A cantora pernambucana Doralyce estará em Florianópolis no próximo sábado (21), integrando a line-up do Festival Saravá. Também conhecida como Miss Beleza Universal, título do seu primeiro hit, ela vai se apresentar ao lado do grupo de mulheres percussionistas Cores de Aidê em um show que valoriza a diversidade e o protagonismo feminino, repleto de referências aos grandes nomes do samba-reggae, além de músicas autorais. Vão subir ao mesmo palco Gilberto Gil, Chico César, Rachel Reis e a banda paulista Nomade Orquestra, com participação especial da artista indígena Kaê Guajajara. Os ingressos para o festival estão esgotados. 

Considerada referência do afrofuturismo no país, Doralyce tratá toda sua potência e suingue para o Saravá, assim como suas canções, ideais para mexer o corpo e a mente. Em entrevista, conversamos sobre temas que a artista e ativista está acostumada a escrever e cantar, como política, problemas sociais, liberdade afetiva e sexual das mulheres, afeto, amor e autoestima das pessoas pretas. A artista também comentou sobre seus projetos atuais e as novidades, principalmente o seu trabalho como empresária na Colmeia 22. Confira a entrevista.

Fernanda: Eu queria começar falando de Miss Beleza Universal. É impossível conversar contigo e não falar sobre essa música. Eu gostaria de saber por que as mulheres se identificaram tanto com essa canção e por que ela segue tão atual?

Doralyce: Miss Beleza Universal é um hino emancipacionista. Por isso tantas mulheres se identificam com o texto. Eu li uma vez que a plástica era o novo sexo. E eu pensei: o que essa galera está dizendo? Eu entendi que é muito sobre esses procedimentos estéticos (nos dentes, botox, silicone, plásticas em geral) que as pessoas fazem para tentar se enquadrar em um padrão, que é opressor, machista, patriarcal, que não fala sobre as nossas belezas, que cria um único padrão de beleza. A Miss Beleza Universal atravessa as pessoas porque questiona essa ordem posta, de que a beleza está associada a ser magra, clara e alta. Esse padrão não oprime somente uma mulher, ele oprime todas. Até as que estão dentro do padrão se sentem oprimidas por esse padrão, porque a gente envelhece, porque o que fica de verdade é o que a gente vive, os afetos que a gente faz na vida. Essa imagem que a gente carrega é um mero desenho da matéria que carrega a gente. Em outras palavras, questionar se não basta ser mulher é um ponto crucial onde eu me encontro. Eu me deparo com várias outras mulheres que se sentem oprimidas por esse sistema. Esta é a pergunta vigente: não basta ser mulher, tem que estar dentro do padrão? Esse questionamento vem muito por eu ser uma mulher preta. Existe o feminismo negro, porque durante muito tempo as nossas vidas não foram abraçadas pelo feminismo, que falava somente sobre a vida das mulheres brancas.

Quando eu pergunto “não basta ser mulher, tem que estar dentro do padrão?” é porque até para ser reconhecida como mulher é preciso estar dentro do padrão. Para ter a gentileza que se diz que deve ter com mulher, para ter o cuidado, para ter acesso à segurança, me refiro à segurança pública mesmo. Eu acredito que falar sobre feminismo é falar sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e mais que isso, falar sobre todas as mulheres, entre elas, mulheres pretas, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, de todas as mulheridades.

Imagem: Lilo Oliveira

Fernanda: As tuas músicas têm trazido reflexões muito importantes sobre afeto, amor e a autoestima de pessoas negras, principalmente mulheres pretas. Qual a importância de trazer essas reflexões, sobretudo sobre relações afrocentradas?

Doralyce: Eu costumo falar que o amor cura. O primeiro amor que cura é o amor próprio. Esse olhar para o espelho, se reconhecer, se acolher, e se sentir feliz por esse aparelho que você vê, que a gente chama de corpo, de casa. Eu vejo que o afeto é a única maneira de atravessar corações. A única forma de fazer com que as pessoas mudem de ideia ou venham a aderir alguma ideia é atravessar o coração delas. Tenho tentado trabalhar muito no meu discurso, para além da potência da minha fúria, com afeto.

Eu acredito que afrocentrar os afetos diz respeito a estar mais próxima das pessoas que parecem comigo, que vivem uma realidade parecida com a minha. Estou falando de Dassalu, uma filosofia de emancipação para pessoas pretas, latinas, LGBTQIAPN+, com enfoque na primavera solar, que é esse movimento insurgente na América Latina de alternância de poder e protagonismo das mulheres. Eu acredito no afeto entre mulheres.

