Os principais achados de pesquisa demonstram que:

  • O hospital é um local de risco para as mulheres
  • Mulheres e adolescentes sofrem maus-tratos e são perseguidas nos estabelecimentos de saúde
  • Não há devido processo legal
  • O acesso ao aborto legal é negado e mulheres são perseguidas 
  • Adolescentes são perseguidas e punidas por aborto
  • Mulheres descritas como maléficas
  • Há prisões por aborto no Brasil

Luísa*, moradora da região Sul do Brasil, começou a ser abusada pelo genitor aos 15 anos e ficou grávida. Ele a obrigou a tomar chás e remédios abortivos. Mesmo sendo vítima de violência sexual — o que por si só já garantia o direito ao aborto legal — e obrigada a ingerir as substâncias, Luísa foi denunciada pelo crime de aborto. 

O caso é um dos mais emblemáticos documentados pela pesquisa conduzida pela Anis – Instituto de Bioética, que analisou processos judiciais sobre aborto no Brasil entre 2012 e 2022 e revelou graves violações de direitos contra meninas e mulheres.

Clique aqui para acessar o estudo completo.

A pesquisa analisou 402 processos judiciais e traz uma radiografia inédita da perseguição institucional contra quem aborta no Brasil. Os dados foram extraídos de decisões de 23 tribunais estaduais e dois tribunais superiores, além de 12 documentos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação em 12 estados, referentes a prisões por aborto. Os crimes mais frequentemente utilizados nos processos são o autoaborto (artigo 124 do Código Penal) e o aborto com consentimento da gestante (artigo 126).

A análise se concentrou em decisões de segunda instância, já que os tribunais não disponibilizam publicamente os documentos da primeira instância, restringindo o acesso à totalidade das informações sobre a criminalização.

Vulnerabilidade e criminalização: um duplo castigo

O estudo revela que, ao longo de uma década, o Estado brasileiro investigou, denunciou ou processou pelo menos 569 pessoas por aborto. Desse total, 471 eram rés principais e 98 foram mencionadas como corrés nos processos. Ao menos 218 chegaram a ser presas — 175 delas preventivamente, antes mesmo de qualquer julgamento.

Esses dados demonstram que 4 em cada 5 mulheres foram condenadas, levadas ao julgamento em tribunal do júri, tiveram prisão preventiva decretada ou foram submetidas à suspensão condicional do processo com condições restritivas, como a proibição de frequentar até determinados espaços, como bares e festas.

As vítimas da criminalização têm cor, classe e CEP: são, em sua maioria, mulheres negras, moradoras das periferias, com vínculos de trabalho precários e baixa escolarização. Usam o SUS e são atendidas por defensoras públicas.

“Elas tendem a aceitar a proposta de suspensão condicional do processo (SCP) para não permanecerem atreladas a um processo judicial, ainda que isso implique cumprimento de condições excessivas”, afirma Raquel Lustosa, antropóloga e pesquisadora da Anis. 

A pesquisa combinou métodos quantitativos e qualitativos, além da análise de processos judiciais, foram realizadas entrevistas com duas profissionais da saúde, três defensoras públicas e uma mulher criminalizada. O estudo amplia o levantamento “Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres”, publicado em 2022 pela Clínica de Direitos Humanos da Mulher da Universidade de São Paulo (USP). 

O estudo faz parte da Iniciativa Regional sobre a Criminalização do Aborto (IRCA), com apoio da organização de direitos humanos Ríos/Rivers, e resultou na campanha “Poderia ser eu – por uma saúde sem medos”. A ação documenta os efeitos da criminalização em seis países da América Latina e do Caribe: Brasil (Anis – Instituto de Bioética), Chile (Miles), Guatemala (Crisálidas), Peru (Proyecta Igualdad), República Dominicana (Cladem) e Uruguai (MYSU).

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Crédito: reprodução.

Pacientes são perseguidas em estabelecimentos de saúde

A criminalização começa, muitas vezes, dentro dos hospitais. Das 104 denúncias cuja origem pôde ser identificada, praticamente metade delas partiram de profissionais de saúde, indicando a principal violação encontrada no estudo: a quebra de sigilo profissional utilizada como instrumento para processar mulheres por aborto. O sigilo médico é uma responsabilidade posta aos profissionais de saúde tanto no Código de Ética da profissão como no Código Penal, porém não é respeitado dentro das instituições.

A participação de profissionais de saúde nos processos judiciais se dá de diferentes formas, sendo as mais comuns como denunciantes, como testemunhas de acusação e como figuras que ameaçam ou induzem a mulher a confessar o suposto aborto.

“Observamos que mulheres que enfrentam emergências obstétricas, seja por aborto espontâneo ou voluntário, encontram barreiras no acesso ao cuidado em saúde”, destaca Lustosa. 

Em casos mapeados, os profissionais da saúde assumiram sem base que questões de saúde teriam sido a consequência de um aborto autoprovocado. “Emergências obstétricas passam a ser tratadas como casos de aborto e de polícia, deixando de ser reconhecidas como demandas de cuidado em saúde. Meninas e mulheres passam a percorrer itinerários penais e punitivos marcados por violações de direitos, com processos que se iniciam e seguem sem materialidade, ou seja, sem provas”, relata Lustosa, que é uma das autoras do estudo.

