Uma das características que têm marcado o turbulento cenário político brasileiro é a articulação entre os movimentos sociais que ganham as ruas – sejam eles de apoio ao ou protesto contra o governo, por exemplo – e as conversações que se desenrolam em espaços on-line, como os sites de redes sociais. Nessa conjuntura, informações e hashtags trocadas na web alicerçam e impulsionam atividades como a Greve Geral do dia 14 de junho, que surgiu com um chamado nas redes, em especial no Twitter, alimentado pelas tags #GreveGeral14J e #GrevePeloBrasil.

Outro exemplo da imbricação entre ruas e internet é o #EleNão. Formado no âmbito das redes sociais on-line, o movimento foi a resposta de uma parcela da população – composta, essencialmente, de mulheres, integrantes da luta antirracista e militantes pelos direitos LGBTQ+ – à candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência do Brasil. O ex-deputado federal possui um histórico de declarações  ofensivas que partem da misoginia ao racismo e à LGBTfobia, presentes em diferentes momentos de sua vida pública. Tais posicionamentos foram a força propulsora do movimento que surgiu como resistência contra o político de direita.

A hashtag formou-se em meio às interações geradas no interior do grupo de Facebook “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, criado em 30 de agosto de 2018, mas ultrapassou esses limites, movimentando protestos em diferentes capitais do país e sendo tema de discussões variadas, muitas das quais fomentaram a disseminação de estereótipos. Foi com a intenção de identificá-los que iniciei a pesquisa “Conversação política e identidades: uma análise dos estereótipos presentes nas discussões on-line sobre o movimento #EleNão”.

O estudo olhou para todas as conversações sobre o #EleNão encontradas na página de Facebook do Movimento Brasil Livre (MBL). A fanpage foi escolhida não apenas pela quantidade expressiva de seguidores – possui mais de 3,4 milhões –, mas também por sua tradicional oposição ao feminismo e suas pautas. Além disso, o MBL apoiou Jair Bolsonaro em sua corrida ao Palácio do Planalto.

Ao todo, foram encontradas 29 postagens sobre o tema na página do movimento “liberal conservador”. Destas, foi coletado, com ferramentas específicas para tal tarefa, um universo de 26.167 comentários. São esses comentários que, na pesquisa, são considerados expressões de conversação política sobre o movimento de oposição a Bolsonaro. Essa relação é sustentada por um aporte teórico embasado em estudos sobre deliberação e conversação cotidiana.

Para encontrar os estereótipos, foi feita uma análise de conteúdo – que consiste em um método para identificar a presença e/ou a frequência de determinados elementos em textos – em uma amostra representativa de 379 comentários. As variáveis da análise correspondem, primeiro, ao posicionamento encontrado no comentário, que poderia ser favorável ao #EleNão, contrário ao movimento ou indefinido, quando não era possível identificar a posição do comentador.

Depois, os conteúdos foram classificados de acordo com a presença ou a ausência de adjetivos e alcunhas pejorativas. A presença significou a estereotipação do indivíduo ou do grupo sobre quem se falava. Esses estereótipos, conforme foi identificado na análise do material, puderam ser encaixados em sete tipos: políticos, morais, de gênero, ligados à sexualidade, ligados à raça e etnia, cognitivos e religiosos. Quando não se enquadrava em nenhuma das categorias, o comentário era designado à variável “outros adjetivos/ alcunhas”. No quadro abaixo, é possível ver quais os termos foram mais comuns em cada um dos tipos mencionados.

