Trabalhadoras no serviço público municipal de Florianópolis contam suas trajetórias dedicadas à saúde e à educação da população que vive na capital catarinense. Elas representam milhares de servidoras e servidores municipais que, cotidianamente, asseguram o atendimento em escolas, creches, centros de saúde e demais locais de trabalho. Saiba mais sobre as pessoas que estão na luta pela saúde e educação públicas e protagonizaram uma greve de 30 dias, em Florianópolis, contra a privatização que a prefeitura quer implantar através das Organizações Sociais. Gente de verdade!

A educadora infantil Elizabete

Foto: Bianca Taranti/Estopim

“Escolhemos, como educadoras, ficar do lado que não é o de quem tem ódio e só pensa no lucro. Estamos do lado daqueles que educamos e acolhemos: nossas crianças, seus pais, o povo de Floripa, minha terra”

Elizabete Eleotero tem 50 anos. Nasceu em Florianópolis, se criou aqui, mora aqui desde sempre e, também aqui, encontrou sua caminhada profissional: o trabalho com os pequenos e pequenas, a Educação Infantil “Hoje já estou dando aula para filhos de alunos de outras épocas. São gerações que passam pela gente na escola, né?”, ela conta, abrindo um sorrisão.

Elizabete é uma mulher muito forte. Sabe o lado que quer estar quando se fala em defender a educação pública. “Te digo que esta greve é diferente de todas as que já tivemos: é uma escolha que não é só por nós que somos trabalhadoras do serviço público, é por nossas aluninhas e aluninhos, pelos seus pais, aqueles que eu disse que já estiveram na minha sala de aula também. É para garantir que as gerações continuem tendo um lugar para estudar”, diz a professora.

A mulher forte enche os olhos de água quando fala da dor que sente ao ser ofendida como funcionária pública: “A gente ouve muita coisa. Até de vagabunda chamam a gente. Como podem agredir assim, sem nem conhecer a gente, tudo que a gente faz?”, respira fundo e fica uns segundos em silêncio. Retoma a força.

É o sentimento de uma professora que há mais de 20 anos atua na educação infantil: “Não escolhemos entrar em greve por que querermos. Eu gosto é de estar em sala de aula! Mas o projeto das Organizações Sociais pode acabar com a educação pública em Florianópolis. Tivemos que fazer uma escolha: fazemos greve, atos, conversamos com as pessoas para informar. Escolhemos, como educadoras, ficar do lado que não é de quem tem ódio e só pensa no lucro. Estamos do lado daqueles que educamos e acolhemos: nossas crianças, seus pais, o povo de Floripa, minha terra”.

Pedagoga com Especialização em Educação e Inclusão, ela conta que muitas e muitas vezes tirou dinheiro do bolso para melhorar o material didático que usa em sala: “Já vivemos uma situação complicada na educação infantil, mesmo assim somos referência. Mas com o caminho da privatização, só tende a piorar e nunca melhorar. A privatização vai ser só para o lucro de poucos”, reflete. Mas, apesar de todo o enfrentamento, Elizabete abre mais um sorrisão para afirmar que desta luta ela não foge: “educação é a minha história de vida!”.

A saúde feita por Daniela

Foto: Sílvia Medeiros/Portal Catarinas

“No trabalho com saúde da família a gente exerce a enfermagem e pratica a cidadania ao mesmo tempo, de várias formas”

Daniela Salomé de Andrade, 40 anos de idade, 18 de enfermagem. Mãe de um menino de cinco e uma menina de três anos. Hoje atua como enfermeira na área da saúde da família, na rede pública municipal de Florianópolis. “Estar na estratégia saúde da família para mim foi um reencontro com a enfermagem. Trabalhei algum tempo em outras áreas, mas na saúde da família a gente amplia, estamos inseridos no meio da comunidade, vamos nas casas das pessoas, tem um campo imenso de trabalho que traz o reconhecimento da população e também dos colegas”, conta Daniela.

Ela conta que já viveu experiências de acompanhar a vida de muitas pessoas por muito tempo: “Mulheres, crianças, idosos. No trabalho com saúde da família a gente exerce a enfermagem e pratica a cidadania ao mesmo tempo, de várias formas. Trabalhamos na prevenção, apoiamos em várias áreas: cuidamos das gestantes, das mulheres, fortalecemos e lembramos a força que elas têm, atuamos orientando em casos de violência. Muitas vezes, a indicação de um curso, um atendimento jurídico que a pessoa precisa e a gente orienta. É bem amplo, é um exercício de autonomia para além da doença”.

