Rafael Santos,35, é o segundo protagonista de Paternidades Plurais, quarta temporada do podcast Narrando Utopias. Nesta entrevista, o produtor de conteúdo digital e pesquisador de história e cultura africana, natural de Santo André, SP, conta sobre a reconstrução da sua masculinidade enquanto homem preto para que se tornasse o pai afetuoso e comprometido que almejava. Rafael buscou referências na ancestralidade africana e contou com o incentivo e acolhimento da esposa, Mariana Dias, nesse processo.

Para ele, quando se discute paternidade é importante que as mulheres sejam ouvidas, pois foi ouvindo a companheira que ele conseguiu romper com padrões que não lhe permitiam expor suas vulnerabilidades. Na conversa, Rafael faz críticas à paternidade hegemônica ao mesmo tempo em que apresenta outras perspectivas de construção familiar, baseadas no companheirismo, na equidade do casal e em valores comunitários. Confira a entrevista.

Na sua apresentação, você falou sobre a importância de ouvir as mulheres. E sabemos que, na prática, essa é uma realidade distante para muitas. O Brasil tem um grande número de mães solos, mães que são abandonadas, inclusive no puerpério. Como a perspectiva afrocentrada analisa esses cenários e a chamada ‘masculinidade tóxica’?

Eu sempre falo para todo mundo que é muito complicado comparar uma masculinidade preta e uma masculinidade branca por conta do atravessamento histórico do período escravocrata. A partir do momento que nós entendemos a nossa cultura e que entendemos que a nossa cultura não é de uma hegemonia masculina, mas que a maioria das culturas africanas está embasada sobre o matriarcado, entendendo a mulher como figura estrategista, a gente passa a questionar o porquê de nós homens pretos sermos machistas.

Lá atrás, em África, nós exercíamos a nossa família de forma comunitária, onde uma criança é responsabilidade de toda a comunidade. Assim, nós como homens, como pais, nós não éramos responsáveis só pelas nossas crianças, mas por todas as crianças da comunidade. E onde acontece essa ruptura? No período escravocrata. A partir daí outras violências são incutidas nos homens, especificamente homens pretos. Eles estabeleceram como padrão uma masculinidade patriarcal branca e fizeram de tudo para matar a nossa conexão com a nossa ancestralidade.

Então, a gente busca essa masculinidade como alvo e vira tipo uma dissonância psíquica porque o nosso fenótipo é outro. Ficamos sempre dentro desse âmbito de violência e geralmente quem sofre essas violências, são as pessoas que orbitam ao nosso redor. Não estou ‘passando pano’ ou justificando, estou explicando. Com isso, nós somos impedidos de sentir, impedidos de falar, quando nossas fragilidades são expostas são encaradas como fraquezas. Sendo que isso não é algo que abarca a nossa realidade original cultural e quando temos a oportunidade de nos reconectar com a nossa verdadeira cultura, a gente começa a romper, de forma muito crítica, com esses padrões. Quando a gente entende que nós pertencemos a esse lugar, a gente entende a violência que está sendo investida nas nossas famílias, em famílias pretas, e se a gente falar de uma realidade das mães solos a maioria é preta, a maioria é pobre, a maioria é favela.

Eu sou fruto de uma mãe preta, solo. E eu sei todo o esforço que a minha mãe teve que fazer para educar a mim e a minha irmã.

Quais foram as suas referências em relação à paternidade?

Eu não tive referência biológica de pai, mas eu tive outro homem preto que escolheu exercer paternidade sobre mim e minha irmã. O meu tio. Ele sempre foi um homem muito afetuoso. Sempre chorou, sempre me tratou com muito carinho. E sempre foi visto como um homem fraco. E quando eu o vi tomar pancada por ser quem ele era, visto como um homem fraco, eu recusei ser assim por um tempo da minha vida. Com isso, eu passei a buscar o objetivo que todo mundo buscava. Eu sou ex-atleta profissional, sou ex-jogador de futebol, e fui para esse lugar do comum. Vivi todos os estereótipos e o que me resgatou, que me fortaleceu para além do acesso às culturas africanas, foi o relacionamento com a minha atual esposa. Ela me humanizou. Ela me olhou como um ser humano e quando eu expus minhas vulnerabilidades ela humanizou esses sentimentos, os validou e permitiu que eu sentisse. Uma diferença muito grande nos relacionamentos afrocentrados, é que as pessoas entram com uma energia de construção. Ninguém quer nada pronto. Então, eu e a minha esposa nos relacionamos para construir.

