A advogada feminista Júlia Melim Borges vem sofrendo ameaças do ex-marido de uma cliente, que atua em grupos incitando a violência contra ela

*GATILHO: Esta matéria contém capturas de tela com mensagens explícitas de violência misógina e ameaças.

“Eu acho lamentável que uma advogada, representando vítimas de assédio sexual, seja também colocada na posição de vítima, diante de uma ameaça desse tipo. Acho perigoso que a função de advogada esteja sendo ameaçada desse jeito”, disse a advogada Mayra Cotta, que representa a atriz Dani Calabresa e outras cinco mulheres que acusam o ator e diretor Marcius Melhem de assédio moral e sexual, em entrevista ao jornalista Roberto Cabrini, do programa Domingo Espetacular, da RecordTV, no último dia 6 de dezembro. 

A recente exposição dos assédios praticados por Marcius Melhem levantou questões sobre a atuação de agressores de mulheres e a dificuldade que envolve encontrar justiça nestes casos. A atitude de Melhem de entrar com uma ação na justiça contra a advogada das vítimas e desqualificar as denúncias não é um caso isolado nos processos de violências contra mulheres.

Em Santa Catarina, no dia 3 de outubro deste ano, advogada Júlia Melim Borges, que atua no primeiro escritório com perspectiva feminista do Estado, em Joinville, Região Norte, foi surpreendida com um comentário diferente do que costuma receber em uma de suas redes sociais. Em uma postagem em que agradece o convite de uma Escola de Direito para falar aos estudantes sobre o tema “A luta pela igualdade de gênero e os desafios da contemporaneidade”, o perfil de um homem, com nome familiar, comentou: “Reveja seus valores. Veja o que você fez com meu filho, sua abusadora de crianças, psicopata!” 

O conteúdo do comentário chamou a atenção, mas a autoria não. O autor é o ex-marido de uma cliente de Júlia, com quem ele tem um filho. O caso que iniciou em 2017 envolve a aplicação de medidas protetivas de urgência, como a proibição de aproximação e comunicação e retirada de postagens do Facebook em que o agressor expunha a ex-companheira. Além disso, foi decretada a alienação parental praticada por ele e decisão judicial contrária ao seu pedido de guarda do filho. 

Ao ver o comentário postado, a advogada passou a procurar no perfil da rede social do agressor outras informações e postagens e encontrou inúmeras publicações dele, em vários grupos diferentes, inclusive internacionais, acusando-a de “agir contra a dignidade infantil” do filho e sua “reputação profissional”. Além das postagens, que pediam ajuda para agir contra a advogada, os comentários de outros usuários da rede e do próprio agressor eram ainda mais agressivos, com explícita ameaça de violência física e de morte. 

“busca lá e mata a vadia”; “infelizmente temos que fazer justiça com as próprias mãos”, “gente que merece a morte por apedrejamento em praça pública”; “… o tempo delas está chegando”, “elas acham que vão escapar impunes”; “advogadas feministas criminosas”; “só tem dois caminhos, homicídio e suicídio”; “vou levar até as últimas consequências” são algumas das mensagens.

“Nós, advogadas, enquanto profissionais que atuam com enfoque na defesa dos direitos das mulheres, também sofremos violência de gênero dos ex-companheiros, ex-maridos e pais dos filhos das nossas clientes mulheres. Há uma extensão da violência que nossas clientes sofrem contra nós, também. Nós assumimos uma postura ético-política no exercício profissional, que é a busca pela garantia de direitos pautada nas teorias feministas do direito. E nós pagamos esse preço, ou seja, também passamos a figurar como vítimas neste contexto de situação de violência; é o preço que pagamos e, eu como feminista, acredito que vale a pena. Assim, nós movimentamos estruturas fundamentadas no patriarcado”, reflete Júlia Melim Borges.

Casos de ameaça à advogadas ou defensoras dos direitos das mulheres não são raros. Em 2018, a advogada Daniela Caetano Brito, de São Félix do Araguaia-MT, também foi ameaçada de morte por atuar em um processo que corria há nove anos, em que uma mulher era ameaçada de morte e tinha medida protetiva. “Fui executar a medida judicial porque a representava e fui ameaçada”, contou ao G1, à época. 

