Encerramos a série de entrevistas de FÉministas: evangélicas por um futuro democrático e amoroso com Alexya Salvador, uma das seis protagonistas da terceira temporada do podcast Narrando Utopias. Com uma trajetória repleta de singularidades, ela compartilhou com o Catarinas suas experiências de vida e fé que a levaram a se tornar a primeira travesti reverenda na América Latina. A nomeação aconteceu em 26 de janeiro de 2020, Dia Nacional da Visibilidade Trans

Alexya é pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana. É mãe e também foi a primeira travesti a concluir um processo de adoção no Brasil, em 2015. Tem três filhos: Gabriel, um menino com deficiência, e Ana Maria e Dayse, que são meninas trans. Professora da rede estadual há quase 18 anos e atualmente na coordenação de uma escola pública, ela vive com os filhos e o marido Roberto na cidade de Mairiporã, Grande São Paulo, onde nasceu. 

A Reverenda é co-fundadora da Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) e integra o conselho de ética da organização. Foi ainda vice-presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh) por dois mandatos. Neste ano, saiu como candidata a deputada estadual de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

A temporada completa de “FÉministas” já está disponível nas plataformas digitais, abordando as teologias negra, feminista e queer. A produção conta com a parceria do grupo Prosa, da UFSC, e a colaboração da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, da qual Alexya também faz parte, assim como as outras protagonistas da temporada. 

CONFIRA A ENTREVISTA com a reverenda Alexya Salvador: 

Qual a sua trajetória na igreja? Você é de uma família cristã? 

Sou a filha mais velha do seu Amadeu e da dona Ana e a minha irmã caçula é a Angelina. Sou de uma família católica não praticamente. Aos sete anos, passando em frente à capela do meu bairro, vi uma plaquinha anunciando o início das aulas de catequese. Eu procurei sozinha o catecismo da igreja. Ali estudei e me encantei porque era o único espaço fora da minha casa onde eu não apanhava.

Desde muito pequena eu sempre fui a ovelha colorida do grupo. Por mais que eu fosse grandona, sempre sofri muita violência na rua, na escola. Eu era muito boba, sabe? Eu tinha medo do mundo, das pessoas, mas ali na igreja eu não apanhava. Ninguém me chamava de viadinho, ninguém me chamava de bichinha, de mulherzinha e eu gostei daquele espaço. Conhecendo a igreja eu fui me encantando. E aí começa a minha história porque 75% da minha vida sempre foi na igreja. 

Então, a descoberta da sua identidade, da sua sexualidade, aconteceu quando a sua vida já estava ligada à igreja? 

Pois é. Quando entro na fase adolescente, em que a gente vai se descobrindo, a coisa começa a tomar outro rumo. Eu sentia que tinha algo em mim que não era igual ao de todo mundo e nas minhas tentativas de conversar com padres e bispos ou com alguém da igreja eu ouvia que aquele sentimento não era um sentimento divino. Era um sentimento maldito, uma anomalia, uma aberração e as pessoas que sentissem aquilo não iam pro céu. E na minha adolescência eu queria ir para o tal do céu que a igreja desenhou pra mim.

Então, comecei a lutar, dizer que não. Quantas noites eu dormi com o terço na mão pedindo pra Deus tirar de mim aquele sentimento que nem eu sabia direito o que era. Eu não tinha ideia aos meus 15 anos que, hoje, eu seria quem eu sou. Eu não tinha essa concepção porque o medo, a opressão e aquela violência mexiam comigo. 

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Descrição da imagem: Alexya Salvador. Mulher negra, de cabelos cacheados e solto. Veste batina preta com faixa nas cores azul, branco e rosa em referência à bandeira da visibilidade trans. Ela está no altar de uma igreja, segurando uma hóstia e um cálice. Atrás dela, há duas estátuas de anjos. Alexya aparece entre elas, à frente de uma cruz.

Teve algum momento que foi determinante para a descoberta da sua identidade? Algum momento marcante?

Fui para o seminário com uns 20, 22 anos, e ali eu já sabia que eu não era como os meus colegas. Um dia voltando de um simpósio da PUC Campinas, a van do seminário passou por um ponto de prostituição e lá eu vi as travestis trabalhando.

Quando vi aquele grupo, meu rosto deve ter brilhado. Eu falei ‘caramba, eu sou aquilo!’ Gosto muito de falar sobre isso porque eu cresci numa cidade sem ter referência de mulheres trans ou travestis. Então, eu cresci sem saber quem eu era. Sabia que eu não era gay, mas também não sabia que eu era uma travesti. Só quando vejo aquelas meninas é que dentro de mim tudo faz sentido, tudo se encaixa. 

Você se sentiu culpada ao se perceber como travesti? Como foi esse processo estando tão ligada à igreja?

Claro. Toda vez que eu ia pra igreja, que eu participava da missa ou que eu estava num grupo de oração havia uma voz que me acusava, dizendo que eu não podia ser daquela forma. Dizendo que aquilo era um pecado gravíssimo para Deus e que eu ia para o inferno porque Deus não tinha me feito daquele jeito. Dizia que eu estava contrariando a natureza divina, a natureza humana. Então, você volta para casa ouvindo aquelas palavras porque muitas pregações da igreja são construídas nesses pilares.