Na nossa capacidade de, unidas, nos movermos na base dessa pirâmide social para nos transformarmos em seres pensantes dessa pirâmide, centros atuantes dessa pirâmide. Quando eu falo de afrocentrar os afetos, eu falo sobre romper com uma perspectiva eurocêntrica e permitir conhecer a maior parte da população desse país. Nós somos a maioria. Se você frequenta lugares que não têm pessoas pretas, esses lugares são racistas. Acabamos atravessando vários lugares como esses por uma questão de classes, de acesso a espaços onde a maioria das pessoas é branca. É importante ocupar esses espaços, mas tão importante quanto isso é criar mecanismos para levar outras pessoas pretas para ocuparem esses espaços de lazer. A realidade é que quando chegamos em lugares caros, em lugares onde a elite financeira do país frequenta, nem as pessoas que nos atendem têm a nossa cor. Pensar o nosso protagonismo, a nossa identidade, sempre lembrando que mais do que estar é preciso que estejamos. Uma de nós sozinha é muito frágil, é muito importante que esse coletivo se mova e seja um coletivo afetuoso, afrocentrado e feminista de mulheres. As mulheres também são a maioria da população do país, que essa sociedade seja pensada dentro das nossas necessidades. Nós vivemos em um Estado que não respeita nem o nosso útero. Disputamos narrativa com o Estado para sermos donas do nosso próprio corpo. É importante que tenhamos mulheres no Congresso, em cargos executivos, no Judiciário, para que elas pensem em melhores condições de vida para a gente. Já que essa sociedade é construída nos espaços de poder por homens que só ignoram as nossas necessidades, as nossas vidas.

Imagem: Lilo Oliveira

Fernanda: Desde 2016, temos vivido situações bem adversas em relação à política institucional. Na maior parte das tuas composições, das tuas músicas, você tem abordado isso, que faz parte da tua realidade. Você traz reflexões bem importantes sobre democracia, representatividade, fome e agronegócio. Quero te perguntar quais são as tuas expectativas para esse novo governo, para os próximos quatro anos? 

Doralyce: Olha, estou muito feliz porque conseguimos eleger o nosso presidente, a gente ralou muito para ganhar essa eleição, desde antes do golpe estamos falando sobre democracia. Estamos na rua levando gás de pimenta, bala de borracha, bomba, lutando pelos nossos direitos e pela garantia de direitos de outras pessoas também. Temos um Congresso tão conservador quanto o anterior, um Congresso da bala, da Bíblia, do boi. Vamos precisar continuar na rua, militando. Nós elegemos um presidente do executivo, o presidente escolheu várias ministras e ministros para ocupar esse espaço de poder executivo junto com ele, todavia quem legisla no Brasil é o Congresso Nacional. Agora precisamos olhar para esse Congresso e pressionar deputades, deputadas, deputados, pressionar senadores. E a luta continua! Mas agora eu acredito que vou poder falar de outras coisas, além de guerra.

Eu não consigo não fazer análise de conjuntura, em um país onde a ignorância supera a bunda, a cultura tem que ser mais que bunda. Eu tenho um compromisso ético de levar mensagens para as pessoas. Eu sou uma mulher preta emancipada. Enquanto todas as mulheres pretas não forem livres, eu não serei. Com essa lógica de pensamento, preciso pensar estratégias, mecanismos e ferramentas de emancipação do nosso povo.

Estou agora na Bahia e isso me faz lembrar da Comunidade da Boa Hora, que eram as mulheres pretas emancipadas que juntavam dinheiro para pagar a alforria de outras pessoas pretas. Essa luta por liberdade sempre foi coletiva, se ela for individual, ela não vinga. É exatamente por isso que a gente precisa estar ainda mais conectade. O Ministério da Cultura tem que chegar ainda com mais força e trazendo informação. 

Desde a gestão do PT é como se tivesse caído uma cortina de fumaça sobre nossos olhos. Eu aprendi sobre a história do meu país, do meu povo, quando a história da África entra como ementa obrigatória na escola, tu coloca a gente em contato e acesso com uma história muito diferente da história que havia sido contada antes. A gente descobre que veio de reis e rainhas. Essa exuberância toda que a gente tem é ancestral, é familiar. Esse jeito de dançar, esse jeito de jogar bola, essa ginga. Isso vem do nosso povo, da nossa história. E conhecer a sua história faz com que você saiba quem você é. Sabendo quem você é, você sabe para onde você quer ir. Acho que era isso que faltava: descortinar os nossos olhos. 

