AVISO DE GATILHO: A matéria abaixo possui relatos explícitos de violência misógina. O Portal Catarinas optou por mostrá-los, para exemplificar como a violência obstétrica pode ocorrer.

Neste mês de dezembro completam quatro meses que Raquel Afonso, de 38 anos, internou no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC) para dar à luz a pequena Melissa. A alegria do nascimento, no entanto, foi substituída por dor e luto. De acordo com Raquel, ela foi mais uma vítima de violências obstétricas que acarretaram a morte da bebê Melissa e na perda de seu útero.  

“Quando acordei da cirurgia, a médica veio e me falou que a bebê não resistiu, que eu havia perdido muito sangue e precisaram retirar meu útero. Parece que não passa, parece que tudo parou. Eu não entendo até hoje porque eles me trataram daquele jeito”, lamenta Raquel em entrevista ao Portal Catarinas.

Melissa foi a terceira gestação de Raquel que vende chocolates caseiros para subsistência. “Eu tive o mais velho muito nova, aprendi a fazer chocolate e não parei mais”, relata. O marido está desempregado. Seu filho mais velho tem 21 anos, o mais novo 10. O luto da perda ainda é sentido pela família. “É difícil para todos. Sofro sempre, mas estou um pouco melhor. Meu marido, que antes estava focado em cuidar de mim, começou a ficar ruim. Ele chora, fica lembrando dela. O menor sabe tudo que está acontecendo, mas é muito difícil para ele. Não ficamos comentando. Aparece algo na televisão sobre bebês, a gente não vê”, narra.  

Raquel Afonso. Foto: Arquivo Pessoal

A gravidez de Melissa foi uma surpresa e um processo de aceitação. “Não esperava, a gente se preveniu, mas a camisinha estourou”, lembra Raquel. Os amigos colaboraram com o enxoval. “Ganhei muita coisa, minhas amigas estavam todas felizes. Também tenho muita roupinha de quando era bebê guardada, roupa de cama bordada pelas minhas avós. Todo mundo me ajudou. Para meu filho pequeno também foi um processo saber da irmãzinha. Ele é muito apegado a mim. Estimulamos o envolvimento e ele foi criando expectativas. Sugeriu nomes. Pensou em Elisa, por conta de uma novela que estava passando”. De acordo com Raquel, seus outros filhos foram mencionados pela equipe médica para minimizar a dor da morte de Melissa. “Meu marido ouviu dos médicos o comentário: menos mal o sofrimento não vai ser tanto”, recorda indignada.

A saga que conduziu ao desfecho trágico começou às 11h de uma quarta-feira, em 26 de agosto deste ano. Com 41 semanas, período considerado pós-datismo, Raquel conta que foi ao HU/UFSC para atendimento e para conhecer a estrutura da maternidade. “Mas estava meio bagunçado e não me mostraram, nem conversaram sobre o funcionamento ”. E continua, “fui até a maternidade, pois acreditava que teria suporte e segurança naquele momento: iriam fazer o ultrassom, escutar o coração da bebê, verificar se já tinha dilatação. No dia, estava apenas com os desconfortos do peso da barriga”.

Após três horas de espera, Raquel entrou para o atendimento, porém foi proibida de ser acompanhada. O marido só pôde entrar por volta das 21h, ou seja, aproximadamente sete horas após a entrada de Raquel. Vale destacar que a Lei 11.108/2005  garante um acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Em entrevista ao Portal Catarinas, a advogada feminista Luaralica Souto Maior, especialista em violência obstétrica, lembra que a Nota Técnica nº 9 do Ministério da Saúde garante o direito das mulheres ao acompanhamento durante o parto, mesmo neste período de pandemia. 

“Pedi pra ir embora para outra maternidade. O médico disse que tinha que ficar. Eu não tive escolha, fiquei com medo. Estava dentro de um hospital, acatei o que ele mandou”, Raquel Afonso, vítima de violência obstétrica.  