Em outros casos, profissionais de saúde ameaçam ou coagem mulheres. Uma mulher da região Sudeste ouviu de uma médica que a equipe utilizaria um medicamento letal se ela não confessasse ter abortado. A mesma profissional ainda depôs como testemunha de acusação e forneceu os registros do atendimento.

Conselheiros tutelares denunciam em vez de proteger

Os Conselhos Tutelares foram responsáveis pela denúncia contra adolescentes às autoridades policiais em pelo menos dois casos. Conselheiros tutelares também atuaram como testemunhas de acusação contra pelo menos três mulheres adultas. “Eles chamam a atenção por atuarem de forma contrária ao seu dever institucional de cuidado e proteção”, destaca Raquel Lustosa.

Somente em 2023, foram registrados mais de 64 mil casos de estupro de vulnerável no Brasil, ou seja, violência cometida contra menores de 14 anos ou pessoas que, por qualquer causa, não possam oferecer resistência. Em casos que o abuso resulta em gestação, o direito ao aborto legal é garantido pela lei no país.

“Adolescentes, vítimas de violência sexual e que poderiam ter seu direito ao aborto permitido em lei, foram expostas, tratadas como suspeitas ou criminosas pelos próprios conselhos tutelares. Esses casos revelam que, em muitas situações, nem mesmo o órgão responsável por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes cumpre sua função, contribuindo para a revitimização e para a violação de direitos fundamentais”, relata a antropóloga.

Em um dos casos, na região Norte do país, o estudo identificou uma dupla violação de sigilo profissional. A denúncia para a polícia partiu de um conselheiro tutelar que foi acionado por uma enfermeira. O prontuário médico da menina incriminada está nos autos do processo, assim como o relatório do atendimento psicológico realizado no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), unidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

“Em vez de acionar a rede de proteção, fazer o encaminhamento aos serviços de referência para aborto legal, verificar a situação de violência e acompanhar a adolescente e sua família, o conselho tutelar, nestes casos, reforça práticas punitivas e estigmatizantes, se distanciando de seu papel protetivo e intensificando os danos vividos por essas meninas”, critica a entrevistada .

Sistema de justiça reforça estigmas e discriminação contra mulheres

A maior parte dos processos analisados teve seguimento mesmo sem provas materiais, com provas inválidas ou sustentados por ameaças para forçar a autoincriminação das mulheres. Mesmo quando uma denúncia é rejeitada por falta de provas mínimas, o estudo identificou que é comum que o Ministério Público recorra para que a denúncia seja aceita. Além disso, são aplicados estereótipos de gênero que tendem a influenciar diretamente em desfechos negativos. As mulheres são descritas como “frias”, “maléficas” ou “reprováveis”.

“O sistema de justiça aciona mecanismos, durante as fases processuais, para culpabilizar, punir e marginalizar mulheres que enfrentam emergências obstétricas. Em muitos casos, constrói-se a imagem da mulher ‘fria e reprovável’ tratada como uma ameaça à ordem social”, explica a antropóloga. 

A pesquisadora argumenta que a associação entre a imagem da mulher e condutas moralmente condenáveis é um reflexo da misoginia que atravessa o sistema de justiça e evidência o impacto da discriminação de gênero sobre as garantias processuais. “Na prática, o uso desses estereótipos intensifica a perseguição, a marginalização e a punição contra mulheres, especialmente se estão em situação de vulnerabilidade”, complementa.

Outra questão levantada pelo estudo que explicita a misoginia do sistema de justiça é que homens agressores recebem penas mais brandas enquanto mulheres e meninas vítimas de violência são novamente penalizadas. Mesmo em situações que envolvem cenas de violência contra meninas e mulheres, é frequente a aplicação do artigo 126, que caracteriza o aborto com consentimento da gestante, ainda que o procedimento tenha ocorrido por meio de ameaça, fraude ou outro tipo de violência. Já os homens classificados como agressores não foram enquadrados no artigo 125, que se refere ao aborto sem o consentimento da vítima.

“Essa diferenciação demonstra leniência com esses homens e sugere ao mesmo tempo um interesse em responsabilizar meninas e mulheres, apesar do consentimento ser inválido. Há um regime de suspeição que coloca mulheres como culpadas mesmo em contexto de violência e isso mostra quão profundas são as desigualdades no sistema de justiça”, argumenta a pesquisadora.

Como mudar este cenário?

Para reverter as violações documentadas, o estudo propõe mudanças urgentes nos sistemas de saúde e justiça. Entre as recomendações estão a revisão dos protocolos de atendimento em saúde sexual e reprodutiva, com garantia de acolhimento ético e respeito ao sigilo profissional — obrigação legal e constitucional.

No campo jurídico, a formação continuada de magistradas, magistrados e membros do Ministério Público é considerada essencial para evitar denúncias infundadas e garantir julgamentos com base no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O estudo também cobra do CNJ a implementação de mecanismos de monitoramento com recorte de raça, gênero e classe, para orientar políticas públicas e combater desigualdades estruturais. 

Ao Supremo Tribunal Federal (STF), a principal recomendação é a retomada do julgamento da ADPF 442, que propõe a descriminalização do aborto até a 12ª semana. O estudo também defende o avanço da ADPF 1207, que amplia o acesso ao aborto legal conforme as diretrizes da Organização Mundial da Saúde.

*Adotamos um nome fictício para ilustrar a situação identificada no estudo.

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