Você poderia descrever para nós um diálogo que você teve consigo mesmo, com a tua companheira ou com outros homens, que pode exemplificar essa mudança no seu comportamento? Indo de alguém que não se permitia ser vulnerável para alguém que agora se permite emocionar? 

É uma luta cultural contra algo que te atravessa desde a sua primeiríssima infância, até quando você quiser. Então, quando eu falo sobre as nossas fragilidades serem tratadas como fraqueza, nós temos que entender também como a gente se defende daquilo que nos expõe. Em muitos diálogos a minha esposa falou verdades para mim que eu não aceitava. Eu saí de um contexto de atleta profissional e estava num contexto de quem não tinha nada. E ela se dispôs a lutar comigo, então muitas coisas que eu ouvia no início eu levava para o pessoal porque, querendo ou não, a consciência não tinha chegado. Falar o que eu estava sentindo, falar o que eu estava pensando, sempre foi muito difícil. Eu ficava com aquele sentimento dentro de mim e nada fica dentro da gente, né? Sai de alguma forma. Então, eu era grosseiro, me fechava. Muitas vezes minha esposa colocou minhas costas na parede, me evidenciando coisas que eram reais. Tudo que eu tornava muito macro, ela trazia para um lugar de racionalidade, criava estratégias, estratégias que a atravessaram durante toda a vida, e a daí tentávamos resolver juntos. Um dos ditados da nossa cultura diz que quando a gente vai para uma feira de troca e não levamos nada não estamos trocando, estamos roubando. Então, se a gente não leva a nossa escuta para o relacionamento ou se a gente fala e não tem um retorno de escuta, alguém nesse relacionamento está em desequilíbrio. E é difícil para os homens escutarem certas coisas. Mas a gente precisa entender quem realmente exerce violência sobre nosso povo. Os homens precisam entender qual é a masculinidade que eles estão mirando.  Eles precisam falar e precisam entender que não vão ouvir aquilo que esperam. Vão ouvir aquilo que eles têm que ouvir. É preciso se despir dessa vaidade, dessa masculinidade que não nos representa para construir algo a partir daí. 

Rafael Santos, a esposa Mariana e as três filhas
Rafael Santos, a esposa Mariana (Maree Dias) e as três filhas (Ana, Areta e Amara)

Qual é a masculinidade e a paternidade que você está mirando?

Primeiro eu vou falar de masculinidade. Eu vivo numa masculinidade pautada em valores nossos, como ética, disciplina e espiritualidade. E não estou falando de religião, mas sim sobre entendermos que somos seres espirituais. As masculinidades dos nossos ancestrais são pautadas em ética, honestidade, companheirismo, disposição para construir, inteligência e intelectualidade. Não essa intelectualidade validada por um sistema embranquecido, mas sim a intelectualidade a partir da vivência, da experiência do mais velho que é passada para o mais novo. A masculinidade africana é a masculinidade que eu miro. Já a minha paternidade, eu sempre falo que ela não é só sobre as minhas filhas. A paternidade que eu miro é aquela que se responsabiliza sobre suas ações, seus posicionamentos, sobre a maneira que se cuida de crianças pretas porque a minha paternidade é uma responsabilidade social comunitária. Qualquer criança preta que estiver no meu campo de visão, eu sou pai dessa criança. É essa responsabilidade que eu tomo para mim.  

Eu cresci numa comunidade que tinha resquícios de um padrão cultural africano centrado, então eu tive muitas figuras de cuidado para além das pessoas com quem eu tinha laços sanguíneos, então aprendi muita coisa com muita gente. Portanto, a paternidade que almejo é aquela paternidade que me traz a consciência de que eu sou referência não só para as minhas filhas, mas para toda e qualquer criança preta que atravessar meu caminho.

