Negra e lésbica, ela enfrentou preconceitos e agora vai treinar nos EUA

 

Jogadora de futsal e futebol desde os 7 anos Joane Ribeiro Garcia, 23, está prestes a ser a primeira atleta brasileira a entrar para o time de futebol da Westcliff University, em Irvine, na Califórnia, Estados Unidos. Depois de ter passado por vários processos seletivos e ver uma proposta da Universidade da Flórida ser cancelada por conta da pandemia de coronavírus, ela está em campanha de financiamento coletivo para que possa arcar com os custos iniciais de viver em outro país e as despesas de viagem.

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Joane enviou mais de trezentos e-mails para diferentes universidades, até conseguir alcançar mais uma etapa para realizar seu sonho.

“Passei por várias dificuldades no meio esportivo, sofri muito preconceito e percebi o quanto o futebol feminino é desvalorizado no Brasil. Temos ótimas atletas, mas escassas oportunidades, pouca infraestrutura e muito preconceito”, relata a jovem.

A bolsa não é integral, além de não cobrir todas as despesas que Joane terá. Por esse motivo, a campanha pretende arrecadar 12 mil dólares.

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Aos 15 anos, a jogadora já havia sido selecionada para jogar futebol nos Estados Unidos, mas não conseguiu por falta de apoio financeiro. Nascida em Jaraguá do Sul (SC), região conhecida por ter atletas de destaque, viu diferentes familiares praticarem o esporte, servindo de incentivo para ela. Hoje, Joane mora em Florianópolis. Em entrevista ao Catarinas, fala sobre perseverança, o apoio da mãe feminista, o bullying que sofreu e a esperança na realização do sonho de tornar-se uma grande jogadora.

Foto: arquivo pessoal

CATARINAS – Como iniciou o seu interesse pelo futebol/ futsal? E como começou a treinar?
O meu interesse pelo o futebol e futsal começou muito nova. Eu lembro que aos 7 anos eu jogava na escola e era a única menina entre os meninos. Fazia bastante sucesso, eu era muito boa, eu era sempre a menina que escolhia o time, também tinha um nível de liderança bem grande, então eu me fazia ser respeitada. Eu acho que pelo fato de sofrer muito bullying e saber que eu era a única menina, eu tinha uma postura bem firme com os meninos, eles eram obrigados a me respeitar. Eu sempre gostei de futebol, de futsal, os meus tios tentaram jogar profissionalmente, o meu avô também. Eles são muito bons de bola, sempre jogam nas peladas. A família da minha mãe é mineira, sempre que eu ia para Minas nas férias do final do ano, jogava peladas com os meus tios. Às vezes eles deixavam eu jogar, outras não, mas eu sempre estava ali.

Eu comecei a treinar uns anos depois. Por sofrer muito bullying, muito mesmo, eu me tornei uma criança agressiva, porque eu sentia tanto ódio do que as pessoas falavam pra mim, das ‘brincadeiras’ que faziam. Então, sempre quando alguém falava alguma coisa eu respondia, ia pra cima para brigar. Mas eu me destacava entre os meninos, e jogava pelo time da escola, trouxe várias vitórias pra escola e sempre treinando com os meninos. Depois a escola focou bastante no time feminino e a gente conseguiu ter um patrocínio na época. O time feminino melhorou e começou a ser levado mais a sério. A gente teve uniforme só para as meninas, que antes não tinha, e foi bem legal essa época de jogar na escola.

Em determinado momento o professor de educação física do colégio que nos treinava chamou minha mãe e falou “olha, ela joga muito bem, eu acho que seria legal, agora, que ela está em uma idade boa ela ir para uma escolinha só com meninas”.

Havia uma escolinha na cidade e minha mãe me levou lá. Começou a ser um divisor de águas para mim porque eu já tinha uns 9 anos. Foi diferente do que eu estava acostumada.