Durante os exames, o médico averiguou que ela estava com três centímetros de dilatação e não permitiu que ela saísse mais, mesmo com o pedido de Raquel para não ser internada no HU/UFSC, pois estava sendo assistida por profissionais de outra maternidade de Florianópolis. Sua ida ao HU/UFSC foi uma exceção. A internação contra vontade da mulher foi a primeira de uma série de silenciamentos. 

“Implorei por ajuda, mas ninguém veio” 

Após internação, Raquel conta que um dos médicos decidiu induzir o parto. Inicialmente por sonda, mas como não houve fixação foi decidido medicamento direto na veia. Raquel contestou, afirmou que sentia contrações e que pariu seu segundo filho de forma natural e rápida. “Perguntei várias vezes para o médico se poderia ficar sem o soro, mas ele insistiu em dizer que não. Eu não queria, tentei de todo jeito dizer que não queria. Relatei que tive uma cesárea e depois um parto normal sem procedimentos”, narra.

A falta de autonomia e protagonismo das mulheres no parto é um problema histórico, pesquisadoras da área de gênero explicam que a constituição do saber obstétrico moderno, originário das primeiras faculdades de Medicina, foi fundamental para a apropriação dos corpos e dos processos sexuais e reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde. 

No modelo obstétrico atual, a lógica de dominação hierárquica patriarcal se reproduz: o médico como detentor do saber “faz o parto” e, majoritariamente, assume o protagonismo. É o que destaca Halana Faria, médica ginecologista que atua no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em entrevista ao Portal Catarinas.

“Todo procedimento médico realizado no paciente deveria primeiro exigir o consentimento do paciente, mas infelizmente em Obstetrícia existe uma confusão entre autonomia do paciente e médica. Uma confusão que é muito ruim para as mulheres”, Halana Faria, médica.

Raquel fala que foi levada para o leito às 16h30. Nesse intervalo, não lhe foi ofertada quaisquer formas naturais para alívio da dor ou estimulação da dilatação. “Não tentaram banhos, massagem, nada. Achei estranho. Fiquei mais de uma hora sozinha sentada. Do meu lado estava uma haitiana. Ela também não queria ficar sozinha, não falava português direito e não deixaram o marido dela que era o tradutor ficar junto. Às 18h, vieram colocar o soro em mim”, lembra.

O Portal Catarinas teve acesso ao prontuário de Raquel. Nele, consta que ela começou a receber ocitocina às 17h55, quando estava com cinco centímetros de dilatação. Na hora da aplicação, Raquel pediu, em vão, mais uma vez que o soro não fosse colocado. De acordo com Faria, a avaliação do uso de ocitocina é feita muito indevidamente no Brasil, muitas pacientes recebem justamente porque são internadas precocemente. 

“Se interna muito precocemente. A paciente está com três ou quatro centímetros de dilatação, mas não tem dinâmica uterina efetiva, não tem contrações efetivas e acaba sendo internada. Na internação há uma tendência de diminuição dessas contrações, ou seja, ela é internada fora do trabalho de parto mesmo ou no que a gente chamaria de pródromos. Então, acaba recebendo ocitocina para condução do trabalho de parto – isso não é indução”, explica a médica.

O estudo Nascer no Brasil (2018), sobre as práticas de atenção ao parto no Sul do país, aponta que mais da metade das mulheres (52,2%) recebeu ocitocina de forma rotineira. A pesquisa explica que o uso liberal da ocitocina tem consequências como: exaustão materna, hiperestimulação do útero, ruptura uterina ou da placenta e sofrimento fetal. Além disso, a infusão direto na veia limita a liberdade de movimentação da mulher, podendo prolongar a duração do trabalho de parto.

“Esse é um dos grandes problemas nas nossas maternidades. Algo muito estrutural, devido à presença e a assistência feita por profissionais que estão capacitados para intervenção e não acompanhamento fisiológico do trabalho de parto. Essa é uma grande questão”, Halana Faria, médica.  

De acordo com Raquel, a dose de ocitocina foi aumentada de 30 em 30 minutos. Em diversos momentos ela afirma ter sido deixada só. “Estavam trocando o plantão numa salinha do lado, já era quase 20h, veio uma médica e perguntou que horas tinham feito o exame de toque, eu disse que ninguém tinha feito. Ela afirmou que já deviam ter feito”, conta.

