No penúltimo domingo de março (24), líderes comunitárias foram chamadas às pressas por moradores enquanto participavam de uma atividade de educação ambiental, no Morro da Queimada, em Florianópolis. “Eles estão batendo num jovem”, recorreram desesperadas as moradoras. A poucos metros de onde estavam, um jovem imobilizado no chão por policiais militares se contorcia de dores a cada tentativa de movimento. “Por que ele está sendo preso?”, perguntou Maria de Lourdes Mina, do Movimento Negro Unificado (MNU), ao que o policial respondeu “porque ele debochou de nós”.

A réplica da comunidade no grito de “é mentira” levou a uma mobilização só abafada por mais demonstração de força com a chegada de dez viaturas, incluindo a tropa de choque. Aos ouvidos da líder, o policial confessou “eu sei que ele não deve nada, mas não podemos soltar porque vamos perder a moral na comunidade”. O jovem ainda não foi liberado. “Eram mães, professoras e crianças, não havia necessidade de um aparato daqueles. O sofrimento das crianças com os gritos que eles davam foi um desespero só”, conta Maria de Lourdes.

Episódios de abusos como esse do Morro da Queimada aliados às mortes decorrentes de intervenções policiais que vêm numa crescente desde 2017 e tiveram uma arrancada ainda mais expressiva neste início de ano, motivaram a realização de uma audiência pública na última quarta-feira (27), na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), para discutir violência policial.

Levantamento da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina aponta que as mortes em intervenções da PM tiveram um salto assustador nos últimos três anos em Santa Catarina. Considerando apenas o primeiro trimestre deste ano (de 1º de janeiro a 25 de março), o crescimento foi de 136,4% se comparado ao mesmo período de 2016. Se levarmos em consideração o ano completo, ainda assim, o aumento continua sendo bastante significativo. Conforme a SSP/SC, o crescimento foi de 63,7% entre 2016 e 2018 (de 58 para 95).

Entre janeiro de 2011 e março de 2019, 588 pessoas morreram pelas mãos da polícia militar. No mesmo período quatro policiais militares foram assassinados. As mortes em intervenções desta polícia chamaram a atenção do Ministério Público em 2017. Antes mesmo de o ano terminar, em meados de julho, a promotora titular da 40ª Promotoria de Justiça, Silvana Schmidt Vieira, que atua na área criminal-militar, instaurou procedimento para verificar a situação.

Na época, a promotora solicitou informações ao comando-geral da PM acerca dos nomes dos policiais militares que participaram das ocorrências que resultaram em morte naquele ano, sobre os localidades dos supostos confrontos e se os policiais envolvidos continuavam trabalhando na mesma área desses confrontos.

Nós tivemos acesso a uma lista com 50 nomes de policiais envolvidos nessas ocorrências. Ao pesquisar os processos no sistema de consulta do Poder Judiciário, encontramos apenas cinco casos em que o PM respondeu criminalmente por homicídio. Os demais, possivelmente, foram arquivados, o que significa que a prerrogativa da legítima defesa prevaleceu perante a Justiça.

O Portal Catarinas procurou a promotora para saber qual foi o resultado do procedimento aberto por ela. Como está de férias, o promotor-substituto Mário Waltrick do Amarante respondeu via assessoria de imprensa. Ele informou que a Polícia Militar esclareceu os questionamentos feitos pelo MP à época, mas que o procedimento foi arquivado. O motivo do arquivamento não foi informado.

Nós procuramos outras investigações que possam ter sido instauradas pelo órgão, mas segundo a assessoria, esse era o único procedimento que havia sido aberto para apurar o crescimento das mortes pela polícia de forma coletiva. No mais, cada um dos casos é investigado individualmente em cada uma das comarcas.

“O Ministério Público conta com Promotorias de Justiça que detêm a atribuição do controle externo da atividade policial, as quais ao tomarem conhecimento de possíveis delitos praticados por agentes vinculados à segurança pública, tais como Policiais Militares, Policiais Civis e Guardas Municipais, adotam as medidas necessárias para a elucidação do caso específico”, informou Amarante por e-mail.
As mortes em intervenções policiais devem ser investigadas tanto pela Polícia Civil quanto pela Polícia Militar. O inquérito da Civil é obrigatoriamente remetido à Justiça Comum enquanto que o IPM (Inquérito Policial Militar) é encaminhado à Justiça Militar.