A enfermeira está na luta contra as Organizações Sociais justamente por saber que, dentro do modelo privatizado, o cuidado que a estratégia da saúde da família leva às comunidades estará em risco. “Tenho o entendimento de que é uma cartilha nacional que vem sendo implantada em todo o país: privatizar, reduzir os gastos na saúde, lucrar”, ela aponta.

Daniela, que já conversou e tem contato com colegas da saúde de outras cidades e estados que já viveram a realidade da privatização, sabe o que vem se a lei aprovada arbitrariamente em Florianópolis não for revogada: “O que a gente tem de conhecimento é que junto com a privatização vem desvio de dinheiro público, contratação de pessoal menos qualificado e, claro, quem fica com a maior parte do recurso é a Organização Social que gerencia o ‘negócio’ que deve ser público, não a cidade”, aponta.

A enfermeira, que na graduação achava que a saúde pública não seria seu caminho e hoje é apaixonada por este trabalho, “está na luta pelo serviço público e para que continue, sempre, sendo público. Florianópolis tem um serviço público de saúde de referência, tem que continuar”.

Janete: uma história de vida na educação pública

Foto: Bianca Taranti/Estopim

“Sempre fui da educação, não tem jeito. A minha mãe Ignês sempre me disse: ‘Isso aí está no teu sangue!’”

No meio de um grupo de professoras, a Janete é a escolhida para falar: “A Janete tem muita história”, dizem as demais. Janete brilha o olho, ajeita o cabelo: “Se vocês dizem, então eu falo”. E a Janete começa a contar a história de seus 30 e tantos anos de escola. “Vocês acreditam que fiz meu primeiro concurso público para a educação na Prefeitura de Florianópolis quando coloquei meu primeiro filho na creche?”. E uma das primeiras falas já vem colocando reflexão: “Ter creches públicas e de qualidade não é só para as mães poderem trabalhar, não! As crianças têm direito à escola! As crianças são sujeitos de direito”, diz a pedagoga com Especialização em Educação Infantil e Séries Iniciais. Está dito, Janete: crianças tem direitos!

Na verdade, na verdade, a Janete, se pensasse só em si mesma, nem precisaria estar no movimento de resistência às privatizações que o prefeito quer fazer através das Organizações Sociais. A Janete já está por poucos dias para a aposentadoria. “Mas pensa que eu vou ficar em casa depois de 30 anos de luta pela educação que temos em Florianópolis, depois de muito spray de pimenta na cara e de até dormir na Câmara para garantir direitos, como a formação continuada para nossos professores? Nunca poderia ficar em casa! Eu tenho compromisso!”, fala alto, certeira.

Janete Terezinha Recalcatti, 59 anos, mais de 30 em sala de aula, rebate firme as falas do prefeito e os comentários da imprensa sobre as Organizações Sociais: “Eles pensam que da forma como colocam na mídia vão enganar a população. Fazem cada propaganda caríssima para enganar o povo. Mas as famílias querem creche, saúde, os direitos”, diz Janete.

Ela sabe que passar a administração da saúde e da educação para uma organização privada não vai trazer nenhum benefício para o povo: “Olha o Hospital Florianópolis como está! É isso que querem fazer aqui. Vão encher as salas de aula de crianças, dar menos condições, adoecer os professores. É só o lucro que vale para eles”. Convicta da importância da luta, Janete lembra que retirar a responsabilidade da Prefeitura sobre a saúde e a educação é, de uma forma disfarçada, fazer uma reforma trabalhista no serviço público: “Eu já estou me aposentando, mas e meus colegas que ficam?”

Janete conta que encontrou muitos ex-alunos que vieram trazer solidariedade na luta: “Pois nós formamos gente que pensa em todo mundo, não só em si”. E daí vem outra história. Anos atrás, ela não lembra bem, chegou carne estragada na escola. Elas denunciaram, como educadoras, aos órgãos de fiscalização. Mas não só isso! Fizeram uma roda de conversa com as crianças e falaram sobre direito à alimentação saudável e sobre ter consciência de que aquilo que se paga em impostos deve ser revertido para a população. E com qualidade! “Daí veio uma televisão fazer entrevista e um pequeno, de três anos, falou para o repórter: ‘Eles têm que mandar carne boa, pois é nosso direito!’”, ela conta, orgulhosa.

