Da esquerda à direita, a representatividade feminina na política institucional continua baixa. Na capital de Santa Catarina, as mulheres são mais da metade do eleitorado, foram cerca de 36% das candidaturas à Câmara de Vereadores em 2024 e 17,5% das pessoas eleitas. Mulheres de diferentes espectros políticos sentem na pele as dificuldades para ingressar e permanecer nos espaços formais de atuação, como as casas legislativas e o executivo. É na percepção dos preconceitos e do lento progresso das políticas públicas que as visões se encontram.
Florianópolis elegeu sua primeira vereadora indígena nas eleições municipais de 2024. Ingrid Sateré Mawé, bióloga eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), começou a trajetória política no grêmio estudantil quando era secundarista – termo que se refere aos estudantes de ensino médio – e assim deu início a sua formação na política.
Foi coordenadora geral do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação de Santa Catarina (SinteSC), assessora especial no Congresso Nacional e concorreu ao governo do estado pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) em 2018.
“Eu nunca almejei estar nessa posição, foi algo muito construído. Eu nunca pensei em me candidatar a governadora. Me convidaram e eu entendi o papel que eu tinha naquela tarefa”, conta.
A trajetória política de mulheres é composta por locais de formação, seja de política partidária, institucional ou mais ampla, como em movimentos sociais. Ingrid faz parte de um grupo chamado A Tenda das Candidatas. O projeto, fundado pela advogada Laura Astrolabio e pela cientista política Hannah Maruci, realiza formações políticas para mulheres candidatas, assessoras e ativistas.
Munah Mulek, diretora executiva da Tenda, explica que esse processo de instrução política abrange a esfera jurídica, comunicativa, organizacional e outras, contando com especialistas e lideranças, como Ingrid.
A base que sustenta a inserção de mulheres na política é, além de intelectual e prática, emocional.
“Coragem e força para enfrentar todos os desafios que não são fáceis, mas também não só isso. É essa rede de apoio de pessoas que apostaram em mim”, destaca a vereadora.
Ingrid, que é mãe de três filhos, ressalta a importância da família na sua jornada e o papel de seu parceiro na criação dos filhos, o que lhe permite tempo de dedicação à sua carreira política.
Além de Ingrid, mais três mulheres foram eleitas para a Câmara Municipal da capital de Santa Catarina. Manu Vieira, eleita pelo Partido Liberal (PL), é a mulher mais votada para vereança pela segunda vez. Em 2020, concorreu pelo Novo e conquistou 3.522 votos. Em 2024, foi reeleita com 6.727 votos e também foi a segunda pessoa mais votada. A empresária se filiou pela primeira vez em 2016, cansada de apenas sofrer as consequências da política sem poder interferir. Na época, encontrou espaço no Novo. Em 2024, viu no PL a possibilidade de crescer e ter novas conquistas.
A ideia de agressividade, que é associada à política partidária, vai no sentido contrário do estereótipo da mulher, vista como dócil e passiva. Manu foi a primeira da família a seguir com carreira política, o que gerou certo receio. “Nossa, mas você é tão boazinha”, a família questionava. “Essa questão da imagem da política afasta principalmente as mulheres, porque é um meio muito combativo”, afirma a vereadora.
Manu acredita que as políticas públicas, como as cotas, precisam ser reavaliadas para uma maior eficiência de inserção das mulheres na política institucional. Para ela, em primeiro lugar, as mulheres têm o direito de acessar espaços de formação, já que a preparação é fundamental para ampliar a presença feminina.
“Antes, eu não gostava de segregar mulheres de homens. Mas, na minha experiência, eu entendi que é mais confortável para as mulheres estar em um lugar só entre elas”, avalia, sobre a sua experiência em fóruns de educação política.
A vereadora ainda ressalta que o maior impasse é a agenda das mães que têm duas ou até três jornadas diárias.
“A gente precisa dar um jeito de envolver a família nesse cenário, trazer sim as mães junto com as suas crianças. A gente precisa pensar mais formatos para deixar essa discussão mais ampla”.
Com bandeira de proteção aos animais, Pri Fernandes foi reeleita em 2024 pelo Partido Social Democrático (PSD) com 3.589 votos, mais de 1.400 votos a mais do que foi eleita pela primeira vez em 2020. Na época, concorreu pelo Podemos e se elegeu com 2.092 votos. Até a publicação desta reportagem, a assessoria da vereadora não respondeu às perguntas sobre sua trajetória política.
Nas redes sociais, Priscila conta que foi convidada a se candidatar pela primeira vez em 2016 para a vereança, mas não aceitou. Em 2018, se candidatou a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) no que seria um teste de seu nome nas urnas para identificar seu desempenho. Os mais de 6.000 votos teriam encorajado Priscila à candidatura em 2020 para a Câmara Municipal de Florianópolis, onde ganhou mais uma legislatura em 2024.
