Pesquisador e juíza catarinense falam sobre decisão que acatou registro de gênero neutro. Esta é a segunda decisão sobre a matéria no Brasil.
A Justiça de Santa Catarina reconheceu o direito de uma pessoa de declarar que seu gênero é neutro, ou seja, que não se reconhece como homem, tampouco como mulher. É a segunda decisão sobre a matéria no Brasil, a primeira ocorreu na justiça carioca. Quando nasceu, a pessoa foi registrada como sendo do gênero masculino, mas nenhum dos dois gêneros davam conta da sua identidade.
Como explica a assessoria de imprensa do TJSC, extrajudicialmente, a pessoa tentou mudar na certidão de nascimento o nome e o sexo para “não identificado”, com informação de necessária análise judicial sobre o gênero neutro. Por isso, ingressou na Justiça e seu caso foi julgado pela juíza Vânia Petermann. “Essa é a segunda decisão no Brasil. Futuramente eu pretendo fazer uma linguagem neutra dentro da língua portuguesa porque acredito que esse é um dever nosso como sociedade. O judiciário brasileiro não aprendeu a se aliar à sociedade por meio das organizações sociais”, afirma a juíza Vânia Pertermann, em entrevista ao Catarinas.
A decisão foi baseada em dados históricos, antropológicos, sociológicos, filosóficos, biológicos, psicanalíticos e psicológicos. A juíza também analisou a trajetória de gênero e sexualidade no Brasil e no mundo. “Procurei uns vestígios na história desde a idade antiga com histórias de transsexuais, a não-binariedade já era vista no Egito. Ela é milenar. O meu olhar foi percorrer porque saímos da não-binariedade no século XII para a binariedade e fui entender que o movimento feminista foi muito importante nessa questão”, explica Pertermann.
Para a pessoa pesquisadora sobre a temática trans, travestis e não-bináries, Ale Mujica Rodriguez, que se reconhece como trans não-binária, o apagamento da diversidade ao longo do tempo está relacionado à colonização. “A gente foi colonizada e parte desse processo está no gênero, na hierarquização do gênero, nós estamos acostumados a dividir em mulheres e homens porque nós normatizamos isso. Pensar a não-binariedade, as pessoas trans como um todo, elas já existiam antigamente, mas não tinham esse nome, agora se impõem a elas um gênero específico, uma forma, então existe esse apagamento dessas diversidades, isso faz parte da dominação em relação ao gênero”, afirma Mujica.
O principal ponto a ser enfrentado na decisão era saber se seria possível reconhecer, juridicamente, o gênero neutro com base na Constituição. Ainda que a Lei 6.015/1973 sobre registro civil em seu artigo 54 determine a informação sobre o sexo no registro de nascimento, essa norma infraconstitucional não abarca a complexidade da experiência das pessoas. “Há três problemas na lei, o que é sexo, quais são os sexos, se são biológicos ou por costume, para além nós sempre tivemos pessoas que não se identificam como homem ou mulher. Seria interessante que essa pessoa recorresse ao STF ou talvez alguém se inspire na minha decisão e entre direto no STF”, analisa a magistrada.
Como explica a juíza, a Constituição é a lei maior, e nela o princípio da dignidade da pessoa humana é pilar fundamental que sustenta outras proteções, como o direito de liberdade de expressão e de autodeterminar-se, garantidas em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Ela lembrou que o gênero neutro é um conceito adotado pela ONU e que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou a favor da possibilidade de mudar o registro do sexo, independentemente do órgão sexual físico.
“O Poder Judiciário, diante dos casos concretos, deve funcionar como respaldo jurídico, freando a discriminação das minorias [políticas] e garantindo a todos o exercício pleno de uma vida digna. Impedir as pessoas de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição”, conclui.
Confira abaixo as entrevistas com a juíza Vânia Pertermann e com “le pesquisadore” Ale Mujica.
