O ano de 2016 foi marcado pela ofensiva aos direitos sociais e trabalhistas. O mesmo Congresso Nacional que promoveu o impedimento da presidenta Dilma Rousseff (PT) levou à presidência Michel Temer (PMDB), que agora implementa medidas de adequação ao seu programa de governo, “Uma ponte para o futuro”. Entre seus atos, a reforma do ensino médio, desencadeada pela Medida Provisória (MP) 746/2016, que entrou em vigor no dia 23 de setembro e altera o sistema nacional de educação.

Antes de entrarmos no tema, cabe lembrar o que é uma medida provisória. Ela é um ato institucional atribuído a um/uma Presidente/a da República. Com força de lei, pode ser usada nos casos em que a presidência considere “de urgência e relevância”. A medida entra em vigor na data em que é publicada, mas tem prazo de validade. Pode vigorar até 120 dias, e então precisa ser votada pelo Congresso Nacional.

Reprodução/Internet
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A MP 746 prevê mudanças na estrutura, organização, carga horária e no tipo de atendimento educacional. Pela nova regra, haverá um aumento da carga horária de 800 horas para 1.400 horas, colocando a perspectiva do turno integral. Ao mesmo tempo, desconsidera a obrigatoriedade da maioria das disciplinas. O texto da medida prevê que “o currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos específicos definidos em cada sistema de ensino e com ênfase nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional”. Dessa forma, apenas Matemática e Língua Portuguesa passam a ser obrigatórias em todos os anos. A proposta original da medida previa ainda o fim da obrigatoriedade das disciplinas de educação física e artes, mas o governo voltou atrás depois de reações contrárias por todo o país.

Para Elenira Vilela, professora do Instituto Federal de Educação (IFSC) em São José/SC e dirigente da Seção Sindical do IFSC (Sinasefe/SC), o principal impacto da reforma é o desmantelamento do pouco que se conseguiu organizar no sistema. “O sistema educacional já é falho e o ensino médio é a etapa mais precária e secundarizada em termos de importância e estruturação da educação básica brasileira. Este deveria ser o nível de aprofundamento dos conhecimentos científicos das/os estudantes, da ampliação dos horizontes, da apropriação do saber, do estudo das artes e da literatura, das grandes descobertas e do pensar criticamente a sociedade e a história. Mas, ele não é e nunca foi isso para a grande maioria da população e o que está sendo proposto ainda o reduz. A defesa do projeto apresenta como vantagem a formação flexível para os/as estudantes, mas não fica claro se todas as instituições seriam obrigadas a oferecer as cinco áreas”, argumenta.

A Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED) defende a reforma. Segundo a coordenadora de Educação Básica da SED, Sirley Medeiros, a proposta apresentada pelo MEC contempla sugestões do Grupo de Trabalho do Ensino Médio do Conselho Nacional dos Secretários de Educação, formado por técnicos de todos os estados brasileiros, levando em conta indicadores que apresentam um ensino médio nada atrativo. “1,7 milhão de jovens de 15 a 17 anos estão fora da sala de aula e apenas 18% dos jovens de 18 a 24 anos ingressa no ensino superior. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do ensino médio mantém-se estagnado desde 2011 e o desempenho de Português e Matemática é menor hoje do que em 1997. Isso mostra a necessidade de mudança”, justifica. A coordenadora considera positiva a flexibilização curricular, pois acredita que desta maneira “o/a aluno/a escolhe seu caminho sendo o protagonista; há maior articulação com educação profissional; expansão progressiva do tempo integral; demanda do mundo contemporâneo e mudanças tecnológicas e o alinhamento com as melhores experiências internacionais”.

Outro ponto que gera controvérsia entre profissionais da educação é a política de valorização profissional. Sindicatos alertam que a medida desconstrói a carreira dos/as professores/as quando dispensa a formação específica, a chamada habilitação, o que traria impacto nos planos de carreira e a consequente desvalorização. “Justamente quando se caminhava para buscar uma educação de maior qualidade, com a exigência de professoras/es habilitadas/os em todos os níveis e disciplinas da educação básica, vamos regredir. Ao permitir a introdução do profissional com ‘notório saber’ como condição para o exercício do magistério na educação básica, teríamos professoras/es sem formação pedagógica, o que desvaloriza os profissionais de educação”, alerta Alvete Pasin Bedin, professora do ensino público estadual e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores/as em Educação na Rede Pública de Santa Catarina (Sinte/SC).

