Quem acompanha a trajetória política de Jair Bolsonaro, que teve início na década de 90, ainda como vereador pelo estado do Rio de Janeiro, sabe que seu discurso está pautado em utilizar a miséria e a criminalidade de forma ilegítima para propor medidas autoritárias, travestidas de preocupação política com a população periférica. Bolsonaro defendia, e ainda hoje defende de maneira mais contida, que a esterilização humana da população pobre é considerada uma forma de controle social que tem por intuito estimular o desenvolvimento e progresso do país, mesmo discurso utilizado por movimentos eugenistas de outrora.

Sobre as falas e projetos promovidos por Bolsonaro e seus correligionários, considera-se que é sobre os corpos das mulheres que seus discursos eram direcionados, pois são elas as “fábricas de produzir marginais” (CARNEIRO, 2011). Através da análise das falas proferidas por Bolsonaro enquanto deputado, presidenciável e, agora, presidente da República, que defendem abertamente a prática da esterilização com a finalidade de diminuir a pobreza e a violência, percebe-se quais são os corpos selecionados que não mais devem se reproduzir: os corpos das mulheres negras periféricas.

Foi no período da ditadura civil-militar de 1964, entre as décadas de 70 e 80, que iniciou o debate sobre a esterilização humana como solução para o combate do acentuado crescimento populacional, situação que prejudicava um Estado que pretendia tornar-se um país forte, com autonomia social e econômica.

Os movimentos negros expuseram que a esterilização era um procedimento operado pelo Estado, que visava justificar o genocídio da população negra e pobre (HITA, 2000), tendo em vista que o discurso político usado à época como preocupação com o progresso nacional, nada mais era do que uma maneira de legitimar a esterilização em massa de uma parcela da sociedade que o Estado entendia que não mais deveria se reproduzir. Essa foi uma prática eugênica, de higienização social, que no Brasil escravocrata tinha a ver com a ideia de que a cor da pele determinava o valor do ser humano (brancos eram mais evoluídos que negros e, por isso, detinham mais poder), culminando num preconceito racial que estrutura as desigualdades sociais e econômicas, materializando violações de direitos fundamentais.

A partir dessa realidade, movimentos sociais feministas e de população negra denunciaram a esterilização massiva em mulheres das periferias e pressionaram os políticos para que fosse tomada alguma providência frente ao genocídio que vinha se instaurando com naturalidade. Essa pressão resultou na instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, presidida pela então deputada Benedita da Silva, justamente no período em que a prática se popularizou no país, reforçadas pelas declarações proferidas por Bolsonaro e sua bancada.

A CPI da Esterilização, como foi denominada, utilizou-se de pesquisas a partir da coleta de dados que visava investigar as causas e as consequências do procedimento, que se conduzia de forma totalmente indiscriminada, e não só no estado do Rio de Janeiro.

A pesquisa demonstrou que mais de 45% das mulheres em idade reprodutiva e em uniões estáveis estavam esterilizadas.

O Estado havia, portanto, interferido diretamente no direito à autonomia sobre o próprio corpo das mulheres que haviam sido esterilizadas (BRASIL, 1993), pois a laqueadura tubária foi adotada como único método contraceptivo, desprezando por completo a saúde reprodutiva feminina. Não havia políticas públicas direcionadas à promoção e divulgação sobre os demais métodos contraceptivos ou sobre as consequências de uma laqueadura tubária (esterilização feminina) para fazer com que houvesse a possibilidade de escolha. Essa realidade fez com que as mulheres buscassem, então, a esterilização como única alternativa, desconhecendo o caráter irreversível do procedimento (BRASIL,1993).

Ainda a partir dos dados levantados pela CPI da Esterilização, constatou-se que o maior percentual de mulheres esterilizadas foi encontrado nos estados de regiões que concentram os maiores índices de pobreza no país e onde se concentram uma maioria populacional negra e indígena – regiões Norte e Nordeste – (ALVES, 2014). Logo, fica evidente o caráter eugênico nos discursos e políticas governamentais adotadas que tentam normatizar a esterilização de mulheres marcadas para não mais se reproduzirem, cortinada numa fala de controle de natalidade – eugenia que, neste caso, se fez valer de uma motivação natural como o controle de natalidade, para fazer uma “limpeza étnica”.

Contudo, as propostas sobre o controle de natalidade levantadas por Bolsonaro, que sempre tiveram o discurso direcionado ao grupo mais vulnerabilizado e marginalizado da sociedade, são, acima de tudo, inconstitucionais e violadoras de direitos. A Constituição Federal de 1988 veda qualquer prática coercitiva de planejamento familiar, determinando que a organização da família deve ser tratada como um direito social e não mais como um problema demográfico e socioeconômico, completamente rechaçado pelo ordenamento jurídico atual.

