Desde que virou crime hediondo, em 2015, o termo feminicídio começou a se popularizar, mas ainda há limites na compreensão do gênero como motivador para a morte de 4.657 brasileiras apenas no ano passado, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Falta divulgação e também estudos que possam ajudar a identificar os casos no cotidiano social. A pesquisa “Feminicídios no Brasil, uma proposta de análise com dados do setor de saúde”, apresentada em outubro pela demógrafa Jackeline Aparecida Ferreira Romio, pode ajudar a aprimorar os registros das agressões e mortes violentas.

Resultado da tese de doutorado que a pesquisadora defendeu na Universidade Estadual de Campinas, a pesquisa se propõe a aprofundar a leitura das estatísticas e classifica o feminicídio em três categorias: doméstico (quando ocorre no espaço da residência); reprodutivo (em decorrência do aborto); e sexual (por violência sexual). O perfil das vítimas confirma dados já publicizados em outras pesquisas sobre violência: as mulheres negras e pobres estão no topo de todas as três categorias.

“É um fenômeno generalizado que pode atacar desde jovem branca da classe média até jovem negra da periferia, porém, assim como os homicídios contra homens tem uma maior incidência na população negra, pobre e jovem, o mesmo ocorre no caso dos feminicídios”, afirma a pesquisadora.

Ativista do movimento feminista negro, Jackeline estuda a temática da violência contra as mulheres desde a iniciação científica. Da academia e do movimento social, acompanhou a evolução do conceito de feminicídio e a construção das estatísticas de violência de gênero e decidiu consolidar o conhecimento acumulado nos  estudos demográficos. “Eu queria contribuir para um diagnóstico do impacto da dimensão da violência de gênero na vida das mulheres brasileiras e identificar as questões relacionadas aos marcadores sociais como raça, idade, estado civil”, conta a pesquisadora.

Na pesquisa, ela utilizou dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde – o mesmo utilizado pela pesquisa Mapa da Violência – e ainda Declarações de Óbito do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) entre os anos de 2009 e 2014. A opção pelas bases de dados da saúde ao invés da segurança pública, que trata os casos do ponto de vista criminal, teve em vista a diferença na consistência das informações disponíveis pelas duas áreas.”Eu nunca conseguiria fazer um estudo nacional com dados da segurança pública por que eles são ora estaduais, ora municipais. Pra ter estas informações era preciso um sistema integrado nacionalmente. Se a gente fosse esperar as primeiras punições por feminicídio, levaria anos. Não é preciso esperar por que (a violência) já é um fenômeno que agrava e impacta na saúde das mulheres. No futuro, pode ser que a gente consiga (acesso a dados fiéis da segurança), mas também não é certo, por que a gente sabe do sexismo e do machismo estrutural que existe ali”, conta Jackeline.

Além de confirmar o perfil já conhecido das vítimas de morte por feminicídio, a pesquisadora também destaca aspectos estatisticamente menos numerosos, porém, significativos. Dois deles estão relacionados a vítimas da violência reprodutiva, quando as mortes acontecem em função da violência institucional que resulta das leis proibitivas do aborto e do controle do corpo e da sexualidade das mulheres. Há situações recorrentes fora do período considerado majoritariamente reprodutivo (15 a 49 anos), segundo a pesquisadora. “Encontrei mulheres que morreram por aborto após os 49 anos. Sabemos que o risco é altíssimo nesta idade. Também encontrei a contradição que é a morte de muitas meninas com menos de 15 anos por abortamento. Nestas situações (que envolvem menores de idade no Brasil e a relação sexual é considerada estupro) há garantia legal para o abortamento, mas mesmo assim elas fizeram o aborto clandestino e acabaram morrendo”, observou.

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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