Em um esquema de perguntas e respostas, o Ministério da Educação (MEC), busca refutar críticas à reforma do ensino médio. Entre as considerações (veja o quadro completo aqui), o MEC defende a autorização de profissionais de “notório saber” para ministrarem aula, afirmando que a permissão será “exclusivamente em disciplinas dos cursos técnicos e profissionalizantes, como já acontece hoje no sistema S e na maioria dos países do mundo”.

Profissionais da educação também destacam que há muitas questões em aberto na proposta, como o acesso ao ensino superior. “O ENEM e os vestibulares não são mudados por essa lei. Se você é pobre e frequenta um curso técnico ministrado por pessoas que tem conhecimento prático, como você poderá disputar uma vaga em uma universidade?”, questiona Elenira.

O Governo do Estado aguarda os próximos passos da discussão para determinar quais serão as suas prioridades. “A implementação depende da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que está em discussão e vai definir os objetivos e direitos de aprendizagem dos estudantes. Ela está sendo construída a partir de discussões com alunos, professores, pais, enfim, sociedade a partir de seminários e consulta pública. A partir daí cada sistema de ensino deverá escolher as suas prioridades para além do que está determinado pelas áreas de ensino da BNCC e que são obrigatórias. Todo processo será acompanhado pelo Conselho Estadual de Educação. Em 2017, a SED estará organizando a política de Ensino Médio e participando da finalização da BNCC. Ou seja, nada é obrigatório ser implementado imediatamente. Nenhuma escola da rede pública estadual de Santa Catarina mudará o seu currículo ou terá qualquer alteração proposta pela MP”, afirma Sirley.

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Neste cenário, estão inseridas outras medidas que têm mobilizado organizações pela resistência ao que chamam de programa liberal. Para o coletivo Rede Fora Temer Floripa*, o efeito mais danoso da MP 746 é a fragmentação do saber e dos indivíduos. “As pessoas serão destinadas desde muito cedo a uma função no mundo do trabalho. Em vez de a escola ser o lugar de desenvolvimento das potencialidades do ser humano, vai se tornar uma fornecedora de pessoas padronizadas para se encaixarem nos interesses do capital. Se a 241 é a PEC da morte, esta reforma do ensino pode ser chamada de MP da subcidadania”.

Foto: Elaine Tavares
Ocupação na Universidade Federal de Santa Catarina. Foto: Elaine Tavares

Reforma do ensino médio e a relação com PEC 241/55 e o “Escola sem Partido”

A MP 746 encontra reforço na PEC 241/55, identificada por entidades do movimento social e sindical como a PEC da morte. Encaminhada ao legislativo federal pelo Governo Temer, a medida já aprovada na Câmara Federal e que agora tramita no Senado como PEC 55 prevê o congelamento de gastos em áreas prioritárias. Caso seja definitivamente aprovada, setores como saúde e educação, que antes contavam com percentuais fixos no orçamento, terão investimentos limitados à inflação do ano anterior por vinte anos.

Para a professora Elenira Vilela, a MP 746 e a PEC 241/55 são duas faces da mesma moeda. “Uma delas impõe a redução do investimento em educação, impedindo a estruturação de um sistema educacional que ofereça formação crítica, a outra desconstrói o esquema curricular e organizacional”, afirma.

O Governo Federal reforça a ideia de que é preciso cortar gastos e que as medidas visam reequilibrar as contas do país que passa por uma crise econômica. Para setores do movimento social, a medida corta no atendimento à população, mas beneficia o mercado financeiro. “A PEC 241/55 torna clara a falta de seriedade da MP 746, ao congelar os recursos da educação por vinte anos, o que implicará em corte nas verbas e sucateamento da rede escolar pública. Se à privatização da riqueza brasileira acrescentarmos agora o restante do pacote neoliberal golpista, como o ataque aos direitos trabalhistas que também está na pauta, é fácil imaginar como será a vida escolar de adolescentes pobres”, alegam as/os integrantes da Rede Fora Temer Floripa.

Outra medida que vem mobilizando organizações estudantis e sindicais é o projeto de lei 867/2015, de autoria do deputado Izalci Ferreira (PSDB), que versa sobre o Programa “Escola sem Partido”, alcunhado pelos movimentos como “Lei da Mordaça”. A proposta tramita no Congresso Nacional e impõe uma série de restrições à prática profissional das/os professoras/es e à livre manifestação do pensamento. Diversas versões da lei tramitam em Assembleias Legislativas e Câmara Municipais brasileiras.

