Domingo, vinte e seis de setembro de dois mil e vinte e um. Convivendo com minha mãe, a tenho olhado mais a cada dia e percebo o avanço dos esquecimentos. Lido com seus lapsos de memória evocando outras lembranças noutros cantos de suas representações do passado. Às vezes, do nada, ela diz “quando eu era menina, se fazia assim…” e eu estico a audição para não perder nem um cadinho de como foi, para uma menina, moça e mulher camponesa, as experiências num mundo onde realizavam  quase sempre as expectativas dos homens.

Me pego pensando nas outras tantas mulheres que, hoje octogenárias, somam experiências de suas vidas de tremores, dores, alguns poucos prazeres, estes últimos especialmente associados ao cuidado e amor para com os filhos. No tempo de colher sabedorias e espraiar sorrisos, acalentar netos e festejar aniversários, são tolhidas pelos limites que lhes reservam um lugar difícil  e doloroso. Sim, têm dores na velhice, e o corpo sente.

Ouvindo minha mãe, me vêm histórias de tantas outras mulheres que moveram muros e deram conta de prover vidas, mesmo que seus dias fossem curtos para os tantos afazeres. Quem não se move, não sente as correntes”, disse Rosa Luxemburgo. Sim, as mulheres têm histórias extraordinárias, cada qual com suas sinas, memórias e cicatrizes. Algumas se destacaram e entraram para os anais da História; a outras tantas, restou o anonimato e o esquecimento.

“As mulheres têm uma História?”, perguntou Michelle Perrot lá pela década de 1970. A esta pergunta, advieram outras específicas sobre diferentes trajetórias de mulheres. A partir da década de 1970, pesquisas vêm mostrando histórias de mulheres que estavam recônditas e invisibilizadas. O questionamento partiu de uma mulher acadêmica, branca, europeia, que mulheres negras contestaram por não se sentirem incluídas. Denunciavam as limitações de oportunidades para as mulheres negras, o sexismo e as violências que sofriam desde o início da colonização europeia nas Américas e em todas as partes do mundo.

Na história do Brasil, todas as mulheres sejam negras, brancas, indígenas vêm sendo visibilizadas através da literatura, da poesia, de pesquisas em arquivos e das memórias há muito esquecidas. Essa recuperação deve-se, em grande parte, à militância dos movimentos sociais e feministas, e com a inserção de mais mulheres na esfera pública como pesquisadoras, professoras, literatas, ativistas, sindicalistas, parlamentares, dentre outras.

Nas últimas duas décadas, multiplicaram-se escritos sobre mulheres com perspectivas diversas, mas todas denunciando os maus tratos do patriarcado e a solidão de suas vozes ancestrais, ou mesmo contemporâneas. Uma olhadela pelas redes faz surgir milhares de produções. Destaco Conceição Evaristo que, na poesia, na literatura e na militância, nos mostra que sim, as mulheres negras fazem parte da História.

Em Santa Catarina, até então, pouco ou nada se falava de mulheres em sala de aula. Eu não tive nenhuma referência sobre elas nos meus anos de escola, nem a geração seguinte. Tampouco ouvi falar sobre violências de gênero que, sabemos, sempre estiveram no cotidiano das mulheres e, por conseguinte, das crianças e adolescentes em idade escolar.

Neste mês, dia 14, a assembleia legislativa fez aprovar o projeto de Lei 86/2019 que incluiu a “História das Mulheres do Campo e da Cidade em Santa Catarina” como conteúdo transversal no currículo das escolas públicas e privadas do Estado. Com a autoria da deputada Luciane Carminatti (PT) e com coautoria da Bancada Feminina da ALESC, o projeto pretende ampliar a legislação em prol da equidade de gênero. Este projeto foi gestado a partir das demandas de organizações feministas, conselhos da mulher e coletivos que reivindicam que a história seja recontada incluindo a inclusão das mulheres.

