Pelo direito ao abraço
Novas regras da Secretaria de Administração Prisional de SC para o retorno das visitas presenciais nos presididos gera revolta nos familiares
Novas regras para o retorno das visitas presenciais nos presididos catarinenses gera revolta nos familiares.
Desde o início da pandemia, detentos de diversos estados brasileiros estão sem contato físico com a família. Em Santa Catarina, são 20 meses sem afeto, sem carinho, sem abraço. Durante este tempo, as visitas foram realizadas de maneira virtual, por meio de chamadas de vídeo. Geralmente, ocorrem uma vez por mês e duram cerca de 20 minutos.
Em setembro, a Secretaria de Administração Prisional de Santa Catarina publicou a portaria nº 1187/GABS/SAP, que regulamenta o retorno das visitas presenciais nos sistemas prisional e socioeducativo do Estado.
As regras da nova portaria foram definidas pela Central Covid-19 e pela Sala de Situação da Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa (SAP), e validadas pelo Centro de Operações de Emergência em Saúde (Coes).
Segundo a nova portaria, somente pessoas que já estão cadastradas no sistema i-PEN ou SISE podem realizar a visita, que irá ocorrer apenas uma vez por mês, respeitando o distanciamento de 1.5 metros. As visitas irão durar 30 minutos, e serão vigiadas por um agente prisional. Antes de entrar na unidade, será aferida a temperatura do visitante, e verificada a ausência de sintomas que caracterizam a Covid-19.
Apesar da distância, do tempo e da saudade, os familiares não poderão sequer abraçar seus entes encarcerados. Somente adultos podem realizar a visita, e assim, os pais continuarão sem poder ver seus filhos.
Filhos, que em alguns casos, ainda nem conhecem. É o caso da filha caçula de Fernanda Bernardes, de 28 anos. Durante a manifestação pelos direitos dos presidiários que ocorreu em 1 de outubro, no bairro Agronômica, Fernanda estava acompanhada de seus dois filhos. A caçula tem 1 ano e 4 meses, e não chegou a conhecer o pai, preso há dois anos. Devido a pandemia, já são quase vinte meses sem poder abraçar o marido.
A jovem conta que apesar da caçula não conhecer o pai, quem mais tem sofrido é o irmão, de 4 anos. Emocionada, lembra de um momento doloroso que aconteceu recentemente, em agosto. “No Dia dos Pais, ele me perguntou pra quem que ele ia dar dia dos pais.”
Andressa Brisola Pereira, 29 anos, que também esteve na manifestação, reforça que uma vídeo chamada mensal não é o suficiente. “Eu tenho 3 filhos, é bem complicado. Uma chamada de vídeo, é pra ser 20 minutos e dura 10. Às vezes a gente fica esperando, e não tem a chamada. Meus filhos passam mal. Meu filho de 4 anos chega a vomitar”, comenta.
Novas regras para visitação
Apesar de Santa Catarina avançar na vacinação da população, o risco de contágio de Covid-19 é justificativa utilizada para a diminuição do tempo de visitação, que antes ocorria das 8h30 às 11h.
As novas regras para visitação se baseiam em dois fatores: a chamada matriz de risco de cada região do Estado, e o número de casos ativos de Covid-19 na unidade. A matriz de risco é uma análise divulgada todos os sábados pela Secretaria de Estado da Saúde.
Nas regiões de níveis alto e grave (amarelo e laranja), o encontro entre o reeducando e o familiar será de 30 minutos. Se a unidade se encontra em região classificada no risco moderado (azul), o encontro terá uma hora.
Em caso de matriz de risco gravíssimo (vermelho), não haverá visitação. A visita também pode ser suspensa em caso de surto da doença na unidade prisional. Na última matriz de risco, divulgada em 2 de outubro, a região da Grande Florianópolis está em nível alto (amarelo).
Existe também a possibilidade dos encontros continuarem virtuais, se o familiar preferir. A modalidade escolhida pelo visitante deve ser informada no agendamento prévio junto à unidade.
