A especialista em ciências criminais Lívia Reis analisa a conduta do advogado, Cláudio Dalledone Junior, que simulou esganadura de Tatiane Spitzner em colega durante júri em Guarapuava (PR).
No último dia 10, foi realizado o julgamento do feminicídio da advogada Tatiane Spitzner, que resultou na condenação de Luis Felipe Manvailer, ex-marido da vítima, a 31 anos, 9 meses e 18 dias de reclusão. Durante a audiência, um episódio chamou a atenção de quem assistia: o advogado de defesa, para demonstrar que o abuso sofrido por Tatiane não teria resultado em morte, esganou, sacudiu e jogou no chão uma colega de trabalho, na frente dos jurados.
É muito emblemático que, no julgamento do feminicídio de uma jovem advogada, a defesa escolha agredir outra advogada diante do plenário e dos agentes de justiça presentes (todos homens), como tentativa de absolver o acusado. Em silêncio durante todo o julgamento, Maria Eduarda Lacerda foi trazida à audiência com o papel exclusivo de representar a vítima, em uma reprodução grotesca da violência sofrida por ela, sem que o ato fosse questionado pelos presentes.
É preciso que nos atentemos ao simbolismo que essa cena carrega, pois o ocorrido explicita o enraizamento do machismo no judiciário e o viés patriarcal ainda fortemente predominante nas bases do nosso sistema jurídico, criado por homens e para homens.
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A estratégia utilizada pela defesa, mostra que, embora nesse caso específico tenha havido condenação (muito disso devido à extensa cobertura midiática), a maioria dos atos de violência contra a mulher passam despercebidos e não são vistos com espanto pela sociedade.
A declaração da advogada assistente, informando que consentiu a agressão, faz lembrar que, quando um problema é estrutural, a violência nem sempre é evidente, mas se propaga também nas sutilezas, nas dinâmicas de poder que são impostas e que fazem com que uma mulher aceite ser publicamente humilhada e entenda isso como parte do seu trabalho, do seu papel. Situação parecida ocorre com as vítimas de violência que não conseguem se ver como vítimas e buscam, em seu próprio comportamento, motivos para as agressões sofridas.
O fato ocorrido nessa audiência confirma o padrão de tratamento dispensado às mulheres no sistema de justiça. Um padrão de rebaixamento a uma categoria inferior na hierarquia social, sem o mesmo valor e importância que os homens, que faz com que o desrespeito ainda seja prática processual recorrente.
Enquanto vítimas, mulheres são desacreditadas, desrespeitadas e revitimizadas em todas as instâncias do processo, desde a primeira denúncia até o fim do julgamento. E, mesmo quando estão ali no desempenho de sua profissão, são corriqueiramente subestimadas, assediadas e colocadas em audiência não para ter voz, mas para que seu corpo sirva de objeto na normalização de atos violentos.
Ademais, reproduzir gestos que chegam ao ponto de derrubar a advogada assistente ao chão, para demonstrar que não seria possível matar uma pessoa assim é também dizer, sem precisar de palavras, que, até certo ponto, esganar uma mulher e sacudi-la energicamente é aceitável, compreensível. É mostrar que ainda somos sujeitos passivos naturais dessas violências, aos olhos da sociedade. Afinal, a cena foi executada dentro de um Tribunal do Júri, na presença de um juiz, um promotor e sete jurados, sem manifestação contrária de qualquer das partes.
Advogados de defesa agridem mulheres perante autoridades do judiciário porque podem. Porque sabem que um homem pode agredir uma mulher na frente de todos, desde que haja “consentimento”; pode estuprar, desde que não mate (remontando a marcante frase de Paulo Maluf) e, em alguns casos, pode até matar, desde que seja por um “bom motivo”. Acende uma ponta de esperança sabermos que a estratégia estapafúrdia não teve o resultado desejado e, diante de todo o conteúdo probatório, o acusado foi condenado à pena de prisão, como esperado. Principalmente se considerarmos a ausência completa de mulheres no corpo de jurados.
Porém, é importante entendermos que não há condenação judicial que, por si só, seja capaz de desfazer as estruturas patriarcais que nos aprisionam, pois são essas mesmas estruturas que sustentam o judiciário, desde a sua criação até os dias atuais.
Decisões como essa são marcos importantes para mostrar que a luta feminista produz resultado e que não aceitaremos caladas que violências extremas sejam praticadas contra nós, sem que haja reação.
Mas, são também um lembrete de que o caminho a trilharmos como sociedade ainda é longo e que, mesmo que alguns crimes ganhem evidência e as devidas responsabilizações aconteçam, outras violações de direito seguem sendo praticadas e naturalizadas diariamente, à vista de todas as pessoas, sem que nada seja feito para impedir.
É preciso jogar luz sobre essas práticas, mas não só. Precisamos entender também que a causa do caráter epidêmico dessas violências é o sistema em que vivemos, um sistema que se sustenta a partir da subjugação de determinadas categorias da sociedade, para que outras possam ascender. Só então, quem sabe, em vez de gritar por respostas punitivas toda vez que uma vida como a de Tatiane é encerrada precocemente, possamos evitar que coisas assim aconteçam e tomar de volta a nossa dignidade, de pessoas humanas, iguais.