Em entrevista ao projeto Mulheres semeando a Vida, Kerexu fala sobre as ações das mulheres indígenas para construção do Bem Viver

Durante todo o mês de agosto, o Portal Catarinas em parceria com o Prosa, grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), está promovendo a campanha “Mulheres Semeando a Vida” que tem como protagonistas seis mulheres, duas indígenas e quatro camponesas, que no presente estão construindo o Bem Viver, através de práticas agroecológicas. 

Hoje, vamos conhecer um pouco mais sobre a Kerexu Yxapyry, a primeira cacica Guarani reconhecida no Brasil e a primeira cunhã (mulher) Coordenadora Tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa e da Comissão Nhemonguetá. Kerexu é Mbyá Guarani, tem 41 anos, é mãe de três filhos, gestora ambiental pela UFSC e mora na Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC). Atualmente, ela integra a Coordenação Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). 

Em entrevista, Kerexu Yxapyry fala sobre como é feito o modo de produção agroecológica na TI Morro dos Cavalos, a simbologia que atravessa as sementes nativas, as ações de resistência que as mulheres indígenas estão promovendo para construir, hoje, em sua comunidade um futuro com justiça de gênero, ambiental e social. 

“ […] nós cultivamos e buscamos essa questão das sementes por todo lugar, a gente nunca perde (as sementes). As mulheres responsáveis por elas são as guardiãs das sementes. Então, é por causa de nós, mulheres, e da semente do milho que ainda existe Guarani no mundo, porque nós somos responsáveis por essa origem”, afirma Kerexu. 

Kerexu também compartilha ensinamentos sobre o nhanderekó, aspecto central da cosmologia Guarani. “[…] ekó pra nós significa vida, cada ser tem o seu ekó. […] E a gente tem também o tekó, o eu, a minha vida, o meu corpo físico carregando a minha vida dentro do meu corpo. Esse corpo é uma casa, um templo da vida. E a gente tem tekoá, para nós o espaço, o ambiente onde vivem os corpos com vida. O nhanderekó é onde a vida está e é relacionado com todos: com o corpo, com o espaço, com a parte do ambiente. E nós conseguimos fazer circular essa vida, esse respiro, que eu consigo compartilhar com as plantas, com os animais, e com outros seres humanos”, explica Kerexu.

Além disso, Kerexu ressalta a importância da demarcação das terras indígenas para reprodução dos modos de vida dos Povos Indígenas. A Terra é, sobretudo, espaço que permite (re)construir, manter e perpetuar coletivamente elementos culturais, sociais, espirituais, econômicos, entre outros dos povos originários de Pindorama (como era designada por povos indígenas a região hoje chamada Brasil, antes da colonização). 

Confira a entrevista:

Portal Catarinas – Em um mês de entrevistas, temos observado que as sementes crioulas são um ponto em comum na luta das mulheres indígenas e camponesas. Qual a importância delas para as mulheres Guarani? Aliás, vocês usam o termo “sementes crioulas”?

Kerexu – Nós falamos “sementes nativas”. Mas, primeiro, eu quero falar um pouco da semente do milho. O milho para nós é o mestre das sementes, ele traz a força da espiritualidade. Quando a gente consagra a semente do milho, automaticamente todas as outras sementes estão sendo consagradas. Então, a gente consagra a semente do milho, planta, quando a gente vai fazer colheita, a gente faz a consagração do milho e do alimento do milho. Depois que a gente colhe, a gente faz o batismo do alimento. E é através dessa semente que nós recebemos o nosso espírito e o nosso nome. Por isso, nós cultivamos e buscamos essa questão das sementes por todo lugar, a gente nunca perde (as sementes). As mulheres responsáveis por elas, são as guardiãs das sementes. Então, é por causa de nós, mulheres, e da semente do milho que ainda existe Guarani no mundo, porque nós somos responsáveis por essa origem.

Confira no primeiro episódio do nosso podcast, a história do milho, contada por Kerexu. 