“Sempre fui da educação, não tem jeito. A minha mãe Ignês sempre me disse: ‘Isso aí está no teu sangue!’”, ela diz, mostrando a veia do braço. E salienta: “Não importa o governo de plantão, a luta será permanente pela educação pública e de qualidade”.

A farmacêutica Vanessa que defende o SUS

Foto: Bianca Taranti/Estopim

“Estou na luta contra as OS, a favor do serviço público de qualidade, pelo Sistema Único de Saúde, o nosso SUS”

Talvez muita gente nem saiba, mas farmacêuticas e farmacêuticos também estão na saúde pública. E são muito importantes. Quando vamos a um centro de saúde e retiramos medicamentos que foram receitados por médicas e médicos, são os profissionais formados em farmácia que estão cuidando para que tenhamos acesso ao remédio certo, na dose certa, com aqueles miligramas corretos na embalagem. Enfim: para que não tomemos nada que, ao contrário de nos ajudar a melhorar, seja prejudicial à nossa saúde. Não estão só nesta função, mas é uma delas. E, sim, importam muito para nossa saúde e controle eficaz de cada medicação.

E inúmeros profissionais da farmácia estão na luta para que a população de Florianópolis não seja prejudicada pelas altas doses de privatização que a Prefeitura quer aplicar no serviço público. Uma delas é Vanessa.“Estou na luta contra as OS, a favor do serviço público de qualidade, pelo Sistema Único de Saúde, o nosso SUS”, afirma a farmacêutica Vanessa de Bona Sartor, 38 anos, mãe de um pequeno de três anos e meio. Vanessa trabalha na Farmácia Escola da Prefeitura em convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. “Para mim é muito importante que as pessoas se sintam acolhidas e com um atendimento decente”, conta.

Vanessa lembra que tem sido uma constante a preocupação com a manutenção de estoque de medicamentos nos centros de saúde e do funcionamento das farmácias de referência para medicamentos sujeitos ao controle especial pela Portaria MS n 344/98, o que tende a se agravar principalmente depois da aprovação, pelo governo de Michel Temer, da PEC do Teto dos Gastos, hoje Emenda 95, que reduz drasticamente o investimento em saúde pública pelo governo federal. “Estamos há tempos trabalhando com medicamentos em falta e, além disso, o número insuficiente de farmacêuticos para atender as necessidades dos serviços de saúde na cidade tem gerado prejuízos aos usuários das farmácias do SUS. Se vierem mesmo as Organizações Sociais e o processo de privatização, provável que teremos ainda mais problemas na área farmacêutica”, diz a farmacêutica.

Ela usa uma boa conversa para alertar as pessoas que atende sobre o perigo da privatização. “Eu digo: se tens uma galinha e vendes os ovos diretamente, sem intermediários, o valor fica para você. Se entregas para outra pessoa vender, além de parte do valor dos ovos ficar para o intermediário, o comprador pagará mais caro pela mesma quantidade de ovos. Assim é com as OS: a prefeitura passa o dinheiro dos nossos impostos para outros gerenciarem, as Organizações Sociais. Então, boa parte do nosso dinheiro dos impostos não retornará para a nossa saúde e educação, mas ficará com o terceiro elemento no jogo, a OS. Não me parece um bom negócio para quem paga impostos, não?”. As repórteres que ouviam atentas a fala dela, responderam bem alto: “Não mesmo, Vanessa! Estamos na luta”.

Camila, a médica que quer diminuir injustiças

Foto: Bianca Taranti/Estopim

“Trabalho na área da medicina que tenta diminuir um pouco as injustiças sociais, as iniquidades”

Camila Boff, médica, 39 anos, mãe de uma mocinha de 11 meses, a pequena Paloma. Camila trabalha atualmente na vigilância epidemiológica do município de Florianópolis. Já trabalhou nas unidades de saúde do Carianos, Córrego Grande e Pantanal. Desde o início da faculdade desejou ser médica de família e comunidade, daquelas que trabalham diretamente com a população que mais precisa de atendimento. Pois bem, ela está no lugar certo.

