Exame aconteceu após ameaças de intervenção e trouxe provocações, como a música “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho.

As críticas de Jair Bolsonaro (sem partido) ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não são novidade. Em 2015, quando era deputado, já atacava a prova, afirmando que o questionário expunha jovens indefesos à “doutrinação imposta pelo PT”. Como presidente, a postura se agravou. 

No dia 15 de novembro, durante a Expo 2020, em Dubai, o presidente declarou que as questões do Enem “começam a ter a cara do governo”. A declaração polêmica levantou suspeitas sobre quais assuntos seriam mantidos da prova, que, segundo o próprio presidente, tinha “questões esquisitas” e de “ativismo comportamental”.

Para Bruna Cobelo Pinelli, 23 anos, a declaração foi um sinal de alerta. Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina, e professora voluntária de sociologia no Gauss – pré-vestibular comunitário organizado pelo PET-Matemática da UFSC – a fala do presidente gerou ansiedade nos candidatos. 

“Como vai ser um Enem com a cara do governo? Como é a cara do governo? Questões homofóbicas, racistas, classistas? Fiquei assustada. Quase virando pros meus alunos e falando: tudo que vocês aprenderam, tudo que eu falei, pensem o oposto pra fazer a prova ‘a cara do governo’”, relembra.

Em 17 de novembro, durante viagem ao Catar, Bolsonaro recuou e afirmou que não viu as questões do Enem deste ano. No mesmo dia, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, negou interferência ideológica na formulação do exame. O ministro afirmou que o exame tem a cara do governo “no sentido de competência, honestidade e seriedade”.

Ainda na quarta-feira, em audiência no Senado, Danilo Dupas Ribeiro, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) – órgão responsável pela elaboração e aplicação do Enem – negou ter tido acesso à prova. Danilo foi chamado a prestar esclarecimentos sobre os 37 servidores do Inep que pediram exoneração, em 9 de novembro.

Em ofício encaminhado para a diretoria do Inep, os servidores justificam sua saída pela “fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima” do órgão. Os servidores afirmam que sofreram assédio moral e pressão psicológica durante a formulação da prova deste ano. 

A vigilância velada seria para evitar a escolha de questões polêmicas que eventualmente incomodariam o governo Bolsonaro. Em anonimato, dois dos servidores confirmaram ao G1 que havia um clima de intimidação e de medo na montagem da avaliação. 

Alguns servidores do órgão afirmaram que, durante a fase final de elaboração da prova, em 2 de setembro, um policial federal invadiu o local sem apresentar justificativa. O deputado federal professor Israel Batista (PV-DF) acionou a Justiça para pedir o imediato levantamento do sigilo, imposto pelo Inep, ao processo administrativo
Dois dias antes da prova, na noite de sexta-feira (19), Hélida Lança, professora de uma escola pública de São Paulo, denunciou em sua conta do Twitter que foi orientada, pela Fundação Cesgranrio, organizadora do exame, a retirar dois professores e colocar dois policiais federais como aplicadores do Enem.

Professora Hélida Lança denuncia recomendação de que Policias Federais apliquem a prova do Enem.
Fonte: Twitter

Pautas relevantes no Enem 2021

O Enem ocorre uma vez por ano, e conta com 180 questões –  retiradas do Banco Nacional de Itens, formado por milhares de questões redigidas por professoras/es escolhidos por edital. Na elaboração de cada prova, a equipe técnica do Inep seleciona 180 questões de níveis variados, para que, juntas, atinjam o nível esperado do exame. 

Cercado de polêmicas, o Enem começou no último domingo (21), com a prova de Linguagens. Foram 3,1 milhões de estudantes – o menor número de participantes desde 2005. O exame já chegou a mais de 8 milhões de inscritos. 

A baixa participação demonstra a fragilidade do exame que já foi considerado a principal porta de entrada ao ensino superior, se tornando referência nacional. As portas da Universidade voltam a se estreitar, deixando de fora jovens pobres, negros, indígenas e LGTBQIA+. 

A situação se agravou com a pandemia de coronavírus, visto que muitos jovens precisaram priorizar o trabalho e gerar seu próprio sustento, deixando o estudo em segunda mão. A edição de 2021 teve o menor número de inscritos em 15 anos. Teve comparecimento menor, inclusive, do que a prova de 2020, realizada no auge da pandemia. 

Essa queda também é reflexo da decisão do governo Bolsonaro de retirar o direito à isenção de taxa de quem faltou na última edição da prova, feita durante o isolamento social. Assim, aqueles que não compareceram devido a pandemia, ou que foram barrados devido a salas superlotadas, só poderiam participar desta edição pagando a taxa de R$ 85.

Além do desmonte e esvaziamento do Inep e das polêmicas envolvendo a credibilidade e seriedade da prova, esta edição também rompeu com uma importante trajetória de inclusão de estudantes negros e pobres, a prova teve também a menor participação de candidatos isentos da taxa – aqueles com renda familiar de até 1,5 salário mínimo.

Na segunda-feira (22), após a realização da prova, o presidente declarou que ele e o ministro Milton não interferiram na elaboração do exame, que para Bolsonaro, ainda contou com “questões de ideologia” – sem especificar a quais perguntas se refere. 

O primeiro dia de prova contou com temas considerados polêmicos pelo atual governo. A escravidão, por exemplo, foi abordada em diversas questões. Em uma delas, o enunciado trazia uma notícia sobre recompensa de escravos fugidos e das estratégias dessas pessoas durante a fuga. Em outra, a prova falou sobre hierarquia entre as pessoas escravizadas.