Outro caso, ainda mais grave, foi a execução da advogada Kátia Regina Leite, em Curitiba-PR, a mando do empresário Vanderson Benedito Correa, ex-marido de uma cliente. As investigações do crime, que ocorreu em 2010, foram acompanhadas pela OAB Paraná devido aos indícios de que a motivação havia sido a atuação profissional da advogada, que defendeu a ex-esposa do empresário durante o processo de separação judicial. Vanderson Benedito Correa foi a júri em 2016, acusado de homicídio qualificado, e foi condenado a 25 anos de prisão em regime inicial fechado por ser o mandante do crime.

De acordo com Rejane Silva Sánchez, advogada e presidente da Comissão Estadual da Mulher da OAB/SC, algumas situações, agressões e ameaças são potencializadas pelas crenças enraizadas na sociedade de que a mulher é inferior e naturalmente suscetível à violência, ao machismo e à misoginia e, em razão de seu “perfil inferior”, também seria melindrada na sua atuação profissional. Por outro lado, segundo ela, há, nos casos de família, a atitude dos homens de atrelarem às advogadas de suas ex-companheiras a razão de suas perdas. 

“Em casos de família, a parte que vê a sua ‘estabilidade’ ameaçada ou até arruinada tende a dedicar ao profissional do outro lado a culpa pelos infortúnios de um divórcio, divisão de patrimônio, filhos, etc. E quando a advocacia é exercida por uma mulher, alimentados por essas crenças machistas e sexistas, os clientes se acham no direito de agredir abertamente a profissional. Especialmente se esta profissional é atuante, altiva e bem sucedida”, avalia. 

Sandra Lia Bazzo Barwinski, advogada e coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil) concorda com essa avaliação. Para ela, o fato de ser mulher e ser advogada num país misógino, machista, ultraconservador, anti-direitos e anti-gênero coloca a profissional em grande risco, pois, para determinados agressores, “ela é um nada”, é “só mais uma mulher”.

“O fato de estar defendendo casos de violência doméstica e familiar a expõe, porque ela está sendo o escudo entre o agressor e a mulher em situação de violência. Se nós tivermos um agressor muito machista, muito misógino, ele vai atacar qualquer pessoa que se coloque na frente entre ele e a sua mulher, sua vítima, principalmente se for outra mulher”, avalia Sandra Lia.

A advogada recorda o caso de Kátia, segundo ela, um exemplo de “atuação destemida de uma advogada que não baixava a guarda, que não mandava dizer, que se impunha, que era muito firme, muito forte, e que pegou um agressor que não admitiu perder o poder sobre a mulher e ainda ter uma mulher tirando esse poder que ele tinha sobre a mulher dele. O que aconteceu, segundo a decisão da justiça: ele mandou matar”, conta.

De acordo com a psicóloga Maria da Graça Padilha, consultora da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero (CEVIGE) da OAB/PR, as violências cometidas pelos homens são decorrentes de uma forma de criação que os ensinou que as relações com as mulheres deve ser assimétrica e que eles devem deter o poder, nem que para isso precisem usar a força física ou psicológica. Assim, quando o jogo de forças se altera, às vezes devido às alianças que a mulher agredida venha a fazer, o agressor generaliza as tentativas de manter seu poder em relação a essas outras pessoas que, se forem mulheres, poderão também ser alvo de suas agressões. 

“Isso pode ocorrer com a advogada da mulher, com a psicóloga ou com qualquer outra que desestabilize o poder que ele tinha sobre a agredida. O homem agressor tem uma imagem equivocada de si mesmo, acreditando que só tem valor como homem se mantiver uma mulher sob seu jugo, nem que para isso tenha que cometer feminicídio. São homens que não aprenderam a manejar conflitos e nem a expressar a raiva de uma maneira socialmente aceita. Resolvem as disputas colocando a raiva para fora em agressões sem medir as consequências”, explica. 

Denúncia e pedido de medidas protetivas

Atenta aos riscos reais que as ameaças representam à sua segurança, Júlia Melim Borges registrou Boletim de Ocorrência, pediu medidas cautelares de proteção e a prisão preventiva do agressor. Encaminhado ao Ministério Público e à 2ª Vara Criminal da Comarca de Joinville pela delegada Débora Mariane Jardim, da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Joinville, o pedido de prisão preventiva não foi acatado, sendo aplicado somente medidas cautelares para a proteção da advogada.