Na maioria das ocorrências, as testemunhas se resumem aos policiais envolvidos na ação. Exceto em casos excepcionais como foi a morte do açougueiro José Manoel Pereira, 44 anos, em novembro de 2017, em Balneário Piçarras, no Norte do Estado. O carro em que ele estava, segundo a denúncia do MP, foi confundido com veículo de assaltantes de banco e foi alvo de uma enxurrada de tiros. Ele havia saído de casa na companhia de familiares para comprar bebidas, pois estava comemorando seu aniversário. Além do homicídio, os dois oficiais um soldado envolvidos na ocorrência respondem por fraude processual. Os policiais chegaram a ser presos, mas foram soltos em menos de um mês e foram afastados apenas das atividades operacionais.

A dificuldade em testemunhar para moradores das comunidades alvo de operações frequentes das polícias não se resume apenas aos casos de morte. Mesmo os excessos acabam impunes por conta da dificuldade em se produzir provas. Procurar a corregedoria nem sempre é viável na avaliação deles, uma vez que temem em cruzar com os denunciados pelos corredores dos batalhões. Um dos caminhos possíveis é procurar diretamente o Ministério Público.

Entramos em contato com a Corregedoria Geral da Polícia Militar para saber quantas denúncias foram feitas nestes últimos anos. Os dados não estão disponíveis, para acessá-los é necessário realizar um pedido formal que pode ser aceito ou não.

Representantes do povo Kaingang estavam presentes na audiência que discutiu violência policial/Foto: Alice Sima

O comandante da PMSC, coronel Araújo Gomes, conversou com o Catarinas nesta sexta-feira (29). Ele destacou a redução dos homicídios, que caiu 25% no primeiro trimestre deste ano (de 231 em 2016 para 179 em 2019) e 13% na comparação anual (de 896 em 2016 para 777 em 2018), como resultado do trabalho feito pela polícia para reduzir a criminalidade nas regiões mais vulneráveis ao controle do tráfico de drogas e do crime organizado.

Na avaliação dele, a comparação deveria ser feita mês a mês e não em relação aos mesmos períodos de anos anteriores, uma vez que a queda da letalidade ocorre progressivamente. Outro fator enumerado por ele é o de que a repressão ao tráfico e à circulação de armas provoca reação – o que explicaria os confrontos.

“A minha avaliação é de que a gente continua tendo problemas e criminosos continuam enfrentando a polícia em ambientes hostis. Um dos desafios é conseguir manter a queda de homicídios e reduzir a necessidade de intervenções com possibilidade de confronto, chave esta que estamos virando aos poucos esse ano. Nós tínhamos núcleos de letalidade alta que hoje já não temos mais como em Itajaí, Navegantes e no Norte da Ilha”, disse Gomes.

A reportagem apurou ainda que as promotorias, tanto a 40ª quanto a 5ª, que atuam na área criminal-militar, não foram convocadas para a audiência pública sobre violência policial, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Alesc, a pedido do deputado Padre Pedro Baldissera (PT). O único promotor presente foi o Daniel Paladino que atua na área de Direitos Humanos e Cidadania. Embora a temática tenha relação com a discussão, não é ele quem apura os crimes cometidos por militares.

O caráter discriminatório das operações
“Já fiz três denúncias contra o mesmo policial e não fizeram nada. Quantos policiais foram exonerados por violência policial? Queremos saber, até hoje nenhum foi. Lá no Rio de Janeiro tem morte policial e a polícia também mata, mas aqui é pior porque a gente não vê policial morrer nas mãos da comunidade”, protestou um morador durante a audiência pública que ocorreu na quarta-feira na Alesc.

Morador protestou contra a ausência de respostas às denúncias contra policiais militares/Foto: Alice Sima

O episódio que ocorreu no Morro da Queimada é representativo do cotidiano de quem mora nas comunidades periféricas da Grande Florianópolis. Maria de Lourdes, do Movimento Negro Unificado (MNU), diz que a preocupação sentida pelo policial envolvido naquela ocorrência é justamente inversa: moral na periferia perdem os policiais que desrespeitam a dignidade humana das pessoas que lá moram. E foi essa discussão que a ativista propôs durante a audiência que durou quatro horas sob tensão e protestos de representantes dos movimentos dos movimentos sociais.

“Nossa proposta é a mudança da política de segurança do Estado e para isso temos que ter audiência com o governador, ele tem que se comprometer e que faça justiça com as pessoas que tiveram seus direitos violados. Nós reafirmamos a necessidade de trégua, porque nessa trégua com certeza salvaremos vidas”, quebrou o protocolo a líder já nos momentos finais.

