O jogador Neymar foi acusado de estuprar uma mulher em Paris. Assim como eu, acredito que muitos tenham tomado conhecimento do caso pela divulgação, feita pelo próprio jogador, de conversas com a mulher, nas quais ele expôs fotos íntimas dela e seu nome. Os pontos em comum nas versões dela e de Neymar é que houve uma troca de mensagens entre os dois por uma rede social, que ela tinha vontade de conhecê-lo (e de transar com ele), que ele custeou a ida dela a Paris e que houve mais de um encontro entre os dois. Em relação ao encontro íntimo, há a grande – e fundamental – divergência: ela consentiu ou não o ato sexual. A análise do possível estrupo deveria estar focada nesse encontro, mas não, isso não parece ser o suficiente.
Primeiramente, nós não deveríamos estar discutindo o caso. A mulher fez o procedimento correto para vítimas de violência, procurando a polícia para registrar o ocorrido. Do registro, os desdobramentos naturais seriam a investigação e um provável processo criminal, que resultaria na condenação ou absolvição do jogador. Mas o caminho não foi esse. O caso foi divulgado de maneira, no mínimo, irresponsável.
Da divulgação, um grande tribunal popular foi instaurado, já com uma condenação: da mulher. Ela quis sexo e sua viagem foi paga, como se isso fosse um consentimento absoluto e seu “não” deixasse de ter relevância. Como disse, o caso não deveria estar em debate, assim, deixo aqui de falar sobre as provas apresentadas pelas partes. O meu interesse é em como isso se desdobrou nos discursos e o que nos diz de nossa sociedade.
O caso sai do campo legal no momento em que Neymar divulga as conversas com a moça, com fotografias dela nua, a expondo, e grava um vídeo, relatando a sua versão dos fatos – de que o sexo seria consensual. A divulgação, que parece ser uma tentativa de sensibilizar o público e enfraquecer a versão do estupro, já que a mulher e ele estavam trocando mensagens de conteúdo sexual, é, na realidade, um novo crime: o de divulgação de nudez sem o consentimento da vítima. Mas isso parece não importar.
Na sequência, Neymar disse que sua assessoria fora responsável pelo conteúdo divulgado, e seu pai, em entrevista, diz preferir “um crime de internet ao de estupro”. O dito “crime de internet” é aos olhos do pai e de muitos, o direito legítimo de expor a intimidade de uma mulher, desqualificando-a como vítima de violência sexual, afinal, ela quis o sexo.
O jogador disse não ser o responsável pelo vazamento das fotografias de nudez e seu pai disse preferir esse crime a outro, o que nos leva a um importante questionamento: quando Neymar responde pelos seus atos? Homens respondem pelos seus atos, ele não. Há um reforço constante de que estamos falando de um garoto, o “menino Ney”, não de um homem de 27 anos. Na primeira aparição em defesa do filho, em programa do apresentador José Luiz Datena, que responde processo por assédio sexual, o pai do jogador disse que a acusação de estupro é resultado de uma tentativa de extorsão por parte da mulher, que seu filho caiu em uma armadilha.
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Em resposta, o apresentador diz que Neymar é um menino, indagando “Você vai falar com o moleque pra não sair com mulheres? Não transar, não ir a festas? É difícil você segurar a meninada dentro de casa.” Na mesma oportunidade, Datena revela o nome completo da vítima, quebrando o sigilo policial, em uma clara tentativa de acuar a mulher, que passa a ter sua vida esmiuçada.
O status de menino de Neymar é reforçado pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Seria forçoso dizer que isso é surpreendente, já que o presidente trata as falhas de seus três “meninos” de mais de 30 anos, Flávio, Carlos e Eduardo, como deslizes de garotos. Porém, quando o líder da nação se posiciona favoravelmente a um homem acusado de estupro, dizendo que ele é um garoto, que está num momento difícil, mas que acredita nele, o que é reforçado por ela ter atravessado o continente para se relacionar sexualmente com Neymar, isso não apenas infantiliza e tira a responsabilidade do jogador pelos seus atos, mas manda um recado à mulher que o acusa e a todas as vítimas de violência sexual: vocês não têm o direito de retirar o consentimento. Isso, em um contexto no qual 70% dos casos de estupro, o agressor é parente, namorado, amigo ou conhecido da vítima (Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, Ipea, 2014).
Por fim, como se não bastasse o aval presidencial à violência sexual, o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) protocolou no dia 06 de junho, na Câmara dos Deputados, um projeto de lei (PL 3369/2019) que visa agravar a pena por falsas denúncias quando se tratar de crimes sexuais. Falsas denúncias existem, mas são raras, e, em se tratando de crimes sexuais, uma lei nesse sentido somente representaria mais um obstáculo à vítima.
De acordo com o estudo americano do National Sexual Violence Resource Center, 63% dos casos de violência sexual não são denunciados, as falsas denúncias representam somente de 2 a 10% do total e apenas 0,06 dos agressores estão presos. Não existe pesquisa em relação à falsa denúncia no Brasil, porém, por medo do estigma e do julgamento social, o crime de estupro tem maior índice de subnotificação, sendo que apenas 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia (Pesquisa Nacional de Vitimização, Datafolha/Senasp/Crisp, 2013).
O referido projeto de lei mostra sua feição desrespeitosa, violenta e misógina ao ser batizado de “Neymar da Penha”, um trocadilho infame com a Lei Maria da Penha. A mulher que deu nome à lei, quase morreu nas mãos de seu companheiro; essa lei é resultado de uma batalha histórica do movimento de mulheres para que o estado criasse mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra mulheres. Mas isso é piada, isso é, como diria um dos meninos presidente, o Eduardo, um motivo para comemorar já que “(…) mulheres inescrupulosas que acusam falsamente homens de crimes e calúnias. Acredite, tem mulher bandida que faz carreira assim!”. Os meninos seguem nos matando e violando, enquanto nós, dissimuladas, seguimos lutando por nossa existência.
*Feminista, cientista política, mestre em Direito, doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPEM/UFMG).