Dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública comprovam a subnotificação da violência contra mulheres no país; Facilidade no acesso às armas acende alerta para aumento do feminicídio.
Pela primeira vez o Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz dados que comparam homicídios de mulheres e feminicídios no Brasil. O documento publicado nesta quinta-feira (15) mostra que 14,7% dos homicídios femininos registrados em 2020 tiveram como autor o parceiro ou ex-parceiro da vítima, ou seja, deveriam ter sido classificados como feminicídio, mas não o foram. Levando isso em conta, o total de feminicídios no ano passado passaria então de 1350 para pelo menos 1727, ou seja, 28% maior do que os registros oficiais.
“A gente tá falando de 377 casos que constam na nossa base de dados e que são feminicídios porque foram cometidos por um parceiro íntimo e não foram classificados de forma adequada, ou seja, feminicídios são maiores do que a gente consegue estimar hoje e isso decorre de um problema da investigação, de um erro no momento de classificação desses crimes por parte das polícias civis e é algo que a gente tem que monitorar”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Este dado inédito comprova a existência de uma grande subnotificação dos crimes contra mulheres no Brasil. No ano passado, a série “Um Vírus e Duas Guerras”, publicada pelo Portal Catarinas, abordou as falhas no sistema de registros policiais e a dificuldade em denunciar crimes de violência na pandemia.
O anuário compila ainda dois dados que revelam uma realidade mais violenta vivenciada pela mulher brasileira vítima de violência com a chegada da pandemia. Enquanto o número de registros na polícia civil diminuiu, a quantidade de medidas protetivas de urgência aumentou. Foram concedidas cerca de 294 mil medidas pelos Tribunais de Justiça no ano passado, um aumento de 3,6% em relação a 2019.
Já as ligações de violência doméstica para o 190 da polícia militar somam mais de 694 mil, o que significa uma chamada por minuto em 2020. Com uma taxa de crescimento de 16,3% em comparação ao ano anterior.
“Olhando só para os registros nas delegacias a gente pode se equivocar achando que a violência diminuiu, mas quando olhamos para o todo incluindo chamadas pro 190 e medidas protetivas de urgência, a gente vê que houve um aumento na violência. É importante destacar que a violência de gênero, em geral, são tipos de violência com uma grande subnotificação mesmo antes da pandemia”, alerta Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A violência doméstica é permeada de culpa e vergonha por parte da mulher. Além da vítima ter dificuldade em reconhecer situações de violência, há uma grande tolerância social para esse tipo de crime.
O caso mais recente é o do DJ Ivis contra a mulher, Pamella Holanda. Vídeos com cenas absurdas de agressão contra a esposa chocaram o país e causaram uma enxurrada de pedidos de prisão ao DJ. Ele foi preso nesta quarta-feira (14) no Ceará. Em algumas das imagens, a violência aconteceu próximo a pessoas que não impediram os chutes e socos desferidos contra a vítima.
“O vídeo é muito emblemático porque mostra a violência acontecendo próximo de pessoas que não fazem nada e que reproduz aquela ideia de briga de marido e mulher não se mete a colher. Por ser uma violência que acontece em ambiente privado, dentro de casa, é um grande desafio do ponto de vista de como prevenir, como proteger essas mulheres e como punir esse agressor”, pontua Martins.
As consequências da subnotificação
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A legislação brasileira considera feminicídio o crime praticado contra a mulher quando envolve violência doméstica e familiar e quando envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulheres. Entretanto, muitos estados brasileiros e suas respectivas polícias persistem em não tipificar de forma correta a violência contra as mulheres, o que dificulta a análise da realidade da mulher brasileira.
“A legislação do feminicídio é de 2015, relativamente recente, e sempre tem um questionamento se temos um aumento da violência letal, um aumento dos feminicídios ou uma melhoria no registro, então fazemos essas comparações para tentar entender quais estados tem conseguido classificar de modo adequado esses crimes e aqueles que ainda patinam”, explica Bueno.
Um exemplo de como a classificação incorreta do crime atrapalha diagnósticos reais pode ser visto no estado do Ceará. Segundo o Anuário, apenas 8,2% de todos os assassinatos de mulheres foram classificados como feminicídios na região, percentual muito inferior à média nacional de 34,5%. Enquanto que a taxa de mortalidade de homicídios femininos foi de vinte a cada 100 mil mulheres, seis vezes maior que a média nacional. Isso indica que é provável que muitos casos de feminicídios tenham sido classificados erroneamente apenas como homicídios.
Mato Grosso aparece com a maior taxa de feminicídio do país, 3,6 mortes a cada cem mil mulheres. Índice três vezes maior que a média nacional. “Sabemos que Mato Grosso é um estado que tem se dedicado às investigações baseadas em gênero e feito os registros de forma adequada ao passo que o Ceará não tem feito isso da melhor forma. E aí ficam com uma taxa muito baixa, que não condiz com a realidade. A taxa de feminicídio do Ceará é muito maior do que o registro oficial, tanto é que tem uma taxa de mortalidade de mulheres tão elevada”, conclui Bueno.
Santa Catarina parece seguir os mesmos passos de Mato Grosso. O estado tem uma alta taxa de feminicídios, 1,6 mortes a cada 100 mil mulheres, índice maior do que a média nacional, de 1,2. No ano passado, 59 catarinenses foram vítimas de feminicídio. Quando analisados todos os assassinatos femininos em SC, 55,3% foram registrados como feminicídio. Segundo analisam no anuário, “olhar para o todo permite compreender quais estados de fato tem as maiores taxas de feminicídio, e quais potencialmente possuem elevadas taxas, mas não classificam estes crimes de forma adequada”.
Perfil da violência contra as mulheres
O estudo traz ainda que em 81,5% dos casos de feminicídio o autor do crime era companheiro ou ex-companheiro da mulher. Considerando demais vínculos parentescos, o anuário indica que 9 em cada 10 mulheres vítimas de feminicídio morreram pela ação do companheiro ou de algum parente.
Pelo recorte racial, o documento aponta que entre as vítimas, 61,8% eram negras, 36,5% brancas, 0,9% amarelas e 0,9% indígenas. Tornar-se uma vítima fatal de violência atinge todas as idades de mulheres. Há uma distribuição igualitária entre 18 a 24 anos (16,7%), de 25 a 29 anos (16,5%), 30 a 34 anos (15,2%) e 35 a 39 anos (15,0%).
O anuário destaca também uma preocupação em relação à facilidade no acesso às armas que vem acontecendo no governo Bolsonaro. Dados apresentados na seção sobre armas de fogo, indicam crescimento de 100,6% no total de registros de posses de arma no Sistema Nacional de Armas desde 2017 – passando de 637.972 para 1.279.491 em 2020.
Apesar de mais da metade dos feminicídios (55%) serem cometidos com emprego de armas brancas, como facas, canivetes, o anuário chama atenção para um “sério risco da antecipação de desfechos ainda mais violentos como os feminicídios para as mulheres expostas à violência doméstica, aumentando muito o risco para as vítimas e seus familiares”.