O declive da rua General Auto obriga Dona Maria, 76 anos, a se concentrar no movimento das pernas para não perder o equilíbrio. Acompanhada de outras cinco pessoas, ela percorria os quase dois quilômetros entre a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o Anfiteatro Pôr do Sol na manhã do dia 23, véspera do julgamento do ex-presidente Lula no TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4º região). Calçando sandália de dedos, a moradora do bairro Centenário, em Caxias do Sul, saiu de casa às 5 horas da madrugada para participar dos atos em defesa da democracia que aconteceram durante o dia todo, na capital gaúcha.
O ato público Mulheres pela Democracia que devia ocorrer no auditório da Assembleia Legislativa, com presença de poucas mulheres previamente escolhidas – a maioria, lideranças da esquerda -, teve que ser transferido para a rua devido a falta de energia. O que alguns militantes classificaram como boicote possibilitou que cerca de 10 mil pessoas – entre elas, dona Maria – pudessem ouvir e ver (mesmo que de longe) a ex-presidenta Dilma, uma das figuras mais esperadas.
Depois de duas horas em pé, ouvindo os discursos que vinham do caminhão de som, Dona Maria seguiu para o almoço no Acampamento da Democracia, ao encontro dos mais de 70 mil manifestantes que estavam espalhados pela região central de Porto Alegre. No trajeto, poucas pessoas seguiam sua rotina diária. As ruas pareciam desertas. Somente mais à frente fomos descobrir o motivo: a Brigada Militar havia bloqueado todos os acessos aos pontos de concentração (o TRF4, onde aconteceria o julgamento; a Assembleia Legislativa; a Esquina Democrática e o Anfiteatro Pôr do Sol).
O aparato militar era proporcional ao utilizado em grandes conflitos. Cavalaria a postos, tropa de choque em fileira com escudo e cassetetes nas mãos, helicópteros sobrevoando, viaturas com sirenes ligadas em alta velocidade. Parados como estátuas nas esquinas, homens e mulheres da BM pareciam concentrados em algum ponto fixo que os impedia de perceber a disparidade de tanta força militar contra um povo de chinelo de dedo.
Sogra de um brigadiano, dona Maria disse que não tinha medo e que, no fundo, acreditava que no meio de tantos militares existia muitos “de coração bom” como o seu genro. Enquanto caminhava, nem percebeu que um motoqueiro acelerou fundo e passou a centímetros do seu corpo enquanto atravessava a faixa de segurança, fazendo tremular a bandeira vermelha que carregava. Talvez também não tenha ouvido o grito de um taxista que, ao passar por nós, esbravejou o “vão trabalhar seus vagabundos”, frase frequentemente ouvida por quem participa dos movimentos populares.
Única coisa em que Dona Maria estava ligada era no motivo de estar ali. Quando perguntei o que a fez sair de casa pra vir ao ato e enfrentar toda a tensão nas ruas, pela primeira vez ela parou de olhar os próprios passos, levantou a cabeça, olhou pra mim e deu um sorriso. “Eu tenho 76 anos, já passei muita coisa na minha vida e vi muita coisa acontecer. Não dava pra ficar em casa e fingir que nada tava acontecendo”. Dona Maria acha que, pra si, pouca coisa vai mudar, mas se preocupa com os netos. Era por eles que precisava lutar, contou. Quando relacionei a manifestação com o julgamento de Lula, ela foi clara. “Se fazem isso com ele, imagine com a gente?”. Não precisou perguntar mais nada. Suas respostas curtas diziam muito sobre toda aquela gente que ocupou Porto Alegre.
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Em contraste com a perspectiva alardeada pela grande mídia que reduzia o ato a um movimento de petistas e sindicalistas, Dona Maria estava lá alheia a organizações. Dizia entender que estar na manifestação era muito mais do que defender um candidato ou partido político. Era por igualdade e tratamento digno.