Para a professora Alvete, A MP 746 é uma resposta do Governo Temer aos segmentos que defendem a tese da Escola sem partido. “Isso fica evidente na retirada de disciplinas como Sociologia, Filosofia, Artes, além da redução da carga horária de formação geral. Entende-se que isso corresponde a um retrocesso, pois se investe numa proposta de educação cujo objetivo é o de tornar as pessoas manipuláveis. O currículo proposto pela MP busca formar sujeitos sem consciência de si e da sociedade no seu entorno, investindo somente nas habilidades e competências técnicas, esquecendo a formação da consciência crítica”, diz.

Corroboram com o mesmo pensamento manifestantes da Rede Fora Temer Floripa. “Removendo Filosofia, Sociologia e Artes do currículo se priva a juventude de ferramentas críticas para pensar o mundo em que vivem. Haveria então total dependência do que áreas afins, como história e geografia, pudessem revelar ao tratar dos seus conteúdos. A ligação entre a reforma do ensino médio e a lei da mordaça é tão grande que o deputado que irá presidir a discussão da MP na Câmara é o mesmo que redigiu o projeto de lei da “escola com mordaça”. Em respeito a uma suposta liberdade de pensamento dos estudantes, se cerceia completamente a liberdade de expressão das/os professoras/es, além de criminalizá-los”.

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Movimentos, Ocupações e resistência**
Mães, pais e professoras/es apoiam a iniciativa das/os estudantes que se mobilizam em torno da polêmica reforma do ensino médio e do impacto na educação pública. Mãe de uma jovem estudante de escola pública, a jornalista Adriane Canan aponta que mães e pais precisam estar atentas/os para o que prevê a reforma. Para ela, a MP 746 tem por trás um gigantesco interesse do capital, da iniciativa privada e do modelo liberal. “Algumas matérias da imprensa alternativa já apontaram a participação de fundações educacionais, como Instituto Unibanco, Fundação Itaú e outras, ligadas a bilionários, que, disfarçando um discurso de preocupação com a educação no país, têm no horizonte, na verdade, a intenção de limitar ou acabar com a possibilidade de formação de sujeitos pensantes. A reforma proposta quer, principalmente e entre outras coisas, ‘formar massa trabalhadora’ desmobilizada”.

De acordo com dados da União Brasileira de Estuantes Secundaristas (Ubes), o movimento chegou a alcançar mais de mil escolas ocupadas. Com a desocupação no Paraná, permanecem ocupadas 373 escolas e 185 universidades ocupadas em pelo menos 20 estados e no Distrito Federal. Na pauta, estudantes reivindicam a derrubada da MP 746, a não aprovação do projeto de lei 867 que denominam como “Lei da Mordaça” e a não aprovação da PEC 241 que, entre outras medidas, corta recursos da educação.

Reprodução/Ocupa IFSC Florianópolis
Reprodução/Ocupa IFSC Florianópolis

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Mães e pais se manifestam pela legitimidade dos movimentos de ocupação, além de acompanharem cada momento das atividades de resistência das quais suas/seus filhas/filhos participam. “Discutimos, eu e minha filha, cotidianamente, os impactos que podem vir à classe trabalhadora e ao futuro dos jovens, tanto com a reforma do ensino médio como com a atual PEC 241, que pretende congelar os investimentos por 20 anos. Ela tem 16 anos e já está na luta, ocupando sua escola com outras/os estudantes. Eu apoio a ocupação e busco participar ativamente da resistência aos retrocessos”, conta Adriane.

Segundo a Secretaria de Estado da Educação, nenhuma escola da rede pública estadual teve suas aulas suspensas por causa das ocupações. “A Gerência Regional de Educação de Chapecó está fazendo o acompanhamento das quatro escolas da rede estadual ocupadas. A orientação repassada aos/às integrantes da ocupação é para manter o ambiente tranquilo, respeitando os/as alunos/as que querem estudar e os/as professores/as que estão trabalhando”.

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Em Santa Catarina, ao menos 28 escolas secundaristas e centros universitárias foram ocupadas, segundo uma central criada para monitorar as ocupações. Na maioria das escolas, as aulas seguem mantidas. Segundo nota do IFC, pelo menos cinco dos 15 câmpus da antiga escola técnica foram ocupados ou realizaram atividades de mobilização. Outros cinco do antigo Cefet também estão ocupados no estado. A reitoria da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e o Centro de Filosofia e Ciências Humanas e o Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) também contam com ocupações.

* As fontes optaram pela não identificação individual, preferindo expressar a opinião do coletivo.

**Dados colhidos até o fechamento da edição.

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