É claro que essa coisa toda de Dia das Mães é uma tremenda bobagem, talvez muita idealização insustentável, puro comércio – e no entanto, e no entanto.

No primeiro Dia das Mães de que me lembro, corria o ano de 1975 e eu tinha só 5 anos. Ainda estava me familiarizando com o ambiente escolar, e então me pediram uma foto dela.  “Para uma homenagem”, disseram. Eu não sabia bem o que era isso, mas talvez intuísse.

Candidamente, eu peguei uma foto que guardava escondida comigo e que me encantava: minha mãe estava tão linda dançando, sorrindo luminosa, bem no meio de seus amigos de trabalho. E me parecia estar meio fantasiada, ainda por cima, com aquelas orelhas e aquele rabinho de coelho. Meus olhos brilhavam, quanto eu olhava a tal foto.

Naquele tempo eu ainda não sabia que uma imagem daquela seria tão imediatamente interditada. Ainda não sabia que havia tanta coisa proibida, ali. Não sabia que as mães dos meus coleguinhas nem de longe trabalhavam seminuas em boates e que a mera exposição daquela imagem numa festa escolar seria insuportável num colégio de freiras de classe média alta. Não sabia que uma mãe respeitável não poderia se apresentar daquele jeito gloriosamente sexy, alegre, firmíssimo, sem vergonha. Eu nem sabia, aliás, o que consideravam que fosse “respeitável”.

É verdade que, naquele ponto da história, eu ainda não tinha ouvido tantas vezes que minha mãe havia “abandonado as filhas” e fugido com um motorista de caminhão ou enlouquecido, entre outras tantas variações bizarras sobre o mesmo tema. Não tinha ouvido ainda tantos adultos e até outras crianças se referirem a ela como “perdida” ou “vagabunda”. Eu ainda não sabia que uma mulher podia ser punida tão profundamente apenas por ter querido se separar do marido e buscar pra si mesma uma outra vida mais afinada com a pessoa que ela era. Eu ainda não imaginava que apenas insistir em ser uma pessoa inteira, naquele contexto, e especialmente para uma mulher que já era mãe, fosse algo tão incompreensível e execrável.

Naquela época eu também ainda não sabia que minha mãe já tinha sido uma pianista profissional, uma virtuose precoce. Nem que tinha se formado no curso de Direito em primeiro lugar, e que tinha se afastado daquele universo depois de ter sido assediada estupidamente no escritório em que tentou trabalhar, já depois da separação e ainda sem nenhum dinheiro pra se sustentar. Naquele tempo ainda nem existia a palavra “assédio”, aliás. E “feminismo” já era, então, uma expressão usada como um palavrão que mal disfarçava o ódio às mulheres que tentavam se erguer publicamente um pouco acima do chão comum. Eu também não sabia que seria tão escandaloso, diante do mundo no qual eu estava imersa, que minha mãe trabalhasse cercada de homens negros que não eram os vagos guardadores de carro em frente ao colégio onde eu estudava, mas seus colegas próximos e queridos. Eu era tão tolinha que ainda não tinha percebido que, na minha escola, eu nunca teria nenhum colega nem professor nem coordenador de curso que fosse negro. Eu ainda não sabia bem, naquele momento, que sob a roupagem de tranquila respeitabilidade e farto prestígio social se escondia, tantas vezes, uma parte tão cega ou tão suja do mundo. Nem imaginava que, numa boate onde dançava com o corpo tão exposto, uma mulher como minha mãe ainda pudesse encontrar um ambiente mais digno e menos violento do que aquele que existia, por vezes, em escritórios sérios e tradicionais casas de família.

Eu não imaginava nem percebia, tampouco, que a pracinha onde eu brincava num bairro residencial de “gente de bem” tinha o nome de um general que comandava diretamente assassinatos levados a cabo como política de estado. E também não poderia acreditar que, até hoje, ainda existiriam mais de 700 escolas com os nomes de outros assassinos fardados como ele, e que por tanto tempo ainda haveria pessoas homenageando publicamente uma longa tradição de dor e silêncio sufocado, de torturas aprendidas, de obediência cega e cúmplice. Naquele tempo eu vivia cercada de gente cantando que “este é um país que vai pra frente”, ou reclamando dos estudantes “baderneiros” e do “perigo comunista”. E eu estava apenas começando a ouvir conhecidos próximos que tentariam me alertar sobre o perigo que era, para uma mocinha como eu, “estudar demais”. Só de muito longe, naquele tempo, eu ouvia dizer um pouco mais claramente que havia “subversivos perigosos” à solta e que eles deveriam ser “eliminados” ou “mandados pra bem longe”.

Naquele tempo, aliás, eu não sabia o quanto uma mulher como minha mãe também podia ser eliminada e mandada pra bem longe. E o quão discretamente era possível se fazer isso com uma pessoa como ela, ainda muito mais por ser mulher, e de um jeito que nem os “subversivos” mais oficiais costumavam notar. Eu não sabia, ou ao menos não tão conscientemente, o quanto mulheres sempre perigavam ter de viver num longo exílio sem ninguém se dar conta desses sumiços, dessas vidas subterrâneas, desses danos muito discretos e monstruosos. Eu nem sabia que uma gravidez a mais, pra ela, seria o suficiente para jogá-la pra muito perto da miséria e do completo isolamento e que, por mais que nos anos seguintes ela pudesse se sentir exausta de cuidar das minhas irmãs menores e da casa sozinha, ela teria que responder engolindo em seco, quando lhe perguntassem: “não, eu não trabalho”.

O que eu sabia bem, no entanto, e até muito pelo contrário disso tudo, é que minha mãe encontrava maneiras de estar sempre por perto, mesmo quando estava aparentemente muito longe, e que sua mera presença sólida e amorosa, nas brechas já então tão fundamentais da minha vida, encarnava uma ação revolucionária maior e mais imediatamente palpável do que todas as outras que vi e que aprendi a amar depois, em todos os anos que pude viver. Por mais que as poucas fotos dela, naquela época, tenham sido sempre ocultadas ou meticulosamente riscadas com prego até só sobrar uma superfície branca e destruída – mas também, afinal, mais profunda.

Naquela época eu ainda era tão boba, sabe? Eu ainda não sabia o quanto aquela experiência de maternidade que ela tinha me mostrado, com toda a preciosa sombra do mundo que ela iluminava atrevidamente, pra mim, seriam fundamentais pra coisas posteriores como a minha “formação intelectual” ou minha “consciência política”. Ou o quanto estariam na absoluta base de todo o meu desejo político de memória, verdade e justiça – pro país, pro mundo e também pra mim.

Talvez por isso, até hoje, eu não ache esse negócio todo de Dias das Mães uma bobagem tão grande assim. O que eu não sabia – mas pressentia, de todos os modos e por todos os poros – é que ainda haveria mais mil camadas dessa experiência humana tão central nas vidas de toda gente que ainda deveríamos escavar, redescobrir, explorar, questionar, reverenciar, expandir, inventar.

(E seja como for, mãe, ao menos aí está aquela sua foto arrasante, bem no mural desta espécie de escola. Aquela homenagem que ficou entalada, enfim: 43 anos depois.)

 

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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