Nós sabemos que o avanço do agronegócio e da “modernização” da agricultura, trouxe uma diminuição das sementes nativas em detrimento das transgênicas. Vocês possuem algum projeto de recuperação das sementes nativas? 

Sim, nós temos um projeto dentro da aldeia, de agricultura dentro da comunidade. Temos por costume também fazer a troca das sementes. Dentro da mobilidade Guarani que existe, a gente precisa fazer essas trocas de sementes, fazer elas circularem pelo território Guarani. Porque se a semente estiver fraca onde eu moro, porque a terra é fraca, lá em outro território, onde a terra estiver mais forte, ela vai se fortalecer. E se eu pegar uma semente forte de um outro território, que veio de uma produção mais forte, e trazer para essa terra que está enfraquecida, eu vou fortalecer a terra aqui. 

Como é a produção de alimentos na Terra Indígena? 

A gente tem um trabalho aqui no Morro dos Cavalos que é um processo de vários fortalecimentos. Uma delas é o fortalecimento com a terra. A gente está em um espaço, em uma área bem degradada, então, a gente precisa dar vida para essa terra, fazer com que ela faça a sua produção. Então, a gente trabalha muito com a terra, com folhas, com o esterco, com esses adubos orgânicos, a gente cria galinha, a gente pega esse adubo, esse esterco e coloca na terra. O que funcionou para nós num primeiro momento foi coletar folhas velhas que estão no meio do mato, sacos daquelas folhas e ir jogando, porque tem muito microrganismo ali dentro dessas folhas que vão se decompor e misturar com a terra. Hoje, a gente tem mandioca, batata-doce, todas as espécies de hortaliças, plantamos milho, feijão, abóbora, amendoim e outros tipos de frutas. Além da agricultura, da roça que a gente faz, a gente também trabalha com as hortaliças e as árvores frutíferas, essa parte da agroecologia mesmo.

Eu sempre falo assim que a agroecologia é a nossa forma de viver científica, comprovada cientificamente.

Em 2020, a gente teve uma produção maior na comunidade, principalmente do milho. Além disso, nós temos aqui o ovo, a própria galinha e os peixes. E a gente procura produzir de maneira circular desde a galinha. Ela é uma que ajuda muito nessa questão da alimentação, do adubo. O tanque de peixe, a água que escorre pra fora já serve também para irrigar a horta, então, ela já vai também com esse fertilizante natural que vem dos peixes. E também o que a gente produz a gente divide com galinha e com o peixe porque eles adoram também comer uma hortaliça.

O que seria uma alimentação ideal para você? O que é necessário para tê-la?

A alimentação ideal para mim é aquela que nós mesmos produzimos, aquela que desde a semente a gente sabe da onde vem. Mais do que alimentar para matar a fome, a gente também estava sabendo qual é o nutriente que está consumindo. (…) na minha infância toda eu fui muito bem alimentada, eu morei junto com a minha avó e sou a primeira neta. No nosso povo, a primeira neta sempre tem aquele mimo, por ser menina, esse cuidado é maior pelos avós maternos. Meus avós sempre produziram o próprio alimento e me ensinavam. Eu me lembro das laranjas. A minha avó ia buscar laranja num vizinho e no inverno ela fazia o remédio da laranja. Ela pegava a laranja e assava a laranja para a gente comer. Então a gente comia a laranja assada, era o remédio. Hoje eu conto isso para os meus filhos e eles falam que é impossível comer uma laranja assada. E eu comia laranja assada. 

A gente comia e ela tinha que estar quentinha, para a gente comer ela quentinha, porque isso ia fazer o efeito da medicina da fruta dentro de nós.

Então, para minha neta que está com quatro anos e é muito batalhadora, tento passar isso. Ela adora estar na roça, na horta. Quando ela tinha dois anos, a gente fazia brincadeira e perguntava para ela: se um dia você puder viajar, para onde você quer viajar? E ela falava “para horta” (risos), que era o espaço que ela adorava ir porque tinha muita coisa boa lá na horta para comer. Esse é o meu entendimento como qualidade de vida: a alimentação saudável. 