Você leva esses valores e filosofias africanas que está citando inclusive para a sua conta no instagram, a Sankofamilly. Do que trata o conceito de Sankofa?

Esse conceito é o que eu vivo aqui com a minha família. Significa olhar para trás, buscar aquelas referências de civilidade que são originárias do nosso povo, que fizeram do nosso povo grandes nações, grandes civilizações que são conhecidas e estudadas até hoje. É voltar e pegar aquele padrão cultural, tomar isso como conhecimento e mudar o seu presente, mudar sua vida, sua percepção de mundo. E o futuro a gente muda no presente. Então, Sankofa fala sobre isso. Sobre voltar lá atrás, pegar aquilo que é bom, ressignificar o seu presente com aquela informação e a partir desse presente ressignificado você sabe que o futuro pode ser transformado.

Como a perspectiva africanocentrada está presente na educação das suas filhas? 

A primeira coisa que a gente faz é trazer para um contexto contemporâneo. Na primeiríssima infância, a gente foca em apresentar referências como sons, conversas, histórias para essas crianças para que a subjetividade delas sejam uma subjetividade preta. A partir daí, continuamos esse trabalho na primeira infância, mirando na autoestima. Contando a história real dos ancestrais, mostrando a história de onde a humanidade se originou, qual a nossa contribuição enquanto povo para o mundo. Sem falar de racismo, sem falar do período escravocrata, num primeiro momento, mas mostrando o quão poderoso é elas carregarem o fenótipo que carregam. O quão poderoso é elas carregarem o nariz largo, olhos puxados, lábios mais grossos, pele mais escura. O poder da melanina na inteligência delas, o cabelo. É importante a gente trazer todos esses traços que são tratados pela sociedade na qual estamos inseridos como traços de estranhezas, animalescos, inferiorizados, para que essas crianças olhem no espelho e vejam poder através desses traços. Vejam o poder do nosso povo. Quando a gente fala sobre educação africanocentrada, a gente traz os nossos valores, a percepção de si, a percepção de autodeterminação que é um princípio inegociável para o nosso povo. Nós determinamos quem nós somos. Nós contamos as nossas histórias, nós acessamos a história do nosso povo e a gente não deixa ninguém controlar a narrativa sobre nós e sobre nada do que a gente faz. Autodeterminação. Então, a gente ensina para as nossas crianças não só a serem pessoas pretas, mas a lidarem com o poder do que é ser uma pessoa preta. 

Você falou sobre a importância de falar sobre poder com suas filhas, o quão potente é compor uma família preta, baseada em valores como presença, afeto e cuidado? 

Primeiro, temos que esvaziar esse poder de um padrão que é difundido hoje. Um padrão totalmente baseado no capital e no poder aquisitivo. Então, as pessoas acabam querendo coisas prontas, relacionamentos prontos, interações prontas, pessoas prontas. Pelo nosso povo, o poder em construir uma família preta é entender que mesmo com todo o movimento contrário à nossa existência, nós estamos aqui. Nos reconectando com algo que é nosso. Isso é poderoso. Quando eu falo da construção e da permanência de uma família preta, que tem valores pretos, isso é poder. É ser autônomo no seu pensamento, nas suas ações, entender que essa autonomia também é coletiva. Poder hoje, poder para uma pessoa preta, para uma família preta, é voltar lá para trás e estabelecer essa família em valores que nos representam, em valores que são nossos, em valores que nossos ancestrais não deixaram morrer e que mesmo com todo movimento contrário, esses valores existem e uma família como a nossa está aqui. Isso é o verdadeiro poder. Resistir é o verdadeiro poder.

O que você aprende com as suas filhas? 