Chegando ao acampamento, nos despedimos e seguimos cada uma para o almoço, esperando recobrar as forças para a longa agenda de mobilizações da tarde. Fui parar na barraca da organização que servia comida coletivo a um valor que custeava somente os gastos. Me ajeitei no gramado ainda molhado pela forte chuva da madrugada e, enquanto comia arroz e feijão com galinha, fiquei a pensar nas milhares de pessoas que estavam lá. Quanta história de vida, quantas Donas Marias havia por ali…
Bem diferente dos “vagabundos” e “alienados”, assim ditos pelos comentaristas de redes sociais e reforçados por imagens editadas da mídia hegemônica, o povo acampado que não parava de chegar de diferentes regiões do país tinha pressa em montar suas barracas e se aconchegar debaixo de lonas pretas. Os que estavam acampados desde domingo, ajudavam quem chegava. Outros conversavam aqui e acolá. O papo era um só: a importância de estar ali. O caminhão de som começou a puxar a cantoria e aos poucos o povo foi saindo de dentro das barracas e desenrolando suas bandeiras. Eu observava aquele povo e tentava entender de onde vinha tanta força para se submeter ao improviso de um acampamento, ao cansaço de uma longa viagem, ao caminhar de um lado pra outro.
Organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, os manifestantes começaram a se formar fileiras. ”Vai começar a passeata”, avisa o violeiro que está no caminhão de som. Saio apressada, quero registrar o início do ato. Tarde demais, a primeira fileira já estava na avenida principal. O povo tem pressa, precisa caminhar mais de dois quilômetros até a Esquina Democrática, local onde o ex-presidente Lula fará sua fala. No chão, homens, mulheres, jovens, crianças e idosos caminham a passos largos. No alto do caminhão de som só seguem os animadores. As lideranças nacionais e estaduais caminham junto com os manifestantes. Os gritos e cantorias ecoavam nas avenidas de Porto Alegre. Ninguém ousou xingar a massa de gente que passava. Éramos muitos. Das sacadas, pessoas agitavam panos vermelhos. Até pano de prato virou bandeira.
No meio de toda aquela euforia, encontrei novamente a Dona Maria, marchando na fila. Não aparentava cansaço e caminhava de cabeça erguida, sempre agarrada na sua bandeira do MTD. No meio da multidão, foi uma proeza tê-la reencontrado. Fui pra perto dela e voltei a perguntar algumas coisas que havia esquecido, ela respondeu rapidamente e demonstrou desconforto. Queria marchar e eu a estava atrapalhando. Aquele era o momento dela mostrar sua força, ser protagonista, lutar. Peguei as informações que precisava com o pessoal que a acompanhava e a segui em silêncio até terminar a passeata.
Uma multidão já havia chegado à Esquina Democrática. Perdi Dona Maria de vista, muita gente se acotovelava pra buscar o melhor ângulo e ver o Lula. Várias lideranças em cima do caminhão queriam tirar foto com o ex-presidente, dar seu discurso de apoio. Levou horas até Lula falar. Com a voz rouca e seu poder de envolvimento com as massas, ele arrancou aplausos e gritos de apoio. Reafirmou inocência e a perseguição política que vem sofrendo. Citou outros pré-candidatos à presidência que ali estavam, junto ao palco, defendendo também o direito do ex-presidente à disputa presidencial.
Finalizado o ato, seguimos em marcha novamente até o Acampamento da Democracia. Dona Maria e eu voltamos para nossas casas. Ela por que tinha uma consulta no médico do posto de saúde no dia seguinte, senão ficava, garantiu. As centenas de pessoas dividiram barracas e comida. Acordariam cedo na quarta-feira para a vigília em frente ao TRF4. Já em casa, em meados da tarde, fiquei sabendo do resultado do julgamento. Com a pena aumentada de 9 para 12 anos, por unanimidade de 3 votos, o ex-presidente Lula não teve seus recursos acatados pelo Tribunal de Porto Alegre. Fica impedido de ser candidato à presidente do Brasil. Para alguns, isso pode significar justiça. Para outros, apenas mudanças no tabuleiro da disputa eleitoral. Sem contato com ela, tento imaginar: o que este resultado significa para a Dona Maria?