“Meu companheiro! Não me deixa, Vitor. Quero ver meu irmão. Ele sempre foi meu companheiro, gente. Não tenho mais forças pra viver. Eu tenho que cuidar dele. Eu te amo”. Vivian Silva dos Santos, 22 anos, gritou em lamento, mas também em protesto, no sepultamento do irmão, Vitor Henrique Xavier Silva Santos, 19, morto por policiais militares, em Florianópolis.

Enquanto entoavam cânticos evangélicos, ela foi acolhida pela mãe, tias e primos, todos negros. Oito irmãs, incluindo a mãe de Vitor, vieram da Bahia há seis anos em busca de melhores condições de vida. “Ela vai precisar de um psicólogo”, disse um familiar que preferiu não se identificar.

A jovem gritava a dor de perder o irmão, após vê-lo agonizar no quintal de casa. O jovem negro foi atingido por tiros disparados pela polícia, na tarde de quinta-feira (18), no bairro Ingleses, em Florianópolis, no momento que brincava de atirar em latas de refrigerante com uma arma de pressão. Apesar da polícia informar que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foi chamado, a família alega que não houve socorro.

Acompanhamos o sepultamento que ocorreu na ala pública do cemitério de São Cristóvão, em Coqueiros, bairro afastado a 40 quilômetros da casa onde a vítima morava com a mãe e a irmã. Isso porque a prefeitura não disponibilizou vaga no cemitério mais próximo e a família não tinha condições de arcar com os custos do jazigo.

Segundo Daniele Duarte, 29 anos, mãe de um dos amigos de Vitor, os dois se conheceram há quatro anos e desde então passaram a brincar juntos. “O Vitor comprou as armas para os dois brincarem, tanto que uma delas estava com o meu filho. Eles estavam sempre juntos, jogavam videogame juntos. O que a polícia fez foi inadmissível, tirou a vida de um inocente”.

Vitor sonhava em ser um militar, em integrar as Forças Armadas. Duarte, que é guarda-vidas, conta que o jovem participaria de um recrutamento do Corpo de Bombeiros na próxima semana.

Foto: Shirlei Alves

Jovem e negro, Vitor tem o perfil de 80% dos mortos pela polícia todos os anos no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O ano de 2017 registrou 5159 pessoas mortas nas chamadas intervenções policiais.

“Isso que aconteceu é totalmente inconstitucional. A gente precisava se apegar na Constituição de 1988. O Brasil não tem pena de morte e a gente tem que bater nesta tecla. Então não se pode matar da forma como se mata. Se não tem pena de morte, por que estão morrendo tantos jovens negros? Por que é um país racista, seja o estado que for”, afirmou Monica Cunha do Movimento Moleque e do Café das Fortes, que reúne cerca de 20 mães que tiveram seus filhos vitimados pelo Estado, no Rio de Janeiro.

Mesmo em estados distantes, Monica se sente próxima à mãe e familiares de Vitor pela dor de também ter perdido um filho nas mãos da polícia. “É muito duro se levantar dessa dor. Essa mulher está conhecendo essa dor que dilacera todo um corpo. Mesmo com os cacos espalhados, a gente consegue sobreviver. Nesse primeiro momento precisamos tentar ficar vivas. Ela precisa da família colada com ela e ter acompanhamento psicológico”, aconselha.

Monica orienta ainda a buscar reparação pelo Estado. “Tem que se fazer o registro, tem que exigir que a Defensoria Pública investigue. O melhor caminho é a defensoria. O Ministério Público que geralmente é muito omisso, com pressão ele anda”, orienta.

“Esse menino com arma de brinquedo dentro do seu quintal é um alvo que pode ser abatido, como disse o governador do Rio de Janeiro, que iriam abater alvos com tiro na cabecinha. Ser negro é ser alvo, e isso independe do estado onde ele vive”, completou.

Três advogados já se colocaram à disposição para ajudar a família a buscar reparação do Estado pela morte.

Um caso de preconceito

Foto: perfil pessoal facebook

O Instituto Geral de Perícias (IGP) não informou quantos tiros foram disparados pela polícia. As marcas dos disparos ficaram registradas no portão e no muro, e o sangue de Vitor manchou o puff onde ele estava sentado quando foi atingido.