Carla Ayres, formada em Ciências Sociais, é mais uma mulher reeleita na Câmara. Se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) em 2004, aos 16 anos, e lá começou sua formação política. Posteriormente, entrou para movimentos sociais feministas, LGBTQIA+ e de direitos humanos, onde se tornou uma figura de liderança. Mais de dez anos depois da filiação, se candidatou pela primeira vez, em 2016, para vereança em Florianópolis. Na época, o impeachment da presidente Dilma Rousseff era um fator central e motivo de tensão para o PT. “Foi uma discussão nacional da necessidade de que a gente elegesse os nossos, de ter alguém falando por nós naquele momento”, relembra.
A iniciativa própria, o convite do partido e a construção dessa necessidade de uma figura que representasse movimentos sociais no legislativo não foram suficientes para que Carla fosse eleita em 2016. Naquele ano, apenas uma mulher foi eleita: Maria da Graça, que pertencia ao antigo PMDB, hoje MDB. Em 2020, Carla foi eleita com 2.094 votos e, em 2024, foi reeleita com 5.743 votos. A vereadora concorreu para deputada federal em 2022 e assumiu em junho de 2024 como suplente, onde esteve até outubro do mesmo ano.
Para entender 2025, é preciso voltar para 2020
As eleições de 2020 significaram uma mudança na composição quase que exclusivamente masculina do legislativo municipal. “É uma legislatura que de cara já tem cinco mulheres eleitas. Então, obviamente, isso muda a dinâmica de relações na Câmara por uma questão de gênero”, avalia Carla. Além dela, em 2020 foram eleitas Manu Vieira, Pri Fernandes, Maryanne Mattos (PL) e Cintia Mendonça (Psol), co-vereadora em um mandato coletivo do movimento Bem Viver.
Apesar do salto numérico de uma mulher para cinco eleitas, a representatividade feminina não alcançou nem um terço em relação aos homens, que são 18 de um total de 23 cadeiras.
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Carla Ayres considera que os primeiros meses da legislatura iniciada em 2021 foram permeados pela questão de gênero, que não poderia mais ser ignorada. “Eu tenho certeza de que cada uma das mulheres construiu a sua estratégia de se relacionar com aquele ambiente, com os homens e com as outras mulheres, até como forma de sobrevivência, no sentido de fazer com que as suas pautas andassem e tivessem visibilidade”.
As estratégias das vereadoras, assim como suas personalidades e posicionamentos políticos, são diferentes. Entretanto, um sentimento bastante comum é o de afastamento da grande maioria dos legisladores, que são homens.
“A política é feita de muitos vícios, de muitos jargões e de muitas subjetividades que não passaram e não passam pelas mulheres. Desde piadas e falas indiretas até lugares em que a política é negociada. Isso não passa por nós”, critica Carla.
Manu Vieira pensa de forma semelhante. “Muita gente me pergunta se a Câmara é um lugar muito machista e eu falo que dentro do plenário eu me sinto muito respeitada. O problema é que a política não existe só lá. Ela está muito fora desses espaços onde tem que se manter o decoro. Você vai tomar uma decisão com os colegas e eles estão indo no bar da esquina. Eu me sinto afastada de algumas decisões, porque não estou nesses lugares”.
O desprestígio como manifestação do machismo
A vereadora suplente Tânia Ramos (Psol) aponta obstáculos no plenário. Ela assumiu a suplência pela primeira vez em 2021 e, de 2023 a 2024, se manteve em exercício no lugar de Marcos José de Abreu, conhecido como Marquito, vereador que foi eleito deputado estadual em 2022. Em 2024, Tânia obteve 2.003 votos e permanece na suplência para este ano.
A entrevistada conta que o corte do microfone é comum.
“Você está no meio da sua fala trazendo uma discussão calorosa e eles vão cortar o microfone. ‘Corta o microfone dela. Pode cortar, eu sou o presidente, pode cortar”, imitou.
Outro caso recorrente, segundo Tânia, é a falta de quórum para abrir uma sessão solene, em que são necessários oito vereadores para dar início a uma homenagem. “Foram várias vezes. Nos dois anos que estive lá, aconteceu umas três ou quatro vezes. Em todas as sessões, eu tive dificuldade de descer os oito vereadores para dar quórum”, reclama. Foi o caso da homenagem que a vereadora organizou em novembro de 2023 para a população negra e as religiões de matriz africana.
Tânia começou a atuar politicamente nos movimentos comunitários e no grêmio estudantil ainda jovem. Cresceu na Coloninha, bairro periférico de Florianópolis, e a falta de pavimentação, saneamento básico e outros direitos foram o primeiro estopim de conscientização.
Como secundarista, defendeu o ensino público e acessível na escola de educação básica Aderbal Ramos da Silva, no Estreito, em Florianópolis. A luta pela educação a levou ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) aos 20 anos. De 1993 a 1996, durante o governo de Sérgio Grando (então PPS), na Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF), Tânia foi secretária executiva da Secretaria Regional do Continente.