Os limites são diferentes nos dois tipos de detenção. Nas unidades prisionais, está liberada apenas uma visita por mês, seja presencial ou virtual. Já nas unidades socioeducativas, há liberação para uma visita por semana, mas apenas uma presencial por mês. Assim, ocorrem três virtuais e uma presencial no período de 30 dias.
As visitas presenciais só poderão ocorrer mediante a apresentação do comprovante de vacinação das/dos visitantes, que estiverem com o esquema vacinal completo – duas doses tomadas ou dose única. E ainda com a imunização garantida, o distanciamento é obrigatório. A proibição do contato físico, tida como medida preventiva, é denunciada como uma forma de desumanização das pessoas encarceradas.
Para o ativista Leonardo Medeiros de Souza, 21 anos, a medida também é uma forma de tortura, para aqueles que estão presos, e para seus familiares.
“Isso não é pandemia, é um aparato do Estado para reprimir. É uma forma que o Estado criou para reprimir tanto os presos, quanto às famílias. Tortura não é necessariamente física, como os presos sofrem lá dentro. Isso é uma tortura mental, psicológica, que essas mães, esposas, e esses presos estão sofrendo.”
Fora das selas, sabemos que já são poucos os que ainda respeitam as medidas de biossegurança, como o uso de máscaras, álcool em gel, e principalmente, evitar aglomerações. O Decreto nº 1.486/2021, editado pelo governador Carlos Moisés, prevê a retomada gradual de eventos e shows a partir de 1º de outubro.
Enquanto praias, bares e mercados seguem cada vez mais lotados, Clarissa de Andrade Goulart não pode abraçar seu filho e seu marido, que estão detidos. Clarissa explica que é inviável viajar até Laguna, onde o filho está preso, para uma visita de 30 minutos, onde não poderá nem abraçá-lo. A catarinense de 46 anos segue tendo contato com os familiares apenas com as chamadas de vídeo, que duram 10 ou 15 minutos.
A manifestante Ariani Freitas Hauptli, 24 anos, denunciou que o contato através de cartas também tem sido dificultado. “A gente manda uma carta, eles falam que tem sete dias pra poder dar resposta. Passa uma semana, 14 dias, e não chega retorno de carta. A gente não tem notícia deles”, relata.
Clarissa denuncia a desonestidade da mídia tradicional, que não dá a mínima visibilidade para o tema. Ela, assim como muitas esposas e mães de apenados, se sente discriminada. “O objetivo do governo é deixar a gente cada vez mais distante deles. Sendo que eles já estão pagando pelo que eles cometeram. Eles estão presos, pagando pelo crime deles. Porque tirar mais direitos deles? Eles querem cada vez tirar mais. E a mídia não dá atenção pra isso.”
Leonardo, que acompanhava as familiares durante a manifestação, concorda. “Quando você faz uma reportagem, você precisa ver a perspectiva dessas mulheres. Simplesmente passar na TV que as mulheres estão invadindo a rua, sem contextualizar os seus direitos, isso é um ataque, uma distorção dos fatos.”
O ativista reforça que além de proibir o direito ao afeto, garantido pela Constituição, a nova medida também impede a fiscalização popular da situação vivida pelos detentos.
“As maiores vozes no sistema prisional são as mães e as mulheres. Quando o Estado nega isso (o contato), tá negando a fiscalização. Então algo de errado está acontecendo. E a gente sabe, é tortura, castigo, falta de comida e agua, as piores condições.”
Preso não é lixo, preso tem família!
Na última semana, de 27 de setembro a 1 de outubro, ocorreu uma série de manifestações no bairro Agronômica. Familiares das pessoas encarceradas se reuniram em frente à casa do governador, para protestar pelo direito de abraçarem seus entes queridos.