Eu trabalho muito com análise de conjuntura. Às vezes eu dou entrevistas e fico sem saber o que eu falo, porque a minha vontade era ler a minha letra. Está tudo escrito lá. Esse último disco tem “vou sentar gostoso na boca do meu mozão”, tem “leve e gostoso”, tem “sarrada de sapatão”, mas tem também “não deixem te alienar, detone os planos, rompa com a ideia, é uma guerra, o que você tá esperando para assumir o play, tomar o comando e não deixar barato que já tão te roubando há anos, apague a velha ordem do recinto, que são novos tempos e esse prato foi extinto, antes de seguir qualquer instinto, entenda o interesse de quem oferece ajuda para pedir sua cabeça, queimem os papéis, boicotem os mercados, ninguém paga o transporte, se não é público, é privado”. Desobediência civil pessoal, rebeldia. Doralyce está aqui pregando, vamos lá, galera, vamos junto, família, é nóis e sobre nós. 

Agora que o Lula é presidente, é mais bonito falar sobre isso. Eu passei muito tempo militando e as pessoas falando: “militância chata, mimimi”. Quando vem um golpe, vem um monte de porrada, a galera começa a entender que militar é existir, é resistir. Não é uma vontade. Não é porque eu acordo e penso que queria falar sobre quantas crianças foram assassinadas na escola pela polícia, no Rio de Janeiro. Ninguém acorda querendo falar disso, alguém precisa falar disso, e para quem sobrou falar sobre isso? Para ativistas e artistas. Falar com a massa é nóis. Nóis falou que ia derrubar o governo e nóis derrubou. 

Fernanda: Sobre a cultura, quais são as áreas prioritárias que merecem investimento de política pública? 

Doralyce: Acredito que uma das primeiras conexões que precisaremos fazer neste momento é com o que temos de mais importante, que é a nossa terra. Eu acho que todas as escolas deveriam ter unidades do MST. É ditadura? Ditadura é o que o patriarcado faz com a gente, oprimindo os nossos corpos. Acho que deveríamos ter algumas unidades do MST nas escolas explicando sobre a importância da comida orgânica, que o MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Falar sobre a cura que vem das ervas. Eu acabei de vir do Cerrado, estava na Chapada dos Veadeiros, e fui em uma farmácia do Cerrado. Eu fiquei impressionada com os produtos. Minha pele estava empolando e, normalmente, quando isso acontece tenho que comprar uma pasta d’água e um creme norueguês caro pra caramba. Que é o que tem no Brasil e mais hidrata. E ele é um caro dos mais baratos. Eu estou falando de um hidratante dermatológico. Na Chapada, eu comprei umas pomadas cicatrizantes por metade do valor e foi incomparável. Eu passei três vezes e o negócio cicatrizou. A cultura deve priorizar a conexão do povo com a terra. Precisamos falar sobre reforma agrária, sobre alimentação saudável, sobre consumo consciente de carne, porque cultura é como você come, como você se comporta, como você acorda, como você vai dormir.

Tem que ser pensada também uma estrutura de plano de carreira para artistas nas escolas. Por que só tem para o esporte? As escolas precisam estar ligadas aos cursos de teatro, os alunos têm que estagiar ali, no contraturno, fazer aulas, aprender a ser holding, contra-regra, aprender sobre iluminação. A escola precisa preparar a gente para o nosso futuro, para os nossos sonhos. E mais que preparar as pessoas para virarem advogados, médicos, mecânicos. Tem que preparar as pessoas para trabalhar com arte, comunicação, jornalismo, com produção. A cultura tem que se pautar na comunicação não violenta e fazer um caminho de luta contra o bullying e qualquer tipo de opressão, falar sobre afeto, sobre sexualidade, para as crianças não sofrerem abusos, para elas terem consciência de que esse corpo é templo, é sagrado, que ninguém pode tocar nele sem a sua autorização. As escolas entregando absorventes. Tem que conhecer bell hooks, Lélia Gonzalez, mesmo que sejam capítulos de um livro.

A gente na base precisa ter um pensamento crítico e afetuoso para acolher as diferenças, mas reconhecer as potências da nossa individualidade. 

Imagem: Lilo Oliveira

Fernanda: O que você gostaria de colocar sobre os seus próximos projetos e sobre o que você está trabalhando?