Impedir as pessoas de serem o que sentem é uma afronta à Constituição
Catarinas: Quais foram os fundamentos que embasaram a sua decisão?
Vânia Pertermann: Eu decidi com base na teoria crítica do direito comparado, onde coloquei em nota de rodapé da decisão algumas informações a meu respeito, para informar ao leitor o ponto de vista de quem faz a comparação. Eu venho de uma formação católica rigorosa, além de um educação em que as filas na escola eram divididas entre meninas e meninos. Ainda assim, tive influências de tios, irmãos de minha mãe, como formação em filosofia, era costume ouvir questões sobre a existência humana desde pequena. O que me incentivou, mais tarde, a aprimorar meus estudos em comportamento humano e as ciências interdisciplinares.
No doutorado eu tive uma ideia, de trabalhar com todas as ciências com apoio crítico ao direito. O direito na revolução francesa afastou as doutrinas e ciências no processo legislativo, quando o juiz virou boca da lei. Hoje, mesmo com uma Constituição afirmativa de liberdades e garantias, há uma certa dificuldade da sociedade entender o dever ser e o ser governado. Também, passamos por alternâncias no poder, o que dificulta o bom andamento de Projetos de Leis. Como a questão de gênero, com vários projetos desde 2010 paralisados. Eu já sabia no meu coração e na minha alma, apesar de nunca ter contanto pessoal com pessoas que se identificam como de gênero neutros, que esta questão estava superada como sendo uma doença, ou qualquer distúrbio. Sim, uma questão de não identificação que ocorre no transcorrer da vida, não significa opção sexual, ou ligada ao sexo fisiológico. Quando recebi o processo para decisão, eu resolvi aplicar teorias de alemães e italianos que foram estudadas também por universidades norte-americanas que desenvolveram mais essa teoria.
Ao decidir, também, como é meu papel, devo me afastar do meu processo de significação de mundo, de identificação, por exemplo, abstrair o que aprendi como menino e menina, eu como juíza eu tenho que olhar para a cidadania que me pede um direito sem nenhum preconceito, sem julgamento, constatar, além de buscar apoio, sempre que possível, para as ciências que explicam os fenômenos sociais, ajudando a completar a interpretação das normas. Procurei vestígios na história desde a idade antiga de transexuais, pois primeiro este tema veio à tona na modernidade, quando percebei questões de não identificação com a divisão dos gêneros tradicionais, masculino e feminino, desde a mitologia grega, e como a não-binariedade já era vista no Egito. Ela é milenar. Por outro lado, a sociedade sabe que existe a homossexualidade e com ele convive milenarmente, mas a oprime para manter o modelo da família como uma instituição que deu suporte aos interesses, como quando a Igreja exercia poder de Estado.
O meu olhar foi percorrer porque saímos da não-binariedade no século XII para a binariedade e fui entender que o movimento feminista também foi muito importante nessa questão. Quando a sociedade na década de 80 com a AIDS, por exemplo, olhou para os homossexuais, vimos personagens públicos incentivando pessoas a assumirem publicamente sua opção sexual. No Brasil e no mundo houve uma parcela da sociedade que se identificou como, mas ainda estamos subindo degraus, pois parte não se sentia, e sente não se sentido, encaixada em padrões de divisão das pessoas por sexualidade.
São pessoas que pensam fora dessa caixa. Na verdade, não faz mais sentido entrar numa caixa de “homem ou mulher” para dizer o papel que nós exercemos na sociedade. Somos todos humanos, pessoas. Onde cada indivíduo tem seu processo único de identificação e significação de mundo, e cada uma, podemos dizer, tem “a sua verdade”. Li vários depoimentos de não-binárias na internet e com relatos muito semelhantes. Elas transitam entre um e outro, e elas querem ser o que elas querem ser, há vários termos sendo criados, ainda assim, juridicamente hoje nós temos somente a terceira via, que da não identificação, ou agênero
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Qual brecha você encontrou na lei brasileira que obriga o registro do sexo na identidade?