Depois, o argumento de conter o acréscimo do número populacional não se sustenta, pois uma pesquisa realizada pelo IBGE em 2015 demonstrou crescente declínio na taxa de fecundidade, que passou de 2,14 filhos por mulher em 2004 para 1,74 em 2014. Houve, portanto, uma queda de 18,6% no número de filhos concebidos por mulher, conforme aponta a Síntese de Indicadores Sociais de 2015, o mais recente levantamento sobre o assunto (IBGE, 2015).

É neste espaço que transitam as manifestações do presidente da República, que, ao longo de sua extensa carreira pública, apresentou projetos e defendeu abertamente a esterilização humana de pobres como forma de combater o aumento da pobreza e da criminalidade. Bolsonaro apresentou três projetos que retiram todas as restrições estabelecidas pela Lei do Planejamento Familiar[1]. Dois destes projetos foram arquivados e o último deles, o Projeto de Lei 7438/2006, está sendo apreciado desde o ano de 2009.

Em 1992, logo no início de sua carreira parlamentar, Bolsonaro já demonstrava disposição para trabalhar sobre um controle rígido de natalidade, sob a alegação da eliminação do que considera um atraso para o progresso nacional.

“Devemos adotar uma rígida política de controle da natalidade. Não podemos mais fazer discursos demagógicos, apenas cobrando recursos e meios do governo para atender a esses miseráveis que proliferam cada vez mais por toda esta nação.”

Nesta declaração, Bolsonaro se referiu aos métodos adotados pelo governo de Alberto Fujimori, presidente ditador do Peru, que esterilizou mais de 300 mil mulheres, em sua maioria aquelas de baixa renda e indígenas, sem qualquer consentimento. Bolsonaro considerava um atraso o Brasil não adotar a mesma política de esterilização realizada no Peru. Vê-se, portanto, que desde o início de sua vida parlamentar Bolsonaro emite simpatia e faz apologia a governos ditatoriais.

Mas em que pese seja comum, mesmo dentro de um Estado Democrático de Direito, ocorrer manifestações de intolerância e discriminação contra determinados grupos vulneráveis, há de se ter cautela com falas fomentadoras de ódio (SCHÄFER; LEIVAS; SANTOS, 2015).

Restrições legais aos discursos de ódio são necessárias para assegurar que a intolerância não dissimule os princípios e valores democráticos.

No ano de 1993, Bolsonaro voltou a defender o controle demográfico como forma de administrar a criminalidade e a pobreza, mesmo sendo inconstitucional, num discurso que desqualifica e inferioriza a parcela mais vulnerabilizada da sociedade, instigando a discriminação do grupo considerado dominado por aqueles ditos dominantes, caracterizando, assim, o discurso de ódio.

“Defendo a pena de morte e o rígido controle de natalidade, porque vejo a violência e a miséria cada vez mais se espalhando neste país. Quem não tem condições de ter filhos não deve tê-los. É o que defendo, e não estou preocupado com votos para o futuro.”

A fala que reproduz violência moral, discriminação e ódio contra grupos minoritários e vulnerabilizados socialmente, provoca a segregação destes. A imunidade que os parlamentares possuem sobre sua liberdade de expressão pode incentivar que discursos sejam proferidos sem qualquer pudor, constituindo, em muitos casos, no que a dogmática convencionou denominar de discurso de ódio.

O discurso extremamente intolerante se transforma em discurso de ódio quando se utiliza de palavras que insultam, intimidam ou assediam pessoas em razão de sua raça, cor, classe, nacionalidade, sexo ou religião (BRUGGER, 2007). Pode ser assim caracterizado, também, pela potencialidade ou capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação das maiorias contra minorias (BRUGGER, 2007). Entretanto, para ser qualificado como discurso de ódio, a fala deve ser mais que uma demonstração de falta de empatia, deve estar carregada de hostilidade contra determinado grupo (DIAZ, 2011).

Bolsonaro já havia manifestado, em 2003, que os programas sociais promovidos pelo Governo Federal teriam a “utilidade de incentivar os pobres a ter mais filhos e, com isso, aumentar a fatia que recebem os benefícios” (BRAGON, 2018).

“Só tem uma utilidade o pobre no nosso país: votar. Título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso, para votar no governo que está aí. Só para isso e mais nada serve, então, essa nefasta política de bolsas do governo. […] Já está mais do que na hora de discutirmos uma política que venha a conter essa explosão demográfica, caso contrário ficaremos apenas votando nesta Casa matérias do tipo Bolsa Família, empréstimos para pobres, vale-gás etc.”