Vocês estão fazendo reflorestamento no território? Como isso ocorre?

A gente tem aqui no Morro dos Cavalos o projeto de reflorestamento porque a área é muito degradada, tem uma parte que é aterro da BR-101 e outros aterros que foram feitos nesses espaços. Na área do morro mesmo, que na BR a gente passa e olha, tem morro dos dois lados, a maioria deles são plantações de pinus, de uma árvore invasora que degrada muito o solo. No período de faculdade, eu fiz o projeto de recuperação de uma área e durante esse trabalho na aldeia eu fui denunciada três vezes. Mas eu consegui fazer por ser um projeto acadêmico. Depois disso eu não consegui mais fazer porque eu já tinha saído da Universidade e eu não tinha como fazer um projeto só para a comunidade. Não era permitido isso. Mas a gente criou um Plano de Gestão Territorial na Terra Indígena Morro dos Cavalos e a partir dele a gente colocou a recuperação dessas áreas degradadas. Nós fizemos um projeto com as mulheres de retirar os pinus e fazer o reflorestamento. Nós temos uma área onde a gente está fazendo a recuperação de algumas nascentes que secaram, e conseguimos recuperar algumas nascentes. E dentro dessas áreas a gente trabalha com reflorestamento de árvores nativas mesmo. Plantar próximo do rio, próximo das nascentes. Tem uma outra parte que a gente trabalha muito a questão do solo. A gente vê quais são as espécies que irão nascer a partir do momento que a gente tira o pinus. 

No primeiro e terceiro episódios do “Mulheres Semeando a Vida”, Kerexu conta mais sobre o reflorestamento na TI. Para não perder, siga o podcast clicando aqui. 

O que significa o nhanderekó? É o mesmo que Bem Viver?

Nhanderekó para nós é um sistema de vida e para esse sistema de vida funcionar tem que estar tudo interligado. Vou usar o exemplo dos alimentos, para nós não vale a pena investir em algo, fazer algo que eu não sei a qualidade dele, a origem dele, qual é o nutriente e o benefício que isso está trazendo para mim também. Porque para nós tudo é uma troca. O que eu fortaleço lá tem que ser fortalecido aqui. Então, é essa troca que a gente carrega. A gente sempre fala: existe um sentimento, mas não existe uma conscientização, que é o que a gente vê hoje no mundo, no planeta, muita gente falando “precisa reflorestar, precisa fazer isso, precisa fazer aquilo”, mas às vezes as pessoas não plantam árvores, não buscam fortalecer quem planta, não fazem esse apoio. Então, para nós, nhanderekó é isso. Você tem que saber o que você está fazendo, para que você está fazendo, porque.

O Povo Indígena carrega dentro de si esse sentimento de “somos filhos de uma criador, sustentado por uma mesma mãe, somos uma família, e se somos uma família nós temos que proteger, respeitar. Todo tempo estar nessa linha de frente ajudando porque é nossa função. É mais do que proteger a vegetação e os animais, é proteger o todo. Isso para nós é o nhanderekó.

Por exemplo, ekó pra nós significa vida, cada ser tem o seu ekó. […] E a gente tem também o tekó, o eu, a minha vida, o meu corpo físico carregando a minha vida dentro do meu corpo. Esse corpo é uma casa, um templo da vida. E a gente tem tekoá, para nós o espaço, o ambiente onde vivem os corpos com vida. O nhanderekó é onde a vida está e é relacionado com todos: com o corpo, com o espaço, com a parte do ambiente. E nós conseguimos fazer circular essa vida, esse respiro, que eu consigo compartilhar com as plantas, com os animais, e com outros seres humanos. Então, isso para nós é o nhanderekó, é viver esse Bem Viver com todos, compartilhar isso com todos. Não tem tradução. 

Como a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) trabalha essas questões?