Eu analisei a lei, e pensei primeiro, ‘em que tempos ela foi construída? Na ditadura’, quando as leis aprovadas não necessitam de motivação. Ela só menciona que deve haver a identificação da pessoa por sexo, quando não se discutiu na época o que era sexo, então decomponho como os tribunais internacionais estão decidindo sobre, como o Brasil não tem, analisei sistemas judiciais parecidos com o nosso, como movimento LGBTQIA e feminista parecidos com os nossos, como por exemplo Austrália, Alemanha, Malta que estão avançadíssimos na igualdade de gênero.
Olhei também para as três fontes, elas estão em descompasso, a lei, a doutrina e a jurisprudência de países que posso me espelhar que posso como juíza identificar a lei, e transferir o sentido da lei editada em 1975 e transferir um novo sentido para ela na contemporaneidade. O juiz precisa ter essa postura ativa para afirmar direitos constitucionais. O STF já tinha decidido sobre a possibilidade de mudança de nome e registro, sem necessidade de cirurgia, nos casos de pessoas que se identificam com sexo físico oposto ao do registro.
O direito não pode se entender como autônomo, ele vai olhar a lei para entender como ele chegou a nós, e ver qual o sentido pode transferir para os tempos atuais. Além disso, a liberdade de expressão não é só poder falar, é ser quem se é, eu entendi que havia uma fratura no controle vertical dessa lei, ela não combina mais com o sistema de valores que o Brasil adotou na Constituição, e também aderindo a tratados internacionais. Apesar de não haver decisão vinculativa ao Brasil, ou seja, de algum Tribunal internacional obrigando, na decisão constou a orientação da ONU (Organização das Nações Unidas) e da CIDH (Corte Interamericana dos direitos humanos), para que esses direitos sejam reconhecidos. Voltando no passado eu também compreendi o presente. Ainda que não seja de uma maioria cabe ao juiz de dizer qual o caminho político que a sociedade deve seguir para abraçar direitos de uma minoria afirmados pela Constituição, e também reconhecidos em países com Constituições com valores semelhantes, e isso não significa que a sociedade deva concordar com a decisão, mas sim de respeitar as diferenças.
E em relação à linguagem usada para identificar essas pessoas?
A linguagem masculino e feminino pode ser encontrada nos romanos por conta da objetificação da mulher. Freud fala dos freios que o Estado utiliza para inibições; e Jung completou que onde há desejo de poder não há espaço para o afeto, o amor, um é a sombra do outro. Somos governados por leis que nos põem em caixas, existem algumas que são necessárias, mas por um tempo, que talvez daqui 50 anos podem ser não mais. Só poderemos conviver bem quando essa minoria, que é marginalizada, estiver sendo reconhecida e seus direitos assegurados. Se ela não vai bem, também não vamos bem, o tecido social todo deve estar em sintonia. Nos meios de imprensa a pessoa beneficiada com a decisão parece ter dito que 50% de seu estado de depressão. As pessoas me procuraram falando que foi sorte que esse pedido caiu no meu colo, mas eu que tive sorte, pois pude colocar no papel a minha escolha jurídica com fontes que estudei por anos, muito visando à justiça cidadã.
Um dos grandes desafios é a confusão entre a orientação sexual e a identidade de gênero
Catarinas: Como podemos explicar a não-binaridade, ou seja a não identificação com o gênero masculino ou feminino?
Ale Mujica Rodriguez: Não-binariedade é um guarda-chuva, gente não-binária pode ser também agênera, mas também tem outros: bigêneros, gênero fluido, entendemos que a não-binariedade é um grande guarda-chuva de se constituir e de se estar, o agênero eu colocaria dentro desse guarda-chuva.
