O período de pandemia, seguido dos últimos anos em que pudemos observar uma crescente radicalização do pensamento extremista, misógino, intolerante, machista — onde a violência é justificada a qualquer custo e todos os dias milhares de meninas e mulheres são assassinadas — trouxe para mim a urgência de tratar do silenciamento imposto às mulheres durante o período da ditadura militar brasileira. Afinal, muitos passaram a reivindicar o seu retorno em frente aos quarteis e na tentativa de golpe de Estado recente.

Apesar de continuamente as mulheres serem relegadas ao segundo plano da História, dita e escrita majoritariamente por homens, centrada em conquistas e exemplos da masculinidade ou que exaltam o patriarcado; elas sempre estiveram presentes nos movimentos por transformações, em mobilizações sociais, em contestações ou luta por direitos. 

Quase invisíveis nos registros oficiais, as mulheres se organizaram em associações, sindicatos, clubes de mães, comunidades eclesiais e aprenderam, a seu modo, a resistir aos regimes totalitários e opressores.

Não me surpreendeu a pouca literatura dedicada ao recorte que me chamava atenção: em uma lista massivamente masculina de homens torturados e mortos ou desaparecidos durante o regime, existência possível apenas dada pela Comissão Nacional da Verdade — instituída pela lei 12.528 de 18 de novembro de 2011 e assinada pela então presidenta Dilma Rousseff — encontrei poucas mulheres. 

Inquieta, comecei a escarafunchar o que estava disponível na internet e ao meu alcance. Embora todos os arquivos sejam públicos e acessíveis com um clique, ninguém que eu conhecia e que não estivesse dedicado à pesquisa havia lido esses documentos. Os relatórios longuíssimos, em linguagem bastante formal e que contém testemunhos, atestados de óbito, depoimentos e outros textos, tornam a leitura pouco acessível ao grande público. Ao contrário, até por tratarem de situações tão dolorosas e delicadas, afastam as pessoas.

Passou a viver em mim um desejo de fazer com que essas mulheres fossem conhecidas por todos, não só por seus familiares ou por pesquisadores. E dessa vontade surgiram duas perguntas: como transformar essas informações tão duras, mas tão necessárias, em algo mais palatável, literário e poético? E como levar essas histórias ao conhecimento da sociedade para que o horror e a barbárie nunca mais se repitam?

Eu dormia e acordava com essas questões. E depois com outras: como calar os pedidos de retorno da ditadura?

Como alertar as pessoas de que a manutenção da democracia é fundamental para uma vida plena de direitos e deveres? Por que acreditam que a violência e a opressão são os únicos caminhos para nosso país? Questões que, imagino, muitos também carregam consigo.

Minha experiência como professora confirmou essa lacuna: os jovens brasileiros pouco sabem sobre a ditadura, como se o regime não tivesse deixado marcas que carregamos até hoje. Talvez essas marcas estejam em seus pais e avós, que, por medo ou por um olhar distorcido da realidade, sepultaram o assunto.

Honrar e preservar histórias e memórias silenciadas

Foi assim, que após mais de seis meses de pesquisas e escrita, nasceu o recorte e o argumento de “Rosas de Chumbo”: recriar, de forma ficcional, as histórias de 50 mulheres torturadas e assassinadas pelas mãos do Estado entre 1964 e 1983. Eram estudantes, donas de casa, filiadas a partidos políticos, operárias, trabalhadoras, militantes, artistas. Diferente das que sobreviveram e puderam honrar a preservar suas histórias e memórias, como Eunice Paiva, essas mulheres tiveram suas vozes silenciadas para sempre.

Esse livro é fruto de muitos anos de incômodos, sobrepostos como as camadas de uma rocha sedimentar. Minha trajetória como escritora, professora e militante dos Direitos Humanos me preparou, aos poucos, para enfrentar essas leituras e amadurecer a escrita. Para mim, maturidade literária significa a capacidade de depurar imagens e transformá-las em poesia, crônica, narrativa ficcional ou qualquer outro gênero capaz de transmitir emoção e reflexão.

“Rosas de Chumbo” oferece a cada uma dessas mulheres a chance de serem lembradas, de recuperarem suas vozes silenciadas e de dizerem algo para além do esquecimento. Para nós, fica a chance de aprender com o passado e fazer do presente um lugar mais justo para todas as mulheres e meninas. Ditadura nunca mais!

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  • Daniela Bonafé

    Escritora, professora e militante dos Direitos Humanos. Já publicou nove livros e recebeu prêmios literários. Transita e...

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