A Comissão Guarani Yvyrupa tem essa questão de primeiro manter o nhanderekó. O trabalho da Comissão Guarani Yvyrupa tem como base, como regra em todas as decisões o nhanderekó, que é esse modo de vida. Então, a partir dali, a gente sempre fala assim: se a gente precisa viver bem, a gente precisa viver esse Bem Viver, a gente precisa da terra, porque é ela que vai nos dar tudo isso. E a gente trabalha dentro dessa questão política mesmo da comissão de conseguir fortalecer o nhanderekó através de apoio, inclusive jurídico, de entrar nas ações e legislações das terras, das questões fundiárias. A gente tem outros projetos de fortalecimento da espiritualidade. Hoje, nós estamos com esse projeto dentro da Comissão e nós temos as construções das casas de rezo em todo o território Guarani, nós temos o fortalecimento das kokue (as roças nas comunidades), nós temos também o fortalecimento da troca das sementes por todo o território Guarani. Nós temos também dentro da Comissão o fortalecimento das mulheres.

Trazer o fortalecimento do papel da mulher, qual é a nossa função na terra já que nós somos as guardiãs das sementes. Dentro desse fortalecimento da espiritualidade a gente precisa fortalecer as mulheres, a gente precisa olhar para essas mulheres e ver como vamos fortalecê-las para darmos continuidade ao nhanderekó, para que as crianças continuem recebendo os nomes, para que a gente consiga produzir nosso milho, nossa alimentação.

E as pessoas não indígenas podem se somar às lutas?

Dentro da Comissão, a gente está puxando várias frentes dentro do território. A gente está pensando em fazer uma campanha para envolver as pessoas que não são indígenas, apoiadores, para fazer uma conscientização maior no reflorestamento da Floresta Mata Atlântica. Porque nós somos dessa floresta. O Povo Guarani é dessa floresta. Para nós, a Floresta Mata Atlântica é o cinturão verde de proteção de todas as outras florestas. A gente sente o desequilíbrio do planeta hoje, a gente vê a Amazônia sendo atingida. E se ela for destruída como foi a Floresta Mata Atlântica? A gente tem que pensar nisso. E se a Floresta Amazônica começar a ser toda concretada e o agronegócio começar a predominar em toda a Amazônia como está sendo na Mata Atlântica? Como que vai ser? A gente precisa pensar nessas questões.

O que você sonha para o futuro?

Eu mesma, meu sonho como Kerexu, é isso que eu já falei da Comissão Guarani Yvyrupa, que é a minha vida na verdade, esse meu trabalho, esse meu modo de viver, sou eu vivendo o meu papel. Eu estou muito satisfeita com o papel que eu tenho desempenhado. Mas o meu sonho é que no futuro, por exemplo, quando outras mulheres chegarem, elas tenham mais receptividade. Porque eu levei muita pancada para chegar até aqui. Eu estou aqui de teimosa que eu sou, porque eu acredito mesmo que isso vale a pena, lutar por essas mudanças. As transformações valem, precisamos ter resistência e persistência porque, como eu falei, quando a gente retribui com a Mãe Terra, a gente tem o retorno muito rápido. 

Os Povos Indígenas, a floresta, os europeus, todos estamos morrendo por toda essa destruição que foi cometida no mundo, com o planeta. Então eu, como povo indígena, hoje venho dizer: Vamos reparar esse erro? Vamos caminhar juntos?

Vamos reflorestar a Mata Atlântica, vamos reflorestar o Pantanal, a Caatinga, a Amazônia, e vamos caminhar juntos porque nós precisamos de vida, precisamos de abundâncias de vida. Nós, Povos Indígenas, somos protetores da vida, somos guardiões da floresta para todo o planeta respirar. Mas, esse é o meu sonho: um dia, por exemplo, todos nós comemorarmos e falarmos que a gente conseguiu reflorestar boa parte e nesse reflorestamento a gente tinha todos os povos indígenas, não indígenas. Todos participando para um Bem Viver de todo mundo. 

“Mulheres Semeando a Vida” faz parte do projeto Narrando a Utopia, uma iniciativa de Puentes para imaginar um futuro feminista, interseccional e inspirador. 

Agradecemos a consultoria das mulheres indígenas e camponesas da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). 

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