De acordo com Júlia, a prisão preventiva não foi concedida por tratar-se de medida excepcional, entendendo o magistrado pela aplicação das medidas cautelares como a proibição do agressor de se aproximar da advogada, devendo respeitar a distância mínima de cem metros, de manter contato com ela por qualquer meio, além da proibição de veicular qualquer assunto na rede de mundial de computadores que atente contra a honra e a atuação profissional da advogada, ciente de que o descumprimento poderá implicar no decreto de prisão preventiva. 

Para a advogada Rejane Silva Sánchez, é importante que as advogadas em situação de violência conheçam bem as prerrogativas profissionais para evocá-las quando necessário, como, por exemplo, requerer a intervenção de alguma autoridade que estiver presente no ato; registrar a agressão ou ameaça de algum modo (foto ou gravação) e registrar Boletim de Ocorrência; comunicar à OAB ou seu Conselho Profissional (no caso de outras categorias) para que intervenha e preste o adequado apoio; propor ações indenizatórias contra o ofensor; entre outras. 

“Tudo com o objetivo de, por meio da punição e do controle estatal, impedir a continuidade destas posturas mas, sobretudo, sinalizar os riscos às autoridades. A partir da comunicação dos fatos, pode-se obter o acompanhamento de processos, medidas protetivas e outros instrumentos que possam proporcionar segurança para a profissional agredida/ameaçada. Infelizmente, ainda precisamos da punição, já que a normalização destas condutas (inclusive entre os profissionais) gera a sensação de impunidade e, com a escalada do conflito, da polarização, da beligerância, a impunidade é um ingrediente potencializador”, explica Rejane.

Sandra Lia Bazzo Barwinski também lembra dos mecanismos regionais de proteção às defensoras de direitos humanos, como as comunicações à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com solicitação de medidas de proteção e preventivas. Além disso, ela recorda a necessidade de acionar as redes de proteção e apoio que começam pela própria família e, dependendo da gravidade da situação,  deixar a residência e procurar um local seguro para si e para familiares mais próximos, como os filhos. Sandra também recomenda a denúncia pública dos casos de ameaça e violência, a publicização dos casos e a denúncia ao Ministério Público. 

De acordo com Júlia, as medidas foram tomadas e o processo contra o agressor corre em segredo de justiça. “O próximo passo é, provavelmente, o Ministério Público deflagrar uma ação penal pública para que sejam apurados os fatos criminosos através do devido processo penal, o qual poderá ensejar, após o contraditório e ampla defesa, o decreto condenatório pelos crimes de coação no curso do processo e ameaça, previstos nos artigos 147 e 344, ambos do Código Penal”, conta. 

Segundo ela, apesar das ameaças e do medo serem um risco alto a assumir como advogada, por envolver sua segurança, integridade e saúde mental, o fato de ser feminista que advoga em defesa das mulheres e dos direitos da diversidade torna necessário pagar esse preço para movimentar as estruturas do patriarcado e para poder romper com isso, inclusive a partir das provocações no âmbito do poder judiciário, que deve recepcionar com outro olhar os discursos pautados no direito feminista para garantir a igualdade de gênero.

“Vale a pena por resultados como este, que foi, de certa forma, satisfatório, pois o poder judiciário reconheceu uma violência de gênero e garantiu a segurança da minha cliente, ao aplicar a medida protetiva, e garantiu também a segurança do seu filho, que tem um pai que é violento, machista, misógino, sexista. Então vale a pena, mas precisamos tomar cuidado, nos capacitar sempre e ter uma rede de apoio. Nós precisamos reconhecer que estamos, também, diante do perigo, e esse perigo pode envolver, inclusive, a nossa vida. Eu sofri violência de gênero no âmbito do exercício profissional, e temo pela minha vida e integridade mesmo com a medida protetiva deferida, porém, sigo enfrentando toda forma de opressão contra a mulher, seja como advogada, como militante e como pessoa”, completa a advogada.

* A reportagem tentou contato com a representante da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Joinville, mas não obtivemos retorno.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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