Se pensarmos no contexto brasileiro, as leis desde o período colonial visavam regular e vigiar a vida das pessoas que aqui viviam, sendo que o direito surge a serviço das oligarquias e de uma sociedade patriarcal e católica. As mulheres das elites estavam restritas ao espaço privado e realização das atividades relacionadas aos cuidados da casa e família. Para as mulheres de camadas populares o espaço público era limitado ao trabalho. Mas a vivência das sexualidades para as mulheres sempre esteve condicionada ao casamento. Por isso, sobre elas sempre recai mais fortemente o julgamento moral da vivência da sexualidade fora do ambiente conjugal e com a finalidade de procriação. Sexo por prazer não era/é atributo feminino.

A caracterização do crime de estupro, antes restrita à conjunção carnal pênis – vagina, em uma relação homem e mulher cis, visava proteger mulheres que estavam dentro dos padrões, ou seja, deveriam ser protegidas as mulheres “de família”, as únicas dignas da proteção do Estado. Para as mulheres prostitutas, as que trabalhavam fora de casa, as desquitadas/divorciadas a aplicação da lei (apesar de não expressamente) não era da mesma forma. Não era destinada a mesma proteção jurídica às mulheres fora do padrão do casamento heterossexual. Só em 2009, quando os crimes contra a moral passaram a ser classificados como crimes contra a dignidade sexual, é que os homens e meninos também começaram a figurar como vítimas desta violência.

Em diferentes contextos é o comportamento da vítima que irá configurar a forma de consentimento. Durante todo o século XX muitos processos que julgavam crimes de estupro e defloramento, por exemplo, exigiam que o não consentimento da vítima deveria ser precedido de forte reação, devendo os gritos serem ouvidos pelas testemunhas. Não adiantava a prova de forte guerra corporal, era preciso que muitas testemunhas ouvissem os gritos da vítima, e por aí vai. Também o fato da vítima aceitar estar acompanhada de um homem em um local privado, aceitar o convite para ir ao seu apartamento, ou ir até o seu carro, ou outro local privado, como a casa ou até mesmo um motel, ou ainda locais mais distantes, ou escuros ou de pouco circulação, já significavam que havia uma permissão implícita da vítima para que ela estive consentindo com o fato de ter relações sexuais. Um imaginário expressado pelo jargão popular: ajoelhou tem que rezar.

Houve uma virada nesta perspectiva da permissão com o famoso caso em que o atleta de boxe, o estadunidense Mike Tyson, foi julgado e condenado pelo estupro de Desiree Washington. O fato de Desiree ter consentido ir até o local do crime com o atleta não significou o consentimento. Em casos como este e do atleta Neymar, que veio à tona no Brasil nos últimos dias, após a denúncia da vítima que o acusa de ter cometido estupro na França, está em jogo o fato do jogador ser milionário, influente e cercado de todos os patrocínios e do poder econômico de muitos homens e de diferentes interesses em jogo.

Vale lembrar que o fato de Neymar ter pago a passagem para a moça e esta ter aceitado seu convite, ter realizado conversas picantes nas redes sociais, não configura o consentimento para o ato que resultou em violência. Há uma linha muito tênue entre o que pode ser uma relação consentida e uma relação afetivo sexual com violência. Nos dias de hoje, mesmo uma relação entre marido e mulher se esta for realizada com violência pode configurar estupro. O consentimento, mesmo no casamento, não é ilimitado, irrestrito, atemporal. Uma situação de violência, que segundo a vítima foi consequência de uma relação sexual não consentida, há que existir a interferência do Estado e a punição do estuprador.

Se os julgamentos morais e as subjetividades de todos os envolvidos estão sendo levados em consideração nesse caso, é importante lembrar que as nossas subjetividades são acionadas nos julgamentos morais e, no caso concreto, pelos operadores jurídicos. A menina golpista, o golpe da barriga, ainda são expressões comuns no senso comum, em que as pessoas enxergam as mulheres como aquelas que querem levar vantagens em detrimento do “garoto rico e imaturo”.

Se algumas mulheres já se submeteram a violências em troca de fama, sucesso ou dinheiro, não é possível concluir que todas as mulheres querem ou se submetem ao mesmo destino de violências. Se não podemos julgar o caso em si, pois não somos juízes/juízas/delegados/delegadas envolvidos/as o que podemos perceber é que novamente, mais uma vez, a vítima que está sendo julgada moralmente por seus comportamentos, e o incentivo à violência por homens encurrala as mulheres em maior desvantagem sempre, e as empurra para o lugar do silêncio, do sofrimento, da exclusão.

Propor projetos de Lei como Neymar da Penha é um escárnio, uma ofensa e uma possibilidade de deixarmos ainda mais na invisibilidade os inúmeros casos de estupro que acontecem diariamente, os quais são sabidamente subnotificados no país. Se o jogador for inocentado pelo caso de estupro, porque moralmente já temos uma condenada, que mais uma vez é a vítima, nesse caso, é preciso estar ciente do outro crime cometido pelo fato de expor/revelar as fotos de partes do corpo dela em redes sociais.

*Claudia Regina Nichnig é historiadora, advogada e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Estudos de Gênero, e pós-doutora em História e Antropologia Social. É professora visitante no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), no Mato Grosso do Sul.

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