansada do sistema eleitoral brasileiro […] Não votar em todos os lugares do mundo sempre significou dar força para a direita. Como vamos fazer para as pessoas passarem a acreditar no voto? Não tem como se for tão manipulado como nas últimas eleições”.

Ao declarar-se cristão como argumento para se contrapor ao nazismo, Alvim pelo contrário, o afirma. “O nazismo usou elementos cristãos, todas as referências simbólicas do sangue no nazismo, o pacto do papa com Hitler, 90% dos que marcharam eram cristãos, o partido nacional socialista era profundamente cristão, formado de intelectuais com alto nível, nem uma coisa nem outra impediu o nacional socialismo, o nazismo”, explica Dias.

Segundo a entrevistada, muitos nazistas que acabam por abandonar os grupos por temer serem identificados publicamente encontram espaço no cristianismo de igrejas evangélicas. “O que eles queriam é um conservadorismo e o nazismo os atrapalhou profissionalmente. Conheço muito nazista ‘convertido’ na Igreja Universal, está lá porque não quer parecer nazista, apesar de continuar nazista”.

Supremacistas brancos e masculinos

O culto à masculinidade, fundamental para o cultivo do ódio, conforme explica o historiador alemão Peter Gay no livro “O cultivo do ódio”, é uma das características nazistas deste governo. Segundo pontua a entrevistada, a presença significativa de militares e ex-militares entre os integrantes dos grupos pesquisados não é um acaso. “Uma das questões para fomentar o ódio é uma adoração à masculinidade porque vem toda essa questão das armas, do militarismo, ódio aos gays, cultura do falo, do estupro, e aí que surge o totalitário que bebe deste culto às masculinidades, […] é um governo tão masculino que até a ministra Damares é fálica. A masculinização ao extremo no governo é hitlerista”.

Uma política que atua pelo “desempoderamento” da mulher brasileira, em especial das mulheres negras e com deficiência. Assim, como na série O Conto de Aia, “a mulher passa a ser considerada somente pelo seu útero, ocupando lugar exclusivo de geração de vida, não de produção de ideias, de produção de política”.

A institucionalização do nazismo como vemos atualmente no país, à medida que vai ampliando seu nível de nazificação, tende a naturalizar as violências contra aqueles considerados “inimigos”. “Há um projeto de eugenia na decisão do governo de colocar todas as pessoas com deficiência em escolas especiais, assim o governo nazista esterilizou 400 mil pessoas com deficiência, porque estavam institucionalizados”.

“A questão fundamental é o quanto esse governo solidifica essa postura eugênica, falar que vai esterilizar pobres, legalizar venda de órgãos, é supremacista. Quem é gente é branco, hétero, mora no condomínio da barra […] há um grupo neonazista no condomínio da barra da tijuca, o que atacou o Porta dos Fundos”, enfatiza a pesquisadora.

“Não dê chance para essa esquerda! Eles não merecem ser tratados como se fossem pessoas normais que quisessem o bem do Brasil. Isso é mentira”, foi o que afirmou o presidente um dia antes do pronunciamento do secretário da cultura. Um fala que também afirma o caráter nazista de seu pensamento. “Será que já está todo mundo preparando os triângulos vermelhos (símbolo que marcava o inimigo na Alemanha nazista) para os comunistas? Tem questões não resolvidas com o nazismo nesse governo inteiro, por exemplo, o Ernesto Araújo (Ministro das Relações Exteriores) tentou impedir a extradição de um nazista para a Alemanha, e no dia 7 de setembro a banda do exército tocou e cantou uma música nazista”, assinala.

As contradições de um nazismo miscigenado

A antropóloga explica que os grupos identificados leem materiais de clãs totalmente opostos, que são inimigos em outros países, mistura que seria impossível de ser concebida nos EUA, por exemplo. “A gente mistura tanto que o neonazismo brasileiro é miscigenado […] Nos EUA há grupos claramente formados, cada um se acha o grande líder nazista, o grande Hitler e brigam entre si, um fala que o outro é filho de judeus, que o outro é homossexual, é um inferno a comunidade neonazista nos EUA. Aqui no Brasil eles leem todo mundo como se fossem iguais”.

Para a pesquisadora, a população brasileira precisa entender a gravidade da ditadura que ocorreu no país para ter a capacidade de compreender a dimensão do nazismo. Ela lembra que Bolsonaro mente ao afirmar que repudia ideologias totalitárias e genocidas, levando em conta que seu maior ídolo é o coronel mais totalitário e violento do período ditatorial.

“Se tivessem entendido a ditadura e a violência que foi, jamais teriam elegido um cara que fala bem do Ustra. A gente não teve vergonha suficiente da nossa história como a Alemanha tem da dela. São momentos que precisam ser repassados historicamente, as pessoas fazem de conta que essas histórias não aconteceram. O Ustra colocava ratos na vagina das mulheres, e são as pessoas de esquerda que não são normais”.

Apesar de estar se alastrando institucionalmente no Brasil, o nazismo deixou uma lição que não pode ser esquecida. Foi responsável pelo genocídio de cerca de seis milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, em sua maioria judeus, mas também representantes de vários grupos étnicos, políticos e sociais, como negros, ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, prisioneiros de guerra soviéticos,  Testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais.

“Está na hora das pessoas decidirem claramente de que lado vão querer ficar da história, porque a história já comprovou que os nazistas não passarão, então tá na hora de escolherem se vão querer ficar do lado dos que já ultrapassaram historicamente ou do lado da humanidade”, finaliza a estudiosa.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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