Um dos grandes desafios é a confusão entre a orientação sexual e a identidade de gênero. É difícil da pessoa sair desse olhar fixo que tudo se orienta em relação à orientação sexual, principalmente as pessoas cisgêneras que se identificam com a designação dada desde que nasceu e não se questionam sobre a cisgeneridade, porque para a sociedade ela não é questionável, ela é colocada como a normalidade. Para você se identificar, por exemplo, como trans não-binária você tem que se justificar por isso. Na decisão da juíza ela não cita a questão da cisgeneridade, ou seja, ela não questionou essa normatização cisgênera, que é na verdade o principal fator da não aceitação de outras identidades de gênero.
Na decisão a juíza traz dados em que se comprova a existência de pessoas não-binárias já na idade antiga. Por que esse reconhecimento se perdeu no caminho?
Há todo um processo da colonização do gênero, a gente foi colonizada e parte desse processo está no gênero, vem a hierarquização do gênero, nós estamos acostumados porque nós normatizamos isso, porque como mulher, você acaba repetindo isso e leva como “normal”. Pensar a não-binaridade, as pessoas trans como um todo elas já existiam antigamente, mas não tinham esse nome, agora se impõem a elas um gênero específico, uma forma, então existe esse apagamento dessas diversidades, isso faz parte da dominação em relação ao gênero.
Questionar a cisgeneridade é difícil porque é colocar em xeque a própria norma. Mas eles não deixam de nomear quem está na margem, é bem difícil nomear a norma, mas temos que nomear sim e as pessoas cisgêneras precisam questionar isso também. É importante pensar na estrutura e no paradigma que vivemos hoje, que exista esse reconhecimento porque tem pessoas que desejam esse reconhecimento, faz parte da construção da identidade. Existem pessoas que não conseguem acionar a justiça como neste caso por questões econômicas, laborais, nem todo mundo tem esse acesso e tem outras situações, ela não consegue fazer esse movimento porque também não quer. O nome social teoricamente é mais fácil agora, pode ir no cartório fazer a mudança do nome registro, mas o sexo ainda não. Essa decisão abre portas para discussão para, mais uma vez, as questões de identidade de gênero serem pautadas, as questões trans, como se constituem as pessoas trans, travestis e como é ir atrás dos seus direitos e de legitimidade. E claro, abre portas para que outras pessoas também façam esse movimento.
Como se dá esse processo de identidade de gênero?
Para mim eu vejo a construção das identidades como processuais, não teve um dia que acordei e me decidi, foi acontecendo, eu fui refletindo com diferentes movimentos, coisas que eu desejaria, não me reconhecendo como gênero que me colocaram, é um processo e ainda estou neste processo, particularmente é deixar se construir e desconstruir, isso está em constante movimento.
Identificar-se com um outro gênero não é cair na mesma questão de se colocarem em uma caixinha como fazem em relação aos gênero masculinos e femininos?
Essa é uma questão, não é algo dado, no sentido que a gente vai construindo as possibilidades. Se a gente não quiser cair na caixinha, a cisnorma tem que começar a discutir esse tema, ela se constitui em construir caixinhas. Estamos num paradigma identitário, se você não está num lugar, você não existe para as políticas públicas, você não é visto, a gente teria que pensar o capitalismo, o racismo…
Vamos dizer que não exista gênero, mas se você sai na rua e é vista como mulher você vai poder sofrer violência. Ou seja, isso se materializa e tem consequências, assim como privilégios. É pensar as caixinhas como não fixas, porosas, é o que mais escutamos, a caixinha é importante, mas temos que também entender a porosidade dela e não fixar as pessoas.
Você tem esperança que essas decisões tragam um futuro sem preconceitos?
Eu tenho esperança nos afetos que vou criando, que nós como pessoas trans, travestis não binárias vamos criando junto a outros movimentos, das pessoas negras, de pessoas com deficiência, das pessoas indígenas, outro tecido de resistência em coletivo e pensar que podemos construir territórios em que tenhamos vida digna. Porque atualmente com esse governo fica mais difícil ter esperança em uma mudança maior.