Questão do Enem 2021 sobre escravidão.
Fonte: Caderno de Provas/Enem 2021

A prova também trouxe outras discussões sobre a pauta racial, com perguntas sobre o aumento da população carcerária no Brasil, e a predominância de jovens negros de baixa renda entre os novos presos. A desigualdade de gênero também foi abordada em uma questão sobre erotização do corpo feminino, com a ilustração de uma “pin-up”, que é a designação em inglês que se refere a uma modelo voluptuosa.

Apesar de não fazer menção direta ao termo fake news, o exame discutiu sobre a importância de fazer leitura crítica das notícias. O Enem também apresentou questões sobre a luta indígena e uso de telas (celulares, tablets e televisões) por crianças. 

Um trecho da música “Admirável Gado Novo”, do cantor Zé Ramalho, foi citado em uma das questões da prova de ciências humanas. O enunciado pedia que o aluno relacionasse um trecho com o contexto em que a canção foi lançada, em 1979, durante a ditadura militar. O cantor afirmou, ao G1, que se sentiu recompensado ao ver sua música na prova. 

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam essa vida numa cela

[…]

Eh, oô, vida de gado
Povo marcado eh
Povo feliz

Admirável Gado Novo, Zé Ramalho

Os versos, que falam sobre “massa” e “vida de gado”, foram considerados como uma provocação aos apoiadores do governo Bolsonaro, popularmente chamados de “gado” por não considerarem o caráter ético, racional ou humano em sua adesão. O professor de história Renato Pellizzari, do Descomplica – curso pré-vestibular -, afirma que a resposta correta era a alternativa B, que citava uma postura de passividade na sociedade brasileira.

Questão do Enem 2021 sobre a musica Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho.
Fonte: Caderno de Provas/Enem 2021

Porém, apesar dos sinais de resistência, muitos problemas persistiram, como o elevado nível de capacidade técnica para realizar a prova, considerada por muitos de nível universitário, e não médio. A forma conteudista e “decoreba”, há anos presente no exame, se manteve. 

A proposta redação deste ano tem dividido opiniões. O tema “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” surpreendeu estudantes e professoras/es, que esperavam algum assunto relacionado à recente e ainda vigente pandemia de coronavírus.  

Em entrevista à CNN, a presidenta do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Helena de Castro, concordou que a pauta foi surpreendente. Segundo Maria Helena, estima-se que no Brasil existam cerca de 3 milhões de pessoas sem registro, o que torna o tema certamente de muita relevância. 

No entanto, diversas/os professoras/es vêm criticando a superficialidade dos textos motivadores, que servem como a base da argumentação dos candidatos. A falta de explicação sobre o próprio conceito de cidadania, e de exemplos concretos das consequências da ausência de registro podem ter dificultado a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo – único formato previsto pela prova. 

A historiadora e youtuber que trata do tema da educação, Débora Aladim, reagiu à prova de linguagens, comentando sobre a fragilidade dos conteúdos apresentados para embasar a discussão. No Youtube, o vídeo já passou de 490 mil visualizações.

Para a bacharela em Letras-Portugues, Heloisa Cristina Corrêa Baggio, 25 anos, a maior preocupação foi o repertório que os estudantes possuíam sobre o assunto. Para a professora voluntária no Gauss, que ministra a disciplina de Redação, o tema pode ter pegado os estudantes de surpresa. 

“Os textos motivadores foram insuficientes, faltam informações para os alunos conseguirem desenvolver sua redação satisfatoriamente. Até porque foi um tema pouquíssimo discutido em sala de aula”, comenta. 

Ainda assim, para Heloísa, as possibilidades de argumentação eram diversas, considerando os temas que estiveram presentes na sala de aula e na vida das/dos estudantes. Pautas como o direito de pessoas trans, as estatísticas da pandemia de coronavírus, os déficits de registros de nascimento, casamento e divórcio durante o isolamento social, e o abandono paterno poderiam ser relacionadas à questão do registro civil. 

A professora afirma que um exemplo real que poderia inspirar a argumentação das/dos estudantes sobre o tema, seria trazer dados sobre quantas cidadãs e cidadãos brasileiros não conseguiram acessar o benefício do Auxílio Emergencial devido a problemas no seu registro. 

São brasileiros que não possuem conta em banco, acesso regular à internet, ou sequer CPF ativo. “Pessoas, que por não terem cadastro, ficaram de fora do rol de beneficiários do Auxílio Emergencial, à mercê do desemprego, da fome”, comenta a professora. 

Quando foi lançado, o programa de assistência social visava propiciar uma renda mínima a pessoas em situação de vulnerabilidade social, que perderam seus empregos durante a pandemia. O cadastro para receber o benefício revelou 46 milhões de brasileiros invisíveis aos olhos do governo. 

Entre os que estavam com o CPF inválido, muitos se encontravam em situação ainda mais vulnerável. Um levantamento, feito pelo Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira (FGVcemif), usando como base os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mostrou que 38% das pessoas que responderam ao levantamento têm renda de até um salário mínimo. Desses, 94% não recebiam benefícios como o auxílio emergencial ou Bolsa Família.

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  • Gabriele Oliveira

    Estudante de Jornalismo (UFSC) dedicada à escrita de reportagens, com foco na cobertura de direitos humanos. Estagiária...

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