A manifestação ocorreu em caminhada em frente ao Complexo Prisional de Florianópolis, na avenida Delminda Silveira, no bairro Agronômica. Durante toda a tarde, gritos ecoaram pelo bairro, como “30 minutos não”, “Família na rua, Estado a culpa é sua” e “Preso não é lixo, preso tem família”. Apesar do protesto ser pacífico, muitos motociclistas não respeitaram a manifestação. Diversos deles cruzaram a divisória e saíram pela contramão.
Houve momentos de tensão no local, quando uma motociclista agrediu verbalmente uma das manifestantes, dizendo que as mulheres presentes eram “um bando de vagabundas”, e que ela precisava ser liberada para ir trabalhar. Depois da briga, a polícia esteve no local. Pouco tempo depois, outro momento de tensão, quando um motociclista tentou furar o bloqueio e quase atingiu uma criança, que estava ao lado da mãe.
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Na sexta-feira, 1 de outubro, os organizadores da manifestação tiveram uma reunião com o Conselho da Comunidade Penitenciária de Florianópolis, onde entregaram um abaixo assinado que teve mais de 900 assinaturas, pedindo o retorno das visitas com o tempo normal de duração.
A organização também afirmou que vai protocolar um pedido de audiência pública ou reunião ampliada, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), pra que a Comissão de Tortura da Alesc enquadre e debata a violência que as famílias estão sofrendo.
É importante ressaltar que a Lei Federal n.º 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), prevê, dentre outros, a visita, educação, atividades laborais e assistência religiosa como direitos do preso.
Paternidade negada e violência contra as famílias
A pesquisadora e antropóloga Isadora de Assis Bandeira, 27 anos, esteve nas manifestações para ouvir as famílias. Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Isadora investiga as violências sofridas pelas famílias dos presidiários.
Um dos pontos de sua pesquisa é a questão econômica enfrentada pelas familiares. Apesar do desconhecimento da maior parte da população, os familiares auxiliam os presos com roupas, itens de higiene e alimentação – recursos que deveriam ser providos pelo Estado.
Comprando produtos como sabonetes, shampoo e condicionador, papel higiênico, além de alimentos para complementar a alimentação, a família tem que tirar parte considerável da sua renda para contribuir com a subsistência do apenado, explica a pesquisadora.
Além do constrangimento moral que já era enfrentado nas visitas presenciais, agora, com a pandemia, as famílias são atingidas com violências de cunho afetivo emocional, sendo proibidas de abraçar seus entes.
Isadora também comenta que existe também uma violência sobre os papéis familiares, enfrentada principalmente pelas esposas, cujos maridos estão encarcerados. Como no caso de Fernanda e Andressa, cujos filhos não podem ver os pais.
“O próprio sentido e legitimidade da paternidade é negado em contexto de cárcere. São pais que não podem ver seus filhos durante dois anos.”
Para essas pesquisadoras, as violências que as famílias dos apenados sofrem são uma extensão das violências destinadas à população encarcerada. E isso, fere os direitos destas cidadãs. “Isso vai contra a lei, porque a pena devia se restringir ao apenado. Na prática, as violências extrapolam e atingem a família.”
Cenário do Covid-19 nas prisões
Em 26 de julho do ano passado, Santa Catarina registrou a primeira morte por Covid-19 no sistema prisional. Em 11 de outubro de 2021, o Boletim Covid-19 Diário, da Secretaria de Administração Prisional de Santa Catarina, contabiliza 4.990 casos confirmados e 17 óbitos.
No cenário nacional, a situação não melhora. Um levantamento realizado pelo G1, em maio de 2021, informa que 200 detentos morreram vítimas do novo coronavírus. Os dados são do Monitor da Violência, parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Segundo o G1, no país houve 20.361 servidores infectados, ante 57.247 presos contaminados com a doença.
A suspensão de visitas presenciais foi uma das únicas medidas de controle da pandemia dentro do sistema prisional. Outras possibilidades, como a liberação da população carcerária nos casos de pessoas dos principais grupos de risco para Covid-19, acusadas de crimes sem violência ou grave ameaça, foram ignoradas.