Esta médica dedicada ao trabalho teve um percurso que trouxe dificuldades, mas superou e continua atuando. Foi depois de um período de adoecimento prolongado que passou para a Vigilância Epidemiológica. “Antes de vir trabalhar em Florianópolis, trabalhava na zona rural de uma cidade do interior da Paraíba. Era um cenário difícil e íamos ao trabalho numa kombi, numa estrada muito precária. Tive algumas lesões graves na coluna, que evoluíram com dor crônica e muitas limitações diárias. Em abril de 2016, fiz uma cirurgia. Retornei ao trabalho readaptada na vigilância epidemiológica”, conta.

E Camila se emociona falando sobre o lugar que ocupa no serviço público: “Trabalho na área da medicina que tenta diminuir um pouco as injustiças sociais, as iniquidades. Em um país com tamanha desigualdade social, a gente sabe que quem é pobre morre primeiro.  Se não existir a saúde pública, como agir para diminuir um pouco estas injustiças? Não podemos elevar a renda das pessoas, mas podemos fornecer ferramentas que permitem diminuir de alguma forma as diferenças, as iniquidades”, diz a médica.

Vigilância epidemiológia? Sim, vigilância epidemiólogica! Um grupo de pessoas que usa conhecimento da área médica e outras áreas para detectar e prevenir doenças individuais ou coletivas, que recomenda diretrizes para medidas de prevenção e controle de doenças e fatores que colocam em risco a saúde da população. “A vigilância epidemiológica monitora uma série de doenças selecionadas pela sua magnitude, potencial de disseminação, vulnerabilidade  ou compromissos internacionais com programas de erradicação, assim como o surgimento de  novas doenças ou a reemergência de outras. Monitora também os nascimentos e óbitos do município. Enfim, é o setor que avalia as condições de saúde, adoecimento e mortalidade da população de Florianópolis. Os serviços de vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental são sempre 100% públicos”, explica.

Já pensou não termos vigilância epidemiológica? Ou dependermos de uma instituição privada para garantir que haja prevenção de doenças em nossa cidade? Estar na luta contra as Organizações Sociais e para manter o serviço público de saúde com qualidade, atenta às questões tanto preventivas quanto curativas para o bem da população é o sentido do trabalho de Camila e muitos profissionais. E ela faz um alerta:” É a população carente quem mais depende da saúde pública, mas a saúde pública é para todos, é de cobertura universal no nosso país. Alguns serviços de alta complexidade só são ofertados pelo SUS, assim como as ações de vigilância sanitária e ambiental. As pessoas precisam ter consciência do que está em jogo”.

E reforça: “Eu e outros profissionais dedicamos nosso conhecimento para que todas e todos tenham acesso à saúde, a prevenir e curar doenças, a não sofrer de enfermidades e epidemias que já não deveriam existir no nosso contexto atual. É muito importante que a população que nos apoie na luta”, enfatiza.

A greve de 30 dias

Foto: Gabriel Luis Rosa / Sintrasem

De 11 de abril a 11 de maio os trabalhadores no serviço público municipal de Florianópolis paralisaram seus atendimentos, numa greve que durou 30 dias. Foi um mês intenso de grandes passeatas pelas ruas do centro, que trouxe para o debate o Projeto de Lei 10.372/2018 que institui o Programa Creche e Saúde Já, com liberação de Organizações Sociais na administração de serviços públicos da cidade.

O projeto, protocolado dia 6 de abril foi aprovado 15 dias depois numa sessão tumultuada que aconteceu no sábado de feriado de Tiradentes (21/4) e contou com escolta policial e repressão com gás de pimenta aos manifestantes. Apesar de aprovado, os trabalhadores seguiram em greve e pediram a revogação do projeto e o atendimento das cláusulas da data-base da categoria.

O prefeito Gean Loureiro, que em menos de 500 dias de mandato já passou por 68 dias de greve, fechou as negociações e recorreu à justiça para penalizar os trabalhadores e multar o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço público Municipal de Florianópolis – Sintrasem, que representa a categoria. Depois de muito debate e negociações, na última sexta-feira (11/5) a greve chegou ao fim. Elizabete, Daniela, Janete, Vanessa e Camila retornaram aos seus trabalhos e atendimento à população nesta segunda, 14/5.

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