Eles recortam versículos bíblicos e constroem toda uma pregação voltada para legitimar esse discurso preconceituoso. Um discurso de morte.

A minha primeira tentativa de suicídio foi pegar todos os remédios que eu tinha em casa e colocar tudo num copo, tudo que que pude achar de comprimido eu fui jogando ali dentro porque eu queria parar de sentir aquilo. Eu achava que se eu tirasse a minha vida sozinha sem externar para minha família seria melhor. Eu não envergonharia a minha família, a igreja. Já acompanhei muitos casos de suicidio e me vejo muito nisso também. Ainda tenho marcas nos dois joelhos porque eu virava a noite ajoelhada pedindo pra Deus tirar isso de mim. 

Então, o catolicismo teve esse papel opressor, mas quando você encontra uma igreja inclusiva e evangélica isso faz parte do seu papel de libertação e de encontro pessoal, certo? Essa é a sua história?

É isso! Porque se no passado a igreja tradicional construiu em mim todo esse arcabouço de medo e de pavor de Deus por ser uma pessoa LGBT, a ICM vem e me diz que isso é normal, é legal e que Deus me fez assim. Hoje eu não quero mais morrer não. Ao contrário, eu quero viver!

Hoje eu quero viver, quero gritar para o mundo, quero militar. Quero dizer para as pessoas que LGBTQIAP+  que elas não são erros de Deus, nem da natureza. Que as nossas identidades, as nossas sexualidades são tão naturais quanto a heterocisnormatividade.

Quero lutar também contra a cisheternormatividade até dentro do movimento LGBT porque existe uma diferença entre ser lésbica, bissexual e gay e ser uma travesti. Então, os lugares em que você circula, os grupos sociais, tratam essas pessoas de forma totalmente diferente. 

Como tem sido essa intersecção entre ser uma pessoa LGBTQIA+ e ser de uma religião cristã, já que os dois lados são vistos como lados opostos? 

Nessa batalha, estou justamente no meio. De um lado, os fundamentalistas vão dizer que eu sou uma aberração, como saiu na Folha de São Paulo em maio deste ano dizendo que eu sou uma anomalia, e do outro lado os meus pares dizem que eu não devo ser cristã, que eu deveria ser ialorixá, budista, que eu deveria ter outra profissão de fé porque o cristianismo é o grande detentor do preconceito. Então, eu tenho que resistir de um lado, resistir do outro e dizer que Jesus não foi LGBTfóbico, que o cristianismo também é para nós LGBTs caso a gente queira, porque fé é uma questão de identificação. 

Em outros altares, pastores anunciam que o corpo das populações LGBTQIA+ precisam de cura por serem corpos pecadores. Como pessoas de outras igrejas têm chegado até você? Que experiências elas levam?

A maioria delas chegam vindas de igrejas evangélicas, das católicas, portanto da experiência cristã. E elas chegam da mesma forma que eu cheguei na ICM, machucadas. Geralmente os mesmos sentimentos. “Eu quero morrer”, “Eu sou uma vergonha”, “Por que eu sou assim? Eu já lutei muito contra isso”, “Me ajuda”. Da mesma forma que eu cheguei. Elas chegam acreditando piamente que Deus não as ama.

A primeira coisa que eu faço é perguntar se posso dar um abraço. Algumas aceitam e outras não e eu entendo. Ela não está acostumada a ver uma pastora travesti conversando com as pessoas. Muitos são gays e lésbicas e existe também essa transfobia internalizada. Já fiquei seis horas atendendo uma pessoa. Ela falando, colocando tudo para fora e eu apenas ouvindo. Muitas pessoas chegam e nunca mais aparecem, enquanto outras voltam e se tornam irmãos da comunidade, amigos.

Um estudo da Sensata descobriu que a ideia de impedir que os outros cometam pecado está impulsionando a rejeição das causas ligadas aos direitos humanos, como a causa LGBTQIA+. É possível dialogar com essa população evangélica que acredita estar salvando as pessoas? Existe uma outra noção de pecado que poderia ser trabalhada?

A gente precisa compreender que o termo pecado não é atrelado à nossa prática de sexualidade. Não é. O pecado do grego é bem claro pra quem fez uma boa faculdade de teologia. Pecado é quando eu erro o alvo. E o que é errar o alvo? Errar o amor. Isso é pecado.

Toda essa tentativa de salvar as pessoas que eles estão dizendo não é uma tentativa de salvar. O que eles estão fazendo é apregoando uma atitude de condenação, condenação essa que é fruto e responsabilidade de lideranças que sabem o que elas estão dizendo. É um discurso completamente falacioso.

A gente precisa compreender que nos evangelhos em nenhum momento Jesus vai se preocupar com isso. Ao contrário, nos quatro evangelhos a única preocupação de Jesus foi apontar para o sistema religioso do seu tempo. Até porque Jesus não foi cristão, ele foi judeu. Ele nasce dentro da religião judaica e vai buscar desconstruir os termos da religião judaica que oprimiam o povo de Deus.