 “O guri não era marginal, só porque somos pobres, eles querem pisar em cima”, disse um dos primos, que não quis se identificar por medo de ser perseguido pela polícia.

Para ele, o preconceito de classe e cor motivou os disparos fatais. “Por que julgaram o guri? Porque ele andava tipo um americano, cabelinho mais alto, reloginho, viram o moleque ali, ‘é um traficantezinho vamos matar. É negro, vamos matar’. A gente sofre preconceito, a polícia tá metendo o terror lá nos Ingleses. Chegam e matam, não perguntam mais. ‘Ah mais é bandido’, não é, era um menino. Nós somos seres humanos, ainda que fosse o pior ladrão, não podem matar ninguém assim”.

O familiar rebateu vários pontos da versão oficial. Conforme relatou, os policiais não respeitaram a dor da irmã e após os disparos apreenderam os celulares dela e do tio, que estava na casa. A arma de brinquedo estava marcada com um ponta laranja, característica que a distinguia de uma pistola de verdade.

O primo denunciou ainda que a cena do crime foi modificada pelos policiais que levaram a arma de brinquedo e só devolveram com a chegada da perícia. “Por que estavam com a touca (balaclava)? Eles querem incubar a situação, por isso esconderam a arma. Só porque os moradores pressionaram eles devolveram, eles iam trazer outra arma pra colocar no lugar”.

“Matou para depois ver que era de brinquedo, não perguntaram o nome, chegaram atirando. Todo mundo conhecia ele na vizinhança, todo mundo respeitava ele. Essa é a lei de Bolsonaro, atira e depois pergunta, como no caso dos 80 tiros no Rio”, protestou ele, morador do estado que mais votou no presidente nas últimas eleições.

Foto: arquivo pessoal

A versão da polícia
A polícia militar de Santa Catarina emitiu nota nesta tarde e afirma que os policiais faziam ronda no local e foram abordados por populares informando que um homem estava armado e apontando para as pessoas que passavam. No momento da abordagem, o homem teria apontado a arma para os policiais, que diante da ameaça atiraram nele.

“As circunstâncias dos fatos serão investigadas e apuradas pela Delegacia de Homicídios da Capital e pela Polícia Militar por meio de Inquérito Policial Militar, sendo em seguida encaminhadas para a Justiça para apreciação […] Polícia Militar lamenta profundamente a morte ocorrida, apurará diligentemente o que ocorreu e tomará medidas para reduzir o risco de que novos incidentes como este se repitam”.

Tentamos contato com a assessoria de imprensa do Comando da Polícia Militar, mas não tivemos retorno.

Aumento da violência policial
Pelo menos seis pessoas morreram em ações envolvendo policiais militares em Santa Catarina em menos de 24 horas. Os outros casos ocorreram na tarde e noite de quarta-feira em São José, na Grande Florianópolis, e em Itajaí, no Norte do Estado.

As mortes pela polícia mais que duplicam em três anos em SC e motivaram audiência pública na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em 27 de março, pela Comissão de Direito Humanos. Neste dia, diversos movimentos sociais denunciaram o caráter discriminatório da violência policial que vitima majoritariamente pobres e negros.

Durante a audiência o secretário de Segurança Púbica de Santa Catarina, coronel Araújo Gomes, se comprometeu em tomar medidas para evitar a violência pelos policiais, entre elas um documento de compromisso à tropa, à Defensoria Pública e Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Uma marcha contra a violência policial, deliberada pela plenária, está prevista para a próxima quinta-feira (25), no centro de Florianópolis, com concentração às 18h30 na catedral.

Levantamento da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina aponta que as mortes em intervenções da PM saltaram nos últimos três anos em Santa Catarina. O crescimento no primeiro trimestre de 2019 foi de 136,4% em relação ao mesmo período de 2016. Se levarmos em consideração o ano completo, ainda assim, o aumento continua sendo bastante significativo. Conforme a SSP/SC, o crescimento foi de 63,7% entre 2016 e 2018 (de 58 para 95).

Entre janeiro de 2011 e março de 2019, 588 pessoas morreram pelas mãos da polícia militar. No mesmo período quatro policiais militares foram assassinados.

 

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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