O argumento central é que promover o conhecimento sobre a existência e a trajetória de mulheres catarinenses que contribuíram, e contribuem, para uma educação cidadã à medida que lhe confere visibilidade, destacando outras trajetórias que não só as dos homens. Mostrar o protagonismo, as resistências, as lutas, as experiências pessoais e coletivas, trajetórias profissionais e a inserção destas mulheres nos diferentes espaços possibilita reflexões sobre o respeito às mulheres, suas lutas e diversidades étnica e racial no campo e na cidade.

“É preciso que as escolas reconheçam e contem essas histórias. É uma grande conquista. Combater a violência é, também, falar da história das mulheres, é dar visibilidade a elas”, afirma Carminatti. Portanto, é de direitos humanos e de dignidade que estamos falando.

A proposta, aprovada por 20 votos a 5, mostra que ainda há parlamentares avessos quando se trata de incluir e dar visibilidade às mulheres. Pasmem, uma deputada que, contrária ao projeto de lei, sugeriu que a iniciativa fosse estendida também à história dos homens. Sem comentários porque não merece…

As mulheres são mais de 50% da população catarinense. O reconhecimento daquelas que se destacaram, e se destacam, de alguma forma é imprescindível, bem como o respeito e visibilidade a todas elas, estejam onde estiverem, lutando de seu jeito. Elas carregam a força das lutas por sobrevivência e inventam formas de driblar as intempéries do cotidiano. Elas transgridem, mexem-se, não são passivas nem submissas porque agem e se refazem todos os dias. Estão em todos os lugares provendo vidas.

Elas se fazem presentes em todas as áreas do conhecimento, porque conhecer é ter experiência acumulada no que fazem. São agricultoras, parlamentares, trabalhadoras no trânsito, artistas, cozinheiras, trabalhadoras da saúde, cuidadoras, operárias, comerciantes, cientistas, catadoras de lixo, freiras, mães, sindicalistas, jornalistas, professoras, costureiras, advogadas, mecânicas, mães de santo, trabalhadoras do sexo, pescadoras, parteiras, lavadeiras, policiais, empresárias, estudantes, arquitetas e outras tantas funções onde atuam.

O Estado tem nome de Santa Catarina, tem nome de mulher. Santa Catarina de Alexandria era erudita e sábia, debatia com os homens, e por isso incomodou o poder de sua época, no século 4. Consta que morreu pelas mãos de um carrasco por não aceitar as ordens do imperador romano para que com ele se casasse, abjurasse o catolicismo. Preferiu desafiar e morrer. Por isso, é padroeira dos estudantes, filósofos, advogados e, por sua virgindade intacta, de jovens e donzelas solteiras. Controvérsias à parte, a padroeira do Estado foi uma mulher de seu tempo, assassinada por ser erudita e ter preservando-se virgem. Os mitos se reproduzem sobre os corpos das mulheres… Catarina de Alexandria se tornou padroeira oficial de Santa Catarina em 1922.

A história das mulheres converge pelo fato de serem mulheres em sociedades patriarcais. Têm em comum terem sido caladas, silenciadas, invisibilizadas, submetidas a uma cultura machista de violências e desqualificação. Foram educadas para serem dóceis, submissas ao pai e ao marido.

Todavia, muitas delas romperam prescrições de gênero a seu modo e por suas vontades. Romperam grilhões, cintos de castidade, mordaças, casamentos violentos, pais autoritários, patrões exploradores e foram à luta. Cada qual no seu tempo e lugar.

Em Santa Catarina, algumas delas alçaram lugares de destaque por terem se dedicado ao cuidado dos mais pobres em obras sociais, como Santa Paulina e Zilda Arns. Outras por terem ousado falar e escrever num tempo em que era esperado que ficassem quietas, como a escritora e professora Antonieta de Barros. Ou, como fez Irene de Souza Boemer, radialista e colunista em Itajaí por cinquenta anos desde 1947, quando o espaço público era quase exclusivo dos homens.