Só a minha paixão pelo futebol e pelo futsal cresceu mais ainda. Eu lembro que eu treinava em um lugar onde as meninas que jogaram pela cidade treinavam também. Acabava o meu treino e eu vi elas treinarem, eu sempre ficava “nossa, quero muito jogar com elas”, porque era outro nível já. E aí alguns anos depois eu consegui jogar no sub 15, eu tinha uns 11 ou 12 anos na época, era menina mais nova do time, e fiquei jogando pela minha cidade que é Jaraguá do Sul. Até eu ir morar em Belo Horizonte com a minha mãe e meu irmão, porque os meus pais se separaram e como a família minha mãe é mineira a gente foi para BH para recomeçar a vida. Apesar da família da minha mãe ser do interior de Minas, cidade que se chama Pirapora, minha mãe quis que a gente fosse para Belo Horizonte porque era uma cidade maior e teria mais oportunidades.

Foto: arquivo pessoal

Quando a gente chegou em BH foi bem interessante porque eu procurei colégios que davam bolsas para jogar futebol ou futsal pelo Colégio. Mandei e-mail para esses colégios. Eu tinha acabado de fazer 14 anos quando  cheguei em Belo Horizonte e aí vários colégios me chamaram para treinar. Ganhei bolsa para todos os colégios e escolhi um, o que eu mais gostei e me dei bem com as meninas.

Foi nesse colégio que eu conheci minha primeira namorada. Era um colégio Colégio Batista e assim que eles descobriram eles cortaram minha bolsa. Falaram que eu não ia mais poder estudar no colégio.

Foi uma época muito conturbada. Eu tinha acabado de fazer 15 anos e tive que me assumir para minha mãe, perdi a bolsa no colégio, minha mãe ainda estava lidando com a separação, então foi bem difícil essa época, de ter que me assumir e de perder a bolsa, porque era algo que eu queria muito. Nunca tinha estudado em uma escola particular. Foi frustrante.

CATARINAS – Quais as maiores referências do futebol/futsal feminino para você?
Minhas referências são a Marta, a Formiga e a Cris, as três brasileiras, e a Megan que é uma jogadora americana (Estados Unidos). A Cris pela precisão dela, é uma jogadora incrível. A Formiga por toda a garra, muito experiente, é uma jogadora muito antiga. A Marta muito humilde, muitas vezes ganhou como a melhor jogadora do mundo. E a Megan porque ela é muito bem posicionada politicamente. Eu vejo que ela pensa fora da bolha do futebol e isso me atrai muito porque eu também sempre busquei conhecer outras pessoas, outras culturas, outros lugares.

Então, a Megan é uma grande referência para mim tanto quanto jogadora, quanto como pessoa mesmo, na vida, no lifestyle dela.

CATARINAS – Como você conseguiu a bolsa para a Westcliff University, em Irvine na Califórnia?
Até eu conseguir a bolsa foi um processo bem grande. Eu parei de jogar futebol aos 18 anos e voltei a jogar na metade do ano passado. Em junho do ano passado voltei a me dedicar para conseguir a bolsa para estudar e jogar no Estados Unidos. Estudar, que é uma coisa que eu sempre quis muito, e tive poucas oportunidades aqui no Brasil. Treinava, trabalhava, minha rotina sempre foi muito cansativa porque, como eu me sustento sozinha, sempre tive que trabalhar bastante. Estava treinando e trabalhando muito. Comecei a aplicar para as bolsas em dezembro. Eu tenho um vídeo jogando, que foi feito em jogos, uma amiga minha editou, e eu mandava esse vídeo e uma carta de apresentação para as Universidades. Mandei para mais de 300 universidades, algumas me responderam, algumas não responderam, e em muitas propostas ainda era um valor muito alto.

Eu vi que era bem difícil, mas não é impossível. Então eu fiquei aplicando (com provas/documentos), tinha recebido uma proposta muito boa para a Flórida e a minha bolsa foi cortada por conta da pandemia. Eu fiquei muito frustrada porque já estava no processo de encaminhar a documentação e é muito desgastante, são muitas reuniões, é muita burocracia, e eu não falo inglês fluentemente.