Quando há forte incitação à discriminação, com a intenção de reforçar a hostilidade e estimular preconceitos, na perspectiva de ativar pensamentos negativos em grupos dominantes em face de indivíduos e grupos socialmente inferiorizados (RIOS, 2008), o discurso de ódio está fortemente identificado. As declarações com conteúdos odiosos podem ser apresentados de forma velada, feitos através de argumentos que incitam proteção social e moral, mas que pode provocar agressões às minorias, grupos considerados inferiores (SCHÄFER; LEIVAS; SANTOS, 2015), como o caso da esterilização humana, devido à sua carga preconceituosa.

Em 2008, Bolsonaro, enquanto deputado federal, afirmou desacreditar que a educação pudesse solucionar o país.

“Não adianta nem falar em educação porque a maioria do povo não está preparada para receber educação e não vai se educar. Só o controle de natalidade pode nos salvar do caos.”

O presidente manifestou-se, também, no ano de 2011, de maneira a ativar pensamentos negativos à grupos considerados dominantes, estimulando preconceitos em face daqueles grupos inferiorizados socialmente.

“Tem que dar meios para quem, lamentavelmente, é ignorante e não tem meios de controlar sua prole. Porque nós aqui controlamos a nossa. O pessoal pobre não controla [a dele].”

A mais recente manifestação sobre esterilização proferida por Bolsonaro ocorreu em 23 de junho de 2018, momento em que afirmou que seu plano de governo traria uma proposta para modificação da atual Lei de Planejamento Familiar para que não haja mais investimentos do Estado em programas sociais, como Bolsa Família e Bolsa Escola.

“[…]eu gostaria que o Brasil tivesse um programa de planejamento familiar. Um homem e uma mulher com educação dificilmente vão querer ter um filho a mais para engordar um programa social.”

À vista disso, pode-se dizer que os discursos parlamentares que defendem a esterilização humana como forma de controle demográfico, direcionado à parte desamparada e desprotegida da sociedade, são inconstitucionais e, por isso, desumanos. Ainda que as justificativas fossem a diminuição ou o fim da pobreza e da violência no país, são argumentos que não se sustentam porque esses indicadores configuram violências perpetradas pelo próprio Estado contra um grupo específico que, em face de suas inúmeras vulnerabilidades sociais, recebe a alcunha de população indesejada.

Igualmente à ideia de política da esterilização humana, pode-se confrontar a atual crise sanitária provocada pela disseminação da Covid-19. Quando Bolsonaro fala que as pessoas que têm “uma imunidade pequena”, que “são mais fracas e suscetíveis a sofrer mais com a doença” (MAIA, 2020), ele fala especificamente daquelas que vivem na pobreza ou miséria e que, por razão disso, têm suas vidas consideradas menos importantes.

“Quem são essas pessoas mais fracas? A pessoa às vezes vive na miséria, pobre ao extremo, então é fraca por natureza, vamos assim dizer, né?, dada a falta de uma alimentação mais adequada. Então, essas pessoas é que sofrem mais com esse vírus que chegou, mas eu tenho certeza que vai embora um dia.”

Ou seja, o presidente da República sabe que o novo coronavírus é mais letal nas regiões com os piores indicadores sociais porque esta população possui as piores condições econômicas. É na periferia que o Estado deixa de assegurar as condições mínimas de sobrevivência por omissão de prestação de direitos e serviços básicos (como o acesso à saúde de qualidade e à saneamento básico). Com isso, Bolsonaro está estimulando a “eliminação” daqueles considerados mais fracos e incapazes, condições provocadas pela própria Administração Pública, e incentivando a predominância dos mais jovens com “histórico de atleta”, como dito pelo presidente em um de seus pronunciamentos.

Diante da transcrição das manifestações de Jair Bolsonaro proferidas ao longo de seus quase 30 anos de mandatos parlamentares, tanto o programa de esterilização humana – através da modificação da Lei do Planejamento Familiar como parte de seu plano de governo – quanto os programas que ele tenta implementar diante da pandemia da Covid-19, constata-se a configuração do discurso de ódio direcionado à parcela social mais vulnerabilizada, em que seus projetos são instrumentalizados para estabelecer a política de transformar as mortes provocadas em mortes naturalizadas.

Notas
[1]A Lei do Planejamento Familiar regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências.

[2]O PL 7438/2006 altera a redação do inciso I e revoga o § 5º do art. 10 da Lei do Planejamento Familiar.

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BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 7.439/2006. Altera a redação do inciso I e revoga o § 5º do art. 10 da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Brasília, 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm>

_________. Congresso Nacional. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Brasília, 1993. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/85082>

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BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso de ódio?: algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Direito Público, Porto Alegre, ano 4, n. 15, p. 117-136, jan/mar 2007.

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RIOS, Roger Raup. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, discriminação indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.

SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos. Discurso de ódio: da abordagem conceitual ao discurso parlamentar. Revista de informação legislativa: RIL, v. 52, n. 207, p. 143-158, jul./set. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/207/ril_v52_n207_p143>

*Adalene Ferreira é advogada e mestra em Direitos Humanos.

 

 

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