Casar é fácil: basta que o casal vá ao cartório de registro civil mais próximo levando seus documentos requeridos e, se após averiguação  forem declarados livres e desimpedidos, o processo sai entre quinze e trinta dias. Mas não é assim que acontece se você não for heterossexual e entrar com o processo em alguns cartórios de Florianópolis. Na capital conhecida com gay friendly, é preciso autorização judicial para formalizar a união entre pessoas do mesmo sexo, o que pode levar mais que o dobro do tempo.

Segundo o último relatório da associação portuguesa Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgênero (ILGA), 22 países reconhecem e celebram casamentos entre  pessoas do mesmo sexo. O documento menciona o Brasil e o México como exemplo de nações onde o casamento é possível na maioria das jurisdições “por meios legais ou outros”. Aqui, a união civil estável entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal.

Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça permitiu o casamento entre homossexuais e a conversão de uniões estáveis homoafetivas em uniões civis, recomendando a adoção da medida por todos os cartórios brasileiros. O procedimento também foi autorizado por uma circular publicada no mesmo ano pelo Tribunal de Justiça (TJSC), determinando que os direitos sejam iguais aos dos casais heterossexuais. Desde então, 14 mil casais recorreram aos cartórios para formalizar a união – 898 em Santa Catarina, conforme os últimos dados divulgados pelo IBGE no ano passado.

Resolução do STF proíbe cartórios de recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo

Segundo a Resolução 175 publicada pelo Conselho Nacional de Justiça  (CNJ) em 14 de maio de 2013, as autoridades competentes são proibidas de se recusarem a habilitar ou celebrar casamento civil ou de converter união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Mesmo assim, multiplicam-se as negativas aos pedidos feitos por casais de gays e lésbicas em cartórios da capital catarinense.

Quase dois meses após entrar com o pedido no cartório, a terapeuta Paula Veiga e a funcionária pública Flávia Kfuri ainda não conseguiram habilitação para o casamento. Os documentos foram protocolados no cartório em 4 de maio. Na ocasião, elas receberam aviso no próprio cartório sobre a morosidade dos processos de uniões civis homoafetivas. No dia 8 de junho, foram informadas de que o pedido de habilitação de casamento havia sido negado pelo promotor Henrique Limongi, do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), da comarca da capital.

Paula Veiga e Flávia Kfuri aguardam homologação do pedido de união civil há quase dois meses | Foto: Arquivo pessoal

“Foi um baque.  Me senti frustrada e fiquei  com receio de que não desse certo, de que a gente tivesse que recorrer a um cartório em outra cidade. Nunca tinha passado por nada parecido”, conta Paula.

A corregedoria do Ministério Público recebeu a primeira denúncia contra o promotor por ignorar as recomendações do CNJ e da Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina apenas alguns meses após a deliberação do CNJ, em 2013. As autoras foram Priscila Zanuzzo e Carmem de Melo, que já viviam juntas há dez anos. “Marcamos a data do casamento para 23 de agosto e ficamos sabendo uma semana antes que não tinha sido homologado. Acabamos casando em outubro, quando conseguimos a homologação da juíza”, lembra. O caso ganhou repercussão nacional.

Priscila Zanuzzo e Carmem Abreu de Melo, juntas há 14 anos | Foto: Arquivo pessoal

Com Alexandre Bogas e Fabrício Gastaldi, o processo foi ainda mais demorado. Eles já haviam feito contrato de união estável em 2010 em um cartório de notas antes da liberação pelo STF. Em 2014, decidiram fazer o registro civil. Ingressaram com o pedido em janeiro em um cartório  que nunca havia homologado nenhum casamento homoafetivo e que também faz parte da comarca do promotor Henrique Limongi. O processo foi concluído apenas em maio. Ao mesmo tempo, Guilhermina Cunha e Carla Ayres também recebiam respostas negativas do promotor ao pedido de união estável.

A demora gerou revolta na comunidade LGBT. A ONG Acontece, da qual os dois casais fazem parte, realizou ato público no centro da capital com passeata e panelaço até o Ministério Público. “Florianópolis é o único lugar de todo o Brasil que temos notícia em que o MP nega os pedidos de união civil. O promotor Limongi tem negado. Ele também nega a retificação de nomes sociais de pessoas trans”, afirma Alexandre.

: : Leia também : : A luta das pessoas trans pelo uso do nome social

Quando casar é um ato político

Fabrício e Alexandre obtiveram a certidão de casamento cinco meses após o pedido no cartório, em 2014 | Foto: Arquivo pessoal

Em seus despachos, o promotor costuma levar em consideração estritamente o dispositivo da Constituição que prevê a união estável apenas entre pessoas heterossexuais, ignorando a recomendação do Conselho Nacional de Justiça e da própria Corregedoria do MP. Segundo a assessoria de imprensa do Conselho Nacional do Ministério Público, o processo para apurar a conduta do promotor de Justiça foi arquivado. O Conselho teria considerado que os atos praticados pelo membro do MP foram considerados dentro do “limite da independência funcional”  e, por se referirem à atividade-fim, “não podem ser revistos ou desconstituídos pelo CNMP”. O Conselho também afirma não ter dados compilados sobre situações em que promotorias ignoram jurisprudências sobre o tema.

Segundo a presidenta do Conselho Municipal dos Direitos LGBT  de Florianópolis, Guilhermina Cunha, há um movimento conservador dentro do judiciário para barrar direitos da população LGBT. “Tem uma linha de promotores e desembargadores empenhada em negar os direitos ao uso do nome social, a retirada da orientação e identidade das diretrizes curriculares e união civil”,

Trecho do despacho do promotor para o pedido de homologação da união estável de Priscila Zanuzzo e Carmem de Melo

Para Priscila, o sentimento é de impotência. “A gente se sente recebendo tratamento como cidadão de segunda classe. O promotor age de acordo com o que acredita e a justiça brasileira permite que ele haja desta forma. A gente não tem suporte legal do Estado”, lamenta.

Os casamentos continuam ocorrendo, mas o tratamento diferenciado revolta a comunidade LGBT. “Essa situação deixou bem claro que não temos tratamento igual. Ainda é preciso muita luta. Muita gente invisibilizada e silenciada fica à mercê”, diz Paula Veiga.

Alexandre Bogas acredita que a visibilidade ajuda a enfrentar também a homofobia institucional. “O que temos que fazer é continuar casando, se mostrando, andando de mãos dadas, beijando. Quanto mais as pessoas verem, mais comum será a diversidade”, afirma.

União homoafetiva no Brasil

Mudanças legais para prever o casamento LGBT no Código Civil e garantir segurança jurídica às uniões homoafetivas tramitam há anos no Congresso. O projeto de lei 612/2011 reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo e possibilita e a sua conversão em casamento. A proposição estabelece que a lei seja alterada para estabelecer como família “a união estável entre duas pessoas”, mantendo o restante do texto do artigo e adequando a lei em vigor ao entendimento já consagrado pelo STF. A lei enfrenta resistência conservadora, com a do deputado e pastor evangélico Magno Malta (PR).

Acompanhe os últimos marcos da luta pela união civil  na Justiça e no Congresso:

2008 – Proposição da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) altera o Código Civil para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo.

2011 – Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. A decisão significou que as regras que valem para relações estáveis entre homens e mulheres seriam aplicadas também aos casais homoafetivos.

2013 – Em função das divergências de interpretação sobre o tema, o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução para que cartórios passassem a celebrar o casamento civil e converter a união estável homoafetiva em casamento.

3 de maio de 2017 – Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprova projeto que altera o Código Civil para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo e possibilitar a conversão dessa união em casamento.

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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