O projeto Infovírus mostrou a baixa adesão de São Paulo às recomendações desencarceradoras na pandemia. Um relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que 74% das pessoas que poderiam ter sido liberadas no estado permaneceram no cárcere, contrariando a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lançada em 2020.
A recomendação tinha como objetivo reduzir prisões provisórias durante a pandemia, conceder prisão domiciliar a membros de grupo de risco, e possibilitar a saída antecipada de alguns presos. Apesar de festejada por instituições de defesa dos direitos humanos, a medida foi pouco adotada pelos magistrados.
Segundo o estudo do IDDD, metade das pessoas, que conseguiram a liberdade através da recomendação, já tinham esse direito por outras razões. 61 das decisões alegavam a “falta de comprovação de que a unidade ofereceria maiores riscos à saúde do réu”.
Até 10 de agosto de 2021, o sistema prisional de São Paulo, de acordo com a Secretaria de Administração Prisional (SAP/SP), registrou 79 óbitos oficiais por Covid-19 e 14.841 casos da doença entre a população prisional. É a unidade federativa que mais registra contaminações e mortes pela doença.
Resposta da SAP
Segundo a Secretaria de Administração Prisional, atualmente o sistema prisional catarinense tem 23.795 internos, com déficit de aproximadamente 4 mil vagas. Os dados do boletim Covid-19 da SAP/SC, do dia 11 de outubro de 2021, mostram que destes, 20.790 já tomaram a 2ª dose da vacina.
A secretaria afirma que as unidades prisionais contam com equipes multiprofissionais que dão atendimento de saúde e psicológico para os internos. Durante a pandemia, estas equipes desenvolveram atividades, como grupos terapêuticos e rodas de conversa para auxiliar os apenados neste período de afastamento.
A equipe também afirmou que os apenados têm acesso aos meios de comunicação e, como sabiam da situação, entenderam que era um momento delicado, e que a suspensão da visita garantiria a integridade dos internos, dos servidores e dos familiares de ambos.
Em entrevista ao ND+, em agosto de 2021, Claudia Lopes, da Associação Gente da Gente – que atende mais de 200 famílias com algum ente preso – afirmou que há relatos de casos de depressão severa nos corredores dos presídios.
Sobre a fiscalização, a SAP afirma que o sistema prisional é acompanhado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, sob a coordenação Desembargador Leopoldo Augusto Brüggemann, da Juíza Auxiliar da Presidência Carolina Ranzolin Nerbass e do Juiz-Corregedor Rodrigo Tavares Martins. Além disso, instituições nacionais fazem inspeções nas unidades, como a OAB.
Desde março do ano passado, a Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa (SAP) mantém ativa a Sala de Situação e Central Covid-19, locais que fazem a gestão de todos os dados relativos à pandemia e que norteiam a tomada de decisões. As regras sanitárias são estabelecidas pelo Centro de Operações de Emergências em Saúde (COES).
A Secretaria afirma que neste momento, a Central Covid-19 e a Sala Situação avaliam que é preciso ter cautela na reabertura das unidades, uma vez que o estado é responsável pela custódia legal dos reeducandos. A visita do familiar, assim como os eventos e shows, devem seguir os protocolos sanitários. Manter esses regramentos é fundamental para que não ocorram surtos nas unidades.
Diariamente, a SAP publica no seu site o Boletim Diário da Covid-19 com todas as informações sobre a pandemia, dando transparência a todas as ações e práticas da secretaria. Há também um Boletim Semanal.
Serviço
O Infovírus é um observatório sobre a Covid-19 nas prisões. Atua com informações, verificações e contraposições sobre a pandemia no sistema penitenciário brasileiro. É formado por pesquisadores dos grupos CEDD – Centro de Estudos de Desigualdade e Discriminação (UnB), Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE e UNICAP), Grupo de Pesquisa em Criminologia (UEFS/UNEB), Grupo Poder Controle e Dano Social (UFSC/UFSM) e autônomos.
Confira o Painel Infovírus
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