Maria de Lourdes denunciou a violência policial contra moradoras/es do Morro da Queimada/Foto: Alice Sima

“A deputada Ada [de Lucca] falou da Constituição, mas a constituição não existe para nós quando nos batem, como aconteceu com a comunidade do Tabuleiro, e quando mais tarde na calada da noite, nós sofremos aquele serviço que não foi possível fazer durante o dia. É preciso que o Estado brasileiro se responsabilize pelas mortes do nosso povo, da nossa comunidade”, argumentou Vanda Piñedo, também do MNU.

Vanda questionou a postura discriminatória da polícia ao fazer averiguação durante a madrugada nas comunidades mais pobres. A ativista diz que os movimentos estão cansados de denunciar violências policiais e não obter nenhuma resposta do Estado quanto à punição dos agressores. “A calada da noite fala por nós. O que a polícia faz na madrugada batendo na janela para procurar alguém, metendo o pé na porta, fazendo averiguação à meia-noite, quem faz isso nos palacetes da nossa cidade? Em São José, a juventude não tem lugar para ficar, assim como acontece em Florianópolis, a polícia chuta copo, quebra garrafa e manda calar a boca”, relatou.

Samara Braum, moradora da Ocupação Marielle Franco, relatou que as abordagens policiais durante a madrugada não são raras na ocupação e que já foi acordada por policiais batendo à porta. “Por volta das 2h da manhã meus filhos de cinco e seis anos estavam dormindo, quando começaram a bater na porta, eu abri e o policial disse que sentiu cheiro de maconha e iria revistar a casa. Hoje, não trouxe eles aqui porque não podem ver homem fardado que entram em pânico”, contou.

Braum revelou ainda que já precisou intervir para barrar o ataque policial a um garoto de doze anos. “Bateram na cabeça dele, deram choque, deixaram o menino desmaiado e sem socorro, se não fosse a comunidade ele estaria morto. Depois não querem que as crianças cresçam revoltada, mas são eles que provocam o pânico”.

A jovem denunciou que também já sofreu violência por parte dos policiais. “Temos medo. Eu não sabia que depois das dez horas a gente não podia sair para comprar um cigarro. Mesmo eu sendo mulher apanhei de um policial masculino”.

Assista na íntegra:

Toque de recolher
“Precisamos sair daqui hoje com um posicionamento do alto comando sobre as violações que já ocorreram nas comunidades, ocupações, cultura popular, carnaval, batalha de rap, e outras que já foram faladas aqui. Queremos um posicionamento político e humano”, colocou a professora e cantora Elaine Sallas ao comandante.

Guilhermina Cunha, presidenta do Conselho Municipal LGBT, questionou a violência policial na região central e universitária da capital durante o carnaval e nas semanas que o antecederam. Desde o final de 2018 e início deste ano, têm sido frequentes ações de repressão policial nos bares e festas com o uso de balas de borracha e bomba de gás lacrimogêneo. “Na noite do show do Francisco El hombre ninguém jogou garrafa neles, só estávamos cantando ‘apesar de você, amanhã há de ser outro dia’. Começaram a atirar nas pessoas, eles apontaram a arma na cara de uma amiga e quando ela virou, acertaram as nádegas dela. O que leva um PM a atirar pelas costas e na bunda de uma mulher?”, relatou Cunha.

Manifestantes criticaram a postura do comandante à mesa/Foto: Alice Sima

Ao final, depois de muita cobrança dos movimentos sociais, Araújo aceitou firmar um documento pedindo o controle da violência pelos policiais, e uma carta de compromisso à Defensoria Pública e Comissão de Direitos Humanos da OAB.

“Nós entendemos que é um espaço importante, que a interlocução ficou dificultada pelo tensionamento, mas que as falas foram ouvidas e levadas em consideração. A questão da letalidade é sim uma preocupação da Polícia Militar e temos um esforço de reduzi-la, mas ela está associadas às mesmas estratégias de redução da criminalidade que nos coloca à frente do tensionamento (confronto). O objetivo é fazer com que se consiga reduzir a letalidade policial sem impedir a redução dos crimes violentos contra a vida”, concluiu em conversa com a reportagem.

O comandante chegou a apoiar a proposta de instalação de um fórum para discutir a questão, mas a sugestão não foi aceita pela plenária sob a justificativa de que já existem instrumentos de controle social da área, como o Conselho Estadual de Segurança. Representantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB e da defensoria pública se colocaram à disposição para receber denúncias de violências cometidas por policiais. A plenária propôs também a investigação das agressões e assassinatos de crianças e jovens pela polícia militar nos últimos anos.

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