Tinha cerca de 30 anos quando se filiou ao PT e foi assessora de Afrânio Boppré (então PT) por oito anos na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). Vinte anos atrás, deixou o PT e foi a primeira mulher negra a se filiar ao Psol na cidade. Com a saída de Marquito, foi considerada a primeira mulher negra vereadora de Florianópolis. Mais tarde, em 2023, as pesquisadoras Binah Ire Vieira Marcellino e Jeruse Romão identificaram Eulina Marcellino, uma mulher birracial, como a primeira vereadora da cidade.
“Não é um espaço propício para nós mulheres, principalmente para as mulheres negras, mas eu venho insistindo e trazendo esse debate até dentro do próprio partido”, afirma.
A longa trajetória de candidaturas desde que se filiou ao Psol não parece ter cansado Tânia. “Não dá para ficar só nos bastidores. A gente tem que ser protagonista da história também e, de lá para cá, eu venho construindo nesse espaço. Terminava a eleição e eu já voltava para a luta; terminava a eleição, já estava na rua, na luta”.
É comum que mulheres não alcancem a votação necessária para se elegerem, mas alcancem a suplência. Nas eleições de 2020, quando cinco mulheres foram eleitas, 99 foram suplentes para a Câmara de Florianópolis. Noemi Leal, que foi vereadora pelo União Brasil, também foi uma delas. Formada em Serviço Social, Noemi atuava no centro acadêmico do seu curso e de lá levou os primeiros ensinamentos sobre política.
Em 2016, se candidatou à vereança pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e alcançou a suplência, que assumiu em 2018. Em 2020, se candidatou, atingindo novamente a suplência e entrando em exercício em 2021. Em julho de 2024, assumiu a titularidade da vaga deixada pelo vereador Gabriel Meurer, conhecido como Gabrielzinho, que faleceu no começo daquele mês. As principais bandeiras de Noemi são a proteção à pessoa com câncer e a defesa dos direitos das pessoas autistas, temas diretamente conectados à sua vida pessoal e familiar.
Noemi nota a diferença que o crescimento do número de mulheres legisladoras fez de 2018 para cá. Mas isso ainda não impede que o machismo ocorra. Mais uma vez, a experiência das vereadoras é parecida nos momentos de posicionamento e embate no plenário. “Quando tu vai enfrentar um homem dentro do jogo político, vai contra o que ele pensa e vai expor tua ideia, muitas vezes é tida como exaltada. ‘Ah, ela se exaltou’. Não, tu tá lutando pelos teus direitos”.
Além do aumento do número de mulheres, a legislatura de 2021 teve outra novidade, que foi a eleição de um mandato coletivo pela primeira vez na capital e no estado. A coletiva Bem Viver (Psol), cuja porta-voz foi a co-vereadora Cíntia Mendonça, foi eleita com 1.660 votos em 2020. Em 2024, foi candidata à reeleição ainda com Cíntia como porta-voz, mas com outra formação de co-vereadoras. Apesar de um número maior de votos, 1.750, não foi eleita e está na suplência.
Cíntia é formada em Administração e participou do Fórum Intersetorial de Políticas Públicas de Florianópolis, onde começou sua atuação política com foco na defesa dos direitos das crianças e adolescentes e, posteriormente, na questão climática e ambiental. Em 2011, se filiou ao Psol e passou a ter mais contato com as diferentes correntes e movimentos que perpassam o partido, como o Movimento Bem Viver, que tem como bandeira a “luta contra a exploração, a opressão e a destruição da natureza”.
O movimento é voltado para o trabalho de base e tem como objetivo o contato direto com a população, no entanto, a necessidade de ocupar a política institucional cresceu.
“Não dá para fazer só no território e deixar a política institucional de lado, porque senão alguém vai ocupar e quem ocupa pega a caneta e destrói a nossa vida”, argumenta.
A primeira formação do mandato coletivo contava com Joziléia Kaingang, Lívia Guilardi, Marina Caixeta e Mayne Goes. Com dois anos de mandato, todas as co-vereadoras se desligaram por causa de desavenças internas e surgiu uma nova formação com Mirê Chagas, Deise Montiel, Janaína Barbosa e Ariadne Jean-Baptiste. Houve outra reformulação e, em 2024, concorreram com Cíntia: Laura Parintintin, Ariadne Jean-Baptiste, Ariadne Telles e Anajara Moura.
Cíntia vê a participação política como uma necessidade e um propósito que ampara as pessoas pela coletividade. No seu caso, como mãe-solo que teve seu filho ainda jovem, a ação política lhe proporciona o sentimento de pertencimento e missão. Ela ainda ressalta a importância de todos, principalmente minorias sociais, ocuparem o espaço da política institucional e tomar frente nas decisões. “Uma hora o fogo pode te alcançar”.