Livro de códigos:

Presença de estereótipos Com categorias binárias: contém (1) ou não contém (0) os termos descritos ou similares Políticos Comunista, esquerdista, esquerdalha, militante de esquerda, golpista, petista, petralha, fascista, bolsominion, massa de manobra, inimiga do Brasil.
Morais Farinha do mesmo saco, ordinária, desmoralizada, de quinta, decadente, desclassificada, medíocre, bandido, ladrão, bárbaro, selvagem, cleptomaníaco, imprestável, intolerante, corrupta, arrogante, vagabundo.
De gênero Vagabunda, filha(o) da puta, cadela, mulherzinha, vaca, puta, pelada, feia, vadia, biscate, piranha, mal amada.
Ligados à sexualidade Viado, cola velcro, sapata.
Ligados à raça e etnia Racista, xenófobo.
Cognitivos Precária mental, sem noção, besta, retardada, boba, idiota, doente mental, imbecil, fora da casinha, gagá, burra, ignorante, analfabeta, débil mental.
Religiosos Satânica, demoníaco, filha do diabo, capiroto.
Outros adjetivos/ alcunhas Bosta, babaca, nojenta, lixo, parasita, ridícula, porcos, podre, suja, imunda, aberração.

Os resultados do estudo apontaram para a existência de estereótipos em pouco menos de um terço dos comentários observados: 30,8% do material continha ao menos uma das classes apresentadas. Do total, 267 comentários (70,4%) se opunham ao movimento. Destes, 104 possuíam conteúdos que apresentavam alguma forma de estereótipo. Somente 15 comentários (4,5%) – três deles contendo estereótipos – posicionavam-se a favor do #EleNão. Essa disparidade pode ser explicada pelo posicionamento da própria página, que é contra o movimento, mostrando que, nas conversações, há mais consonância do que discordância entre os comentadores e a fanpage.

A variável que mais apareceu, de maneira geral, no material analisado foi a correspondente a “Outros adjetivos/alcunhas”, que abrange termos pejorativos que não se encaixaram nas demais classes temáticas. Em relação às formas de estereótipos encontradas, houve um predomínio dos definidos como “Morais”, que se relacionam com a índole e a conduta daquele, ou daquela, sobre quem se fala. Os discursos contidos nessa categoria buscaram reduzir pessoas ou grupos a características negativas ligadas ao caráter, usando termos como “medíocre”, “ladrão”, “corrupto” e afins.

Tipos de estereótipos presentes nos comentários:

Gráfico 3: Tipos de estereótipos presentes nos comentários

Em seguida, estão os termos categorizados como “políticos”. “Petista”, “petralha”, “esquerdista”, “esquerdalha” e “comunista” foram algumas das palavras que marcaram a classe, frequentemente utilizadas para designar todos os envolvidos no movimento #EleNão, que foi tachado como um protesto alinhado ao comunismo e à esquerda e ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT).

Os estereótipos ligados a gênero corresponderam à quarta classe mais encontrada durante a análise. Nesse caso, foram comuns os comentários direcionados às integrantes do movimento #EleNão de maneira geral – ou, em situações bem pontuais, às opositoras do mesmo –, reduzindo-as a termos pejorativos intimamente ligados à sua condição como mulheres. “Vagabunda, filha(o) da puta, cadela, mulherzinha, vaca, puta, pelada, feia, vadia, biscate, piranha, mal amada” foram adjetivos usados para descredibilizar as manifestantes.

Em 14,5% dos comentários, foram encontradas expressões que duvidavam ou zombavam das capacidades cognitivas de outros grupos ou pessoas. Discursos que faziam uso das palavras “burro”, “imbecil”, “ignorante” e variações entraram nessa classificação. As outras três categorias – “ligados à sexualidade”, “religiosos” e “ligados à raça e etnia” – foram menos expressivas no material analisado. É importante mencionar que um mesmo comentário poderia estar ligado a mais de um tipo de estereótipo, já que a análise dependia da presença ou da ausência de termos.

A questão da substantivação e da adjetivação não esgota, de maneira alguma, a discussão sobre os estereótipos presentes nas conversações políticas analisadas. Estes podem ir além do uso dos termos identificados, escapando às classificações realizadas. Como um estudo exploratório, o artigo pretendeu constituir um primeiro olhar sobre o caso. Espera-se que instigue novas pesquisas, que avançarão na compreensão do assunto.

*Rafaela Mazurechen Sinderski é mestranda em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela mesma instituição. É pesquisadora do grupo de pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública (CPOP). Tem interesse em pesquisas sobre internet e política, conversações digitais, formação da opinião pública e mídia e eleições. Bolsista CAPES de mestrado.

 

 

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