Conforme Faria, paciente em uso de ocitocina deve ser monitorada e avaliada a cada 30 minutos justamente para checar como o útero responde às contrações. Além disso, também deve ser feita ausculta do bebê, do batimento cardíaco fetal (BCF), para checar se está bem. A médica também explica que, em geral, a orientação para realização de uma indução por ocitocina se dá quando existe pós-datismo, ou seja, quando chegou no limite de tempo da gestação. Outra situação, na qual também é recomendado o uso, é quando há hemorragia pós-parto .

“O protocolo de indução é de ir aumentando a cada 30 minutos, mas a avaliação indica se pode ou não ser aumentada a ocitocina, caso ela seja aumentada de maneira indevida é possível que haja um aumento de tônus descontrolado e pode inclusive levar a uma ruptura uterina. É raro, mas pode ocorrer”, explica a médica. 

Foto: Arquivo Pessoal.

Às 21h, Raquel sentiu que sua bolsa estourou. Este foi o momento em que se acredita que houve a ruptura uterina. A partir daí, Raquel afirma que, com o aumento das dores e a exigência de que agisse conforme a expectativa da equipe, as violências verbais e psicológicas foram constantes. 

“A dor era intensa, fora do normal. Eu gritei muito de dor, não era a dor normal de parto. A enfermeira entrou na sala dizendo que não era para eu ficar só deitada, que se não colaborasse ia demorar mais. Eu, apavorada, disse que tinha acontecido algo quando minha bolsa estourou e a enfermeira disse: “Que bom”. Ela me pediu para sentar em um banco no chão com as pernas abertas. Eu tentei, mas a dor era intensa, eu voltei a deitar pois eu não estava suportando a dor. A enfermeira me disse: “Assim não vai dar, mas você que escolhe. Assim, você vai sofrer mais”. Ela saiu brava da sala, afirmando que eu ia dar trabalho”, lembra Raquel.

Ela ainda descreve que gritava de dor, mas não recebia assistência. Seu marido, que nesse momento já estava com ela, rezava o tempo todo, pedia para ela se acalmar e confiar que eles estavam dentro de um hospital. Quando uma médica retornou para avaliar Raquel e a bebê Melissa, já teve dificuldades para ouvir o batimento cardíaco da bebê. Raquel foi encaminhada para cirurgia cesariana. 

“Eu lembro de tudo. Teve uma hora que eu não sentia mais a dor do parto, da contração.  Não conseguia abrir o olho, eu suava muito, não conseguia nem gritar mais. Pedia baixo, me ajuda, eu vou morrer”, Raquel Afonso, vítima de violência obstétrica. 

Ao todo, foram aproximadamente três horas em que Raquel implorou por ajuda. Segundo ela, apesar das dores, ainda foi obrigada a ir andando para a sala de cirurgia cesariana de urgência. Infelizmente, Melissa já havia morrido. A causa do óbito foi “anóxia intra-uterina”, ou seja, falta de oxigenação. Além da filha, Raquel também perdeu o útero e quase morreu –  ela sangrou por aproximadamente duas horas após cirurgia.

Justiça para Melissa

As violências, infelizmente, seguiram após a morte de Melissa. Raquel explica que foi pressionada a ver a bebê morta pelas profissionais do HU/UFSC, mesmo após afirmar que não se sentia confortável. Com voz embargada pelo choro, ao telefone Raquel narra que a situação desencadeou posteriormente um processo de culpa nela.

“Eu tive a sensação de que abandonei a Melissa no hospital por não ter ido vê-la. Depois que acordei da cirurgia não me deixaram pensar no que tinha acontecido, assimilar o que estava acontecendo. Ela ter morrido. Veio um monte de gente lamentar. A psicóloga e a assistente social (do HU/UFSC) ficaram repetindo que eu precisava vê-la e me despedir. Foi tudo muito chocante e rápido. Elas falavam de frigorífico, que ela pode ficar 30 dias na geladeira. Isso pra mim foi horrível e eu fiquei com medo de vê-la”, afirma.