Eu tenho a ajuda da minha namorada que é professora de inglês. Eu nunca fiz aula de inglês, então ela tem sido bem importante nesse processo.

Quando perdi essa bolsa da Flórida eu fiquei muito mal, fiquei muito triste, foi bem difícil. Pensei em desistir porque eu já tava há muito tempo mandando e-mail e era uma coisa que eu fazia sem parar. Acordava mandava um e-mail, ia para o treino, depois ia para o trabalho, voltava e ficava mandando e-mail. Então eu fiquei completamente focada nisso e aparecer uma oportunidade lá fora. Depois não deu certo, fiquei muito mal, passei uma semana triste e pensando se eu continuava ou não. Falei ‘eu vou continuar, vai dar certo, uma hora vai dar certo’. Insisti  e consegui essa resposta, essa proposta da Westcliff University, na Califórnia, que era um lugar muito bom, uma faculdade muito boa, e eu entendi que para mim foi a melhor proposta assim. Apesar de ter que arcar com esses 60 mil reais que eu preciso para conseguir pagar a Universidade, a minha moradia, pagar as taxas, que são muitas taxas tem que ser pagas, eu falei “vou tentar, porque eu acho que essa vai ser a melhor opção”.  

Quando eu falei com a minha mãe, que é uma feminista nata, sempre me apoiou muito a fazer o que eu quero, estar onde eu quero, ocupar lugares, ocupar espaços, ela falou “eu vou dar um jeito de você conseguir ir, vamos pegar empréstimo”. Minha mãe tentou, tentou, e não conseguiu ainda pegar o empréstimo porque há muitas exigências,. Minha mãe não conseguiu e eu fui ficando desesperada. Como é que eu iria pagar isso? Os meus amigos insistiram para eu fazer a vaquinha até que eu aceitei e fiz.

Foto: arquivo pessoal

CATARINAS – Quais são os seus planos futuros com a bolsa?
É estudar bastante, aprender inglês, ter uma formação acadêmica, me dedicar muito no futebol também lá na Universidade:vou ser a primeira brasileira a estar no time, então isso significa muito para mim. Tem muita gente acreditando que eu vou conseguir, tem muita gente que acredita no meu futebol. Eu quero me dedicar muito para essas duas coisas: estudar e jogar bola. Quero me sair muito bem nas duas coisas, são os meus focos. Eu tenho que ficar um ano sem trabalhar na Universidade, por isso que eu também estou arrecadando esse valor de 60 mil reais que é para cobrir as despesas durante um ano, depois eu pretendo trabalhar e me sustentar lá.

CATARINAS – O que você diria para outra meninas que gostariam de seguir carreira no futebol/futsal?
Acho que o que eu diria e o que eu digo para as meninas que são da base, que estão vindo, e que a gente tem falado muito que a base vem forte, porque hoje em dia existem muitas opções de você compartilhar sua história, suas lutas, seus sonhos e receber muito apoio. Assim como eu estou recebendo agora, essas meninas mais novas, eu sou nova tenho 23 anos, mas as meninas que são mais novas do que eu, e que estão vindo, elas já tem uma conta no Instagram, ela já têm várias pessoas que assistem, que apoiam. Então, eu acho que a internet é uma ferramenta muito boa de oportunidade, e a gente tem que acreditar muito, tem acreditar sempre. Entendo que todas as pessoas têm uma realidade diferente, dificuldades diferentes.

O Brasil é muito complicado, a gente tem problemas estruturais muito grandes, mas acho que a gente tem que acreditar, acreditar na força de ser mulher, e buscar uma revolução no futebol feminino: se posicionar, buscar o nosso lugar, a igualdade porque a gente merece, a gente luta.

A gente foi proibida de jogar futebol por muitos anos e tem que correr atrás. Temos que realmente buscar o nosso lugar no mundo e no futebol, e buscar isso todos os dias. 

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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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