Há uma semana vieram à tona, a partir da delação dos executivos da empresa JBS, denúncias que recaem contra o então presidente Michel Temer (PMDB) e contra o senador Aécio Neves (PSDB). A partir de uma gravação entregue a Polícia Federal, o Jornal O Globo divulgou com exclusividade o conteúdo das delações que comprometem os políticos de diversas formas – Temer sugere pagamento de propina pelo silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), já Aécio Neves pede R$ 2 milhões para pagar sua defesa na operação Lava Jato.

A concentração comunicacional no Brasil é uma situação que segue silenciada pelas cerca de dez famílias que monopolizam o sistema nacional de radiodifusão. Não é, portanto, um equívoco considerar que seja discutível o fato das organizações Globo terem exclusividade na divulgação dessas denúncias ou mesmo desconfiar da narrativa construída pelos meios de comunicação tradicionais sobre a situação política brasileira.

Buscando pistas para entender o que de fato está por trás dessa “narrativa hegemônica”, Catarinas entrevistou a doutora em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB), Flávia Biroli.

CATARINAS: Como você avalia a exclusividade da informação que as organizações Globo tiveram nesta denúncia contra Michel Temer? Para você, por que estas denúncias surgiram neste momento? Que forças políticas se fortalecem com isso?
FLÁVIA BIROLI: É difícil avaliar o que fez rachar a coalizão que está no poder desde a deposição de Dilma Rousseff. A agenda comum que têm é a do desmonte do Estado, por meio da retirada de garantias e direitos trabalhistas e previdenciários e da dissolução do pacto social presente na Constituição de 1988. Reduzindo controles e direitos, os interesses empresariais e financeiros atuam mais diretamente e ampliam seu poder e influência. A razão pela qual as organizações Globo apostaram alto, desde quarta-feira (17/5), na queda de Temer não é clara para mim. Uma linha de raciocínio é que, não sendo possível controlar os fatos (o envolvimento de Temer com vários ilícitos, explicitado pelas gravações do empresário da JBS, Joesley), seria melhor retirar Temer rapidamente da Presidência para garantir as reformas, isto é, o desmonte acelerado do Estado. Outra é que houve desentendimentos em algum outro campo, que não o das reformas, que levaram a Globo a apostar na queda de Temer. Ouvi, de mais de uma pessoa, que as disputas em torno da abertura de capital dos meios de comunicação brasileiros teriam um papel. Realmente não sei dizer o que pesou mais, precisamos de informações que ainda não temos para compreender o que houve.

CATARINAS: A concentração comunicacional no Brasil é um fato, cerca de 10 famílias monopolizam o sistema de radiodifusão brasileiro. De que forma isso reflete na compreensão pública sobre o momento político em que vivemos?
FLÁVIA BIROLI: A concentração da propriedade de mídia é um limite para a democracia no Brasil mesmo quando sua influência não se apresenta de forma tão aguda e direta, fazendo e desfazendo presidentes. Há uma interferência regular, desmedida, sobre o sistema político e as percepções da população. Se numa ponta temos um país complexo, plural e conflitivo, em outra ponta a concentração de mídia favorece a construção de discursos homogêneos, de narrativas pouco plurais. Mas é mais do que isso: o poder de barganha das grandes empresas diante dos partidos e dos atores políticos lhes garante influência no âmbito do Estado. Desde a transição da ditadura, nos anos 1980, algumas das grandes empresas de comunicação, como Globo e Abril, se colocaram na posição de atores políticos diretos, com protagonismo na construção de candidaturas, como no caso de Color de Mello, e na dissolução de mandatos conquistados pelo voto, como no caso da deposição de Dilma Rousseff.

CATARINAS: Quais fatos/interpretações/análises não estão contemplados nessa narrativa construída pelos meios de comunicação hegemônicos?
FLÁVIA BIROLI: Há silêncios sobre seu papel na construção do golpe de 2016, há silêncios sobre os acordos em torno da condução de Eduardo Cunha à Presidência da Câmara em 2015 e sobre a coalizão formada em torno de Temer, que foi desde o início político-partidária e empresarial. Mas há uma voz comum que é importante, enunciada de modo que bloqueia outras alternativas de discursos: essas empresas defendem o desmonte do Estado e os retrocessos na legislação trabalhista e previdenciária. Concentram seu discurso na ideia de “desvios”, com a agenda da corrupção, e em momento algum colocam em questão a influência regular do empresariado, do capital, na política. Enquanto denunciam a corrupção, colocam investidores e empresários como as únicas vozes razoáveis nas decisões sobre a cortes no orçamento, leis trabalhistas e direitos previdenciários. Em vez de serem apresentados como parte interessada, são alçados a porta-vozes da “estabilidade econômica”, que corresponde a uma agenda bem determinada.

CATARINAS: Que papel cumprem veículos de comunicação independentes neste processo?
FLÁVIA BIROLI: Os veículos de comunicação independentes têm ampliado os “ruídos”, as narrativas alternativas em circulação, trazido uma amplitude maior de vozes ao debate. Nesse ambiente de internet, há algo que me parece importante: as grandes empresas têm que fazer um cálculo quando decidem se vão ou não noticiar algo, levando em conta que têm hoje menor controle sobre o fluxo das informações. Mas é bom termos clareza que veículos independentes não têm o acesso potencial das grandes empresas e enfrentam dificuldades que grandes empresas não enfrentam. Precisamos rever o sistema de propriedade de mídia, o sistema de concessões, em direção a arranjos mais plurais e democráticos.

CATARINAS: Quais os caminhos de resistência ao processo político em que vivemos? Quais riscos o momento impõe à democracia?
FLÁVIA BIROLI: O momento é muito grave. Embora as práticas que as delações revelam sejam sistemáticas e históricas, o golpe de 2016 enfraqueceu nossas possibilidades de lidar com elas de forma institucional e democrática. A Lava Jato revelou bastante, mas instaurou práticas de exceção a cada passo das investigações e divulgações seletivas do que é investigado. Focada em agentes políticos e não na reorganização do sistema que reproduz todos os dias a corrupção, esgarça saídas políticas democráticas. É essa a crítica que as empresas midiáticas – e muitos jornalistas – reproduzem: a ideia de que há desvios e uma limpeza a ser feita, uma visão moral. Mas não estamos diante de um problema moral, e sim de um problema institucional e de economia política: a política não tem funcionado minimamente como contrapeso para a influência desmedida, estrutural, do capital. Restaurar a democracia é fortalecer instituições democráticas, em uma perspectiva popular e de garantia de direitos. Instituições que blindem o sistema político de modo que transitem livremente pelos corredores (não só do Planalto, do Congresso, mas também o Judiciário) os interesses empresariais e do setor financeiro, mas não os de outros setores da população, não resolvem o problema. Por isso digo que se trata de um problema institucional, mas também de economia política.

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