De acordo a advogada Maior, denúncias sobre foram feitas na Ouvidoria do HU/UFSC em agosto; no Ministério Público Federal de Santa Catarina (MPF/SC) em outubro; no Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM/SC) em novembro. Nenhuma das instituições, no entanto, a respondeu. Recentemente, um Boletim de Ocorrência (BO) foi registrado na 6ª Delegacia de Proteção à Mulher de Florianópolis. 

Ao Portal Catarinas, a delegada Caroline Monavique Pedreira afirma que há um inquérito policial já instaurado para apurar as circunstâncias da morte e da ruptura uterina. Oitivas foram feitas, assim como um exame pericial. Neste mês de dezembro, pessoas envolvidas no caso foram intimadas para depor. 

O CRM/SC, através de assessoria, afirmou apenas que: “Toda denúncia é investigada de forma sigilosa. Por isso, o CRM-SC não vai se manifestar”. O HU/UFSC, também através de assessoria, emitiu uma nota oficial para o Catarinas. Segue abaixo na íntegra. 

“A maternidade do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC) informa que o assunto em questão está sendo apurado pela unidade para adoção das medidas cabíveis e/ou aprimoramento de processos, se for constatado que algum procedimento não foi o adequado. O HU-UFSC reitera que segue as boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento, fato que faz com que a unidade seja referência nacional nessa área”.

A identificação da violência obstétrica pela própria mulher, pela sociedade e pelo judiciário é indicada pela advogada feminista como um dos principais desafios do caso. Embora seja uma violação aos direitos humanos, há dificuldade de judicialização em decorrência da confusão entre erro médico e violência obstétrica. Além disso, a advogada aponta que é difícil provar a relação entre o uso rotineiro de ocitocina com o trágico final de Raquel e Melissa. 

“Violações de casos de violência obstétrica, como ficar 11h sem comer e os deboches, são difíceis de obter responsabilização dos profissionais e do hospital. Erro médico são negligências muito específicas, diferente da violência obstétrica. Para judicializar, precisamos ação, o que aconteceu no ato; omissão; nexo causal e o dano. Como provar a violência verbal? Como comprovar o nexo causal entre procedimentos não baseados em evidências científicas, como aplicação de ocitocina sem a devida necessidade, e as intercorrências?”, questiona a advogada.

A advogada ainda completa que há imprecisões no caso. Entre elas:  ilegibilidade do que está descrito no prontuário registrado a lápis e não a caneta; demora para entrega do prontuário quando solicitado por Raquel; e incongruências a respeito da indicação de cesariana.

Foto: Arquivo Pessoal.

Para que o caso não fique impune, Raquel criou uma petição on-line pedindo “Justiça para Melissa”. Nela há também relato feito pela própria Raquel. Questionada qual sua motivação, ela respondeu firmemente que gostaria que sua filha fosse lembrada, bem como que outras mulheres não passassem pelo que ela passou.

“Eu preciso falar o nome dela. Trataram a Melissa como se ela não existisse, porque nasceu morta. Mas ela existiu. No início, eu me culpei muito, mas eu não tive culpa. A enfermeira que me tratou mal, quando acordei, antes dela ir embora, veio no meu quarto se lamentar. Eu não consegui falar, ter reação. Ela colocava a mão no meu braço e me dava os pêsames. Dizendo que também era mãe e avó. Que a bebê era tão bonitinha. E foi ela uma das que colaborou com tudo. Eu não sei porque me trataram tão mal, mas quero que a justiça seja feita, para que outras mulheres não sofram o que estou sofrendo”, conclui. 

Em um dos documentos de denúncia que o Portal Catarinas teve acesso, 12 profissionais são citados como envolvidos no caso entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e outras profissões.

O Portal Catarinas entrou em contato com o Ministério Público de Santa Catarina, mas até o fechamento da matéria não houve retorno.

*Atualizada 19/12/2020, às 10h20.

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  • Inara Fonseca

    Jornalista, pesquisadora e educadora. Doutora (2019) e mestra (2012) em Estudos de Cultura, pela Universidade Federal de...

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