Saber que a Ana ia chegar salvou minha vida. Eu larguei o alcoolismo e eu me comprometi a ser diferente do que eu era, a me reconectar comigo mesmo, porque eu precisava ser uma figura presente na vida da minha filha, entendendo a ausência do meu pai biológico. Então, a Ana me tirou desse lugar de alcoolismo, me tirou desse lugar do comum e do que é pré-estipulado e pré-estabelecido para uma pessoa como eu. A Aretha chegou para mostrar que eu precisava me aprofundar. Viver tudo que nós vivemos no parto da Aretha, entender a violência obstétrica a qual nós fomos expostos e que gerou resultados físicos. A Aretha tem uma limitação no braço esquerdo por conta dessa violência obstétrica. Então, eu entendi que tinha que me aprofundar, entendi que ninguém além da nossa família ia representar aquilo que a nossa família tem que representar. Já a Amara veio para falar que não era suficiente. Ela não sofreu nenhuma dessas violências porque a partir da Aretha e da Ana eu e a minha esposa nós nos posicionamos. Nós reivindicamos os nossos direitos na sala de parto, na triagem para o parto. Então, a gente se aprofundou com Areta e a Amara colheu todos os frutos desse aprofundamento. Mas a Amara vem falando que não é o suficiente, que a gente precisa levar isso para outras pessoas. 

Então, eu aprendi com as minhas filhas a ter um pensamento que me salvou e me curou. Exercer paternidade sobre as minhas filhas me curou de uma cultura que foi introjetada em mim e que só tinha como objetivo fazer com que a minha existência no mundo fosse impossível.

Você falou disso em vários momentos dessa entrevista, mas eu queria uma resposta de maneira mais sintética. O que é ser um pai preto para você hoje?

Ser um pai preto é lutar. É reivindicar a sua presença na sua família. Tomar cuidado para voltar para casa. Entender a sociedade como ela funciona e se reconectar com a sua ancestralidade a todo custo, por mais que doa. Ser uma figura paterna para toda e qualquer criança que atravessa o meu caminho, me coloca num lugar onde eu tenho que entender, me comprometer e me responsabilizar da forma cabida com a responsabilidade do que é ser chamado de pai sendo homem preto no Brasil e na diáspora. Ser pai preto hoje. Pai preto presente, ativo e consciente é lutar contra todas as expectativas que foram criadas para um homem como eu por essa sociedade, que não quer que homens como eu ocupem os lugares que eu ocupo enquanto pai. Então, assim, para os meus irmãos, eu tenho que falar que paternidade preta é poder, é cura, é liberdade. E nada disso é fácil. Nada disso é gostosinho. Nada disso é confortável. Mas é potente. É maravilhoso e a metamorfose que causa dentro da gente não deixa de doer, mas só de poder ter o prazer de olhar para minhas filhas, de olhar para minha família, entender que eu estou e saber de tudo que é feito para que eu não esteja, isso é poder. Paternidade preta é isso.

Muito obrigada, Rafael. Foi muito emocionante, só temos a agradecer por toda troca, aprendizado. Quero saber se você tem algo que a gente não perguntou e que você sente que precisa falar.

Tenho. Eu acho que eu tenho que falar para os meus irmãos para que eles não desistam. Vai ser difícil. Você não tem ferramenta. Você não foi educado para ser isso que a sociedade, que não te educou, te cobra para ser. E você precisa de referências que te representam. Busque essas referências. Pessoas que não abarcam o seu contexto, o seu fenótipo, a sua vivência, não podem servir como figura de representação para vocês. Busquem se inspirar em pessoas reais, humanas e palpáveis. Vai ser difícil. Vai ser embaçado. Você vai sentir que você não foi feito para isso, mas é isso que a educação que você recebeu quer que você sinta. E a partir do momento que você permanece e você resiste e você não abre mão e você luta, você vai entender realmente o lugar para o qual você foi formado para estar e você foi formado pelos seus ancestrais para estar. O lugar real que você foi formado para ocupar. Não busque ocupar o lugar de pessoas que não te representam, busque ocupar o seu lugar e ponto.

Esta temporada é uma iniciativa do Inspiratorio.org, com produção do Portal Catarinas em parceria com o projeto Homem Paterno.

Confira a descrição do episódio:

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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