O pecado é quando eu exerço opressão, morte, condenação sobre a vida do outro. Imagina um pastor, uma pastora, um padre, um bispo que é colocado à frente de uma comunidade para anunciar bênçãos, mas só anuncia a maldição? E pior, usa do versículo bíblico recortado para legitimar esse discurso. Essas pessoas não querem dialogar. Já participei de congressos, simpósios, e tentei levar essa perspectiva do diálogo e de entender que a Bíblia, que a palavra de Deus precisa ser contextualizada. Mas foram tentativas frustradas porque esses pastores não querem dialogar. 

Reverenda, estamos em ano de eleição e as pessoas evangélicos têm feito a diferença nas votações. Como a senhora vê esse cenário de relevância dos evangélicos, a necessidade de representatividade e também a sua própria atuação política? 

Neste ano eu estive pré-candidata a deputada estadual pelo PT em São Paulo. Comecei a minha atuação no que nós chamamos de política institucional em meados de 2015 pelo PSOL. Em 2018 disputei para deputada estadual do PSOL com o fundo partidário de R$1.500 e tive 11 mil votos. E por várias questões, principalmente a atual conjuntura, eu entendi a urgência de me filiar ao PT e de estar nas trincheiras do partido na tentativa da retomada da democracia do nosso país.

Enquanto clériga eu entendo a urgência de combater na casa legislativa o posicionamento da bancada da Bíblia. Precisamos de representatividade e de uma outra postura. Tanto aqui em São Paulo quanto lá em Brasília, em todas as casas legislativas a bancada evangélica tem sido uma máquina de dinheiro. Com rede social midiática elegem os seus pastores, que reproduzem e que perseguem pautas caras para minha comunidade.

Então, não dava para eu ficar assistindo tudo isso sem fazer nada. Precisei me posicionar de maneira clara e entrar nessa disputa, ainda que seja muito desafiador pra mim. Porque, como eu já disse antes, sou atacada dos dois lados. 

Qual futuro que você sonha para o Brasil e o que você está fazendo hoje para alcançar esse futuro, Reverenda?

Eu espero um futuro em que ninguém passe fome. Que nenhum LGBT seja morto por ser quem, principalmente a minha comunidade, mulheres trans e travestis, pois somos o país que mais mata mulheres iguais a mim e são mortas com requintes de crueldade extrema. Eu sonho com um Brasil não transfóbico, não LGBTfóbico. Sonho com um Brasil antirracista. Sonho com um Brasil onde os corpos das mulheres não sejam violentados, principalmente quando elas estão lá dando à luz, como aconteceu recentemente. Eu sonho com um país onde os professores e as professoras sejam reconhecidos como grandes mestres e tenham uma remuneração e qualidade de trabalho dignas.

Eu sou professora, eu sou travesti, eu sou mulher sua mãe, então, estar à frente dessas pautas participando de tantos coletivos e me posicionando sendo uma travesti preta e periférica é o que me fortalece.

Quando eu consigo reunir mulheres para debater política, mesmo sem ter um gabinete político, mas temos a nossa casa, a rua, a internet. Hoje, nós somos um movimento organizado. É por isso que os homens ficam bravos, por isso que o fundamentalismo fica muito nervoso com a gente porque a gente se organizou. Não aceitamos mais ficar somente dentro de casa entre comadres conversando. Não. A gente vai pra rua, a gente pinta a cara, a gente levanta as nossas bandeiras e leva spray de pimenta na cara da polícia.

De todas as revoluções feitas na sociedade, na espada, na bala, existe uma revolução que está em curso que é a revolução do gênero e falar de gênero é importante. É isso que vai mudar o mundo. 

Reverenda, a gente espera que o podcast FÉministas alcance outras pessoas evangélicas que talvez não sejam progressistas. Qual mensagem você gostaria de deixar para essas pessoas? 

Eu gostaria de lembrar que os textos dos quatro evangelhos dizem de maneira clara que Jesus amou as pessoas. Jesus não amou a dogmatização da religião, Jesus não colocou a religião acima da realidade humana. Ele acolheu todas as pessoas.

Se Jesus caminhasse, hoje, entre nós, não estaria nas igrejas, nos púlpitos e nos altares luxuosos. Jesus estaria na cracolândia, Jesus estaria caminhando nas vielas das favelas, Jesus estaria caminhando no meio das prostitutas. Não para condená-las, não pra dizer que elas não eram amadas, pelo contrário. Ele diria que Deus também as ama.

Então, quando você usa textos bíblicos dizendo LGBTQIA+ são pessoas abomináveis, você não está cumprindo o ensinamento maior de Jesus que é amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a ti mesmo. E lembrar também que João nos diz: Se você diz que ama a Deus, mas discrimina o seu irmão, abomina o seu irmão, humilha, você é um mentiroso, uma mentirosa. Você  não está cumprindo a palavra de Deus. Então, pare de usar o texto bíblico como forma de condenação. Será que Deus não está te chamando pra rever os textos e para olhar para além dos textos. Olhar a vida. É a vida humana que importa. 

Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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