Chica Pelega, guerreira que lutou em Taquaruçu contra as injustiças que culminaram com a Guerra do Contestado, está no imaginário social dos movimentos pela terra.  Na história política, Anita Garibaldi destacou-se por lutar nas guerras republicanas durante a Revolução Farroupilha, bem como na Unificação da Itália. Deixou o legado das mulheres que ousam e têm a coragem de deixar o casamento para seguir um homem por amor e lutar por ideais, isso num tempo em que mulheres que abandonassem o marido ficavam mal faladas, e mais ainda por ocupar espaços ditos dos homens nas batalhas.

Já a menina Albertina Berkenbrock tem seu nome na história religiosa do Estado catarinense por ter sido vítima de violência sexual, ocorrida em 1932. Entrou para os anais das mártires católicas ao se defender de um estupro e manter a pureza do corpo e da alma: a virgindade. Tinha 12 anos. Beatificada em 2007, as representações a descrevem como modelo de perfeição em vida e ideais de feminilidades, de virgindade, de recato, de família, de obediência ligadas ao controle do corpo e da sexualidade. “Neste ciclo, mulher, corpo, pecado e santidade é que se constroem, ainda na contemporaneidade, os modelos ideais a serem seguidos pelas católicas”, analisa a historiadora Ana Claudia Ribas. O retorno, ou a afirmação do conservadorismo se reproduz.

Outras mulheres, contemporâneas, militantes em diferentes áreas, merecem ser lembradas por seus engajamentos em causas sociais e políticas. Destaco Uda Gonzaga, professora e líder comunitária no Monte Serrat, em Florianópolis. Irma Brunetto, atuante no Movimento Sem Terra (MST). Justina Cima, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Kerexu Yxapyry, gestora ambiental pela UFSC e primeira cacica Guarani reconhecida no Brasil.

Jeruse Romão, pesquisadora, militante e autora do livro “Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil”. Lirous K’yo Fonseca Ávila, atuante nos movimentos LGBTQI+, representante da Associação em Defesa dos Direitos humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH). Luzia Cabreira, advogada de causas populares. Miriam Pillar Grossi, destaque nos estudos feministas e mulheres e ciência. Urda Alice Klueger, na literatura. Tantas outras, ainda anônimas, serão localizadas e inseridas como temas de estudo.

Acrescento mulheres que estiveram e estão na esfera pública política, como Antonieta de Barros, primeira Deputada Estadual, Clair Castilhos, feminista militante e primeira vereadora de Florianópolis, Luci Choinoski, Luciane Carminatti, Carla Ayres, Ana Lúcia Martins e Maria Tereza Capra, dentre outras que alçaram os parlamentos e fazem a história das mulheres de Santa Catarina.

A aprovação da Lei que incluiu a “História das Mulheres do Campo e da Cidade em Santa Catarina”, que prevê um ano para adequar-se aos currículos escolares, é importante para que estudantes e a sociedade conheçam mulheres até então invisíveis e ignoradas nas suas atuações na construção da sociedade. Elas estiveram e estão presentes, fundamentais em todas as atividades de ensino, na agricultura, no comércio, na pesca, nas áreas da saúde, no trabalho doméstico e todas as que asseguram a reprodução da vida.

“Atualmente, as relações sociais no Brasil (e em Santa Catarina) são pautadas na desigualdade entre homens e mulheres na área do trabalho, na esfera familiar, no campo da política institucional, etc. Essas relações sociais geram salários mais reduzidos e dupla jornada de trabalho para as mulheres, uma baixa representatividade feminina no parlamento, e violências que muitas vezes resultam em feminicídio“, aponta a pesquisadora Silvia Maria Favero Arend (Udesc). Sim, as violências aumentam se as relações sociais são desiguais.

Assegurar que conteúdos sobre atuações de mulheres sejam temas de reflexões entre estudantes, além de promover a cidadania, aponta para olhares diferenciados sobre os cotidianos de estratos sociais diversos. Permitem conhecer as diferenças e diversidades na promoção de uma sociedade de paz, sem preconceitos de gênero e sem violências.

Não há limite para o que nós, como mulheres, podemos realizar”.

Michelle Obama.

Marlene de Fáveri, 26 de setembro de 2021. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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