Doralyce: Eu estou muito ansiosa, nervosa, está sendo muito difícil, porque eu sou libriana e tenho muita dificuldade de tomar decisões. Estou naquele momento de tentar entender os sinais. Este momento é de silêncio. Desde abril do ano passado não lanço nada, estou nervosa. Ao mesmo tempo, tenho visto uma adesão das pessoas ao meu som. As pessoas têm me ouvido mais. Isso é importante também, é um feedback. Mas a galera está esperando que eu lance coisa nova. Ao mesmo tempo, a arte tem seu tempo. É preciso respeitar o tempo da arte às vezes.

Quando eu escrevo uma música, é uma pedra com um monte de coisa ao redor. Tem que tirar a lama, lavar, lapidar a pedra, dar uma forma para ela. Tudo isso leva um tempo. Eu estou olhando agora para várias pedras brutas, que precisam ser lapidadas.

Estou muito animada para as músicas novas que vão chegar. A galera vai dançar até o patriarcado cair mesmo, é para mexer o corpo e a mente junto. Essa é a minha sensação. Este ano vou ouvir muitas sonoridades, estou prometendo ouvir muita música latina, acho que vamos conseguir emplacar um Grammy (risos). Brincadeira, mas tenho expectativa. 

Como mulher preta é muito difícil fazer só uma coisa. Normalmente você acaba fazendo mais de uma para sobreviver. Além da música como som, eu recebi esse chamado da vida para ser empresária. Acabei me tornando minha empresária, já empresariei outras artistas, fiz todos os projetos da Colmeia 22. Lançamos o primeiro disco da Bia Ferreira, escrevemos o projeto do último disco dela. Fizemos todos os meus discos. A gente distribuiu Bixarte, Luana Flores, Rúbia Divino, Bongar, que é uma pérola do meu estado. A Colmeia tem esse pensamento emancipatório. Mesmo entendendo que as nossas forças não são tão grandes quanto a indústria fonográfica, que coloca milhões em uma música, é um espaço que descobri que posso pleitear no mercado. Já tenho uma história. Isso é muito engraçado, porque às vezes eu fico sem entender como as coisas caminharam até aqui, mas eu acabei aprendendo um pouco sobre produção fonográfica, sobre direito autoral, e nasceu a nossa editora, o nosso selo. Já fizemos turnê internacional, pensamos em uma série de projetos tentando visibilizar artistas independentes, porque eles ficam muito à margem. É muito difícil. O meu enfoque são artistas que falam muito sobre política. Viemos com artistas que trazem pautas muito importantes. A Colmeia coroa pérolas. Foi ela quem lançou “Vamos derrubar o governo”, a primeira versão feminista da música “Mulheres”, a música “Cota Não é Esmola”, na primeira versão em estúdio. Estamos fazendo coisas bonitas, estamos nesse caminho, estou feliz.

Fernanda: Você tem algum spoiler de como será a tua dobradinha com a banda Cores de Aidê? Qual a tua expectativa para esse show?

Doralyce: Eu estou muito animada, porque estamos ensaiando esse namoro há muito tempo. Sempre foi um desejo meu tocar com o Cores de Aidê. Eu acho que sempre foi um desejo do Cores tocar comigo. Foi tudo orquestrado pelo universo. Ano passado eu fui para o Saravá, e quando cheguei aí, fui diagnosticada com Covid. Não pude participar, fiquei arrasada, porque esse Festival é lindo e é a maior honra tocar com o Cores de Aidê. Quando chegou a proposta ano passado para a gente fazer esse show, eu fiquei feliz demais. Eu disse: óbvio, quero, vamos fazer. Eu sempre fui muito acolhida e tratada com muito carinho pelo Saravá e por Florianópolis. Estou esperando que a gente saia com um feat marcado. Eu acho que a galera vai dançar muito. O Cores de Aidê é um projeto muito bonito, e fazer som com elas será uma honra para mim. 

Fernanda: Qual é o diferencial do Saravá enquanto festival? 

Doralyce: Uma das coisas mais especiais que teremos no Saravá é a conexão de uma antiga geração com uma nova, e esse tempero de militância e quebradeira. Esse é o intuito também! As pessoas que vão para o Saravá, vão para se divertir, dançar, mas também para se informar. Vão estar ao lado de pessoas que comungam da mesma ideia, de que essa sociedade só pode ser melhor, se fizermos ela melhor e tivermos compromisso. Eu mandei mensagem para o Chico César, dizendo que eu tô passando mal, porque vamos tocar no mesmo Festival. Isso é muito maravilhoso. Eu sou muito fã do Chico César e do Gilberto Gil. Com certeza eu vou ter dois passamentos. Tem várias gerações pretas nesse grande espetáculo que vai ser o Saravá e eu vejo isso com muita potência.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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