Por Rose Serafim, da Eco Nordeste.

No Ceará, mesmo apresentando queixas contra ex-companheiros, mulheres continuam dependendo de um processo lento, já que os agressores não aceitam a separação.

Fortaleza – CE. Em setembro de 2019, a advogada Catarina* decidiu que iria se divorciar do marido. Procurou uma psicóloga e tomou a decisão após entender que não tinha mais o que fazer para nutrir uma relação de mais de 12 anos baseada em constantes conflitos. Só deu a notícia a ele no começo de 2020 e pediu que o processo fosse realizado aos poucos, para preservar o filho do casal, um menino de 6 anos. Com a pandemia, decidiu adiar o processo. “Como entramos em isolamento e meu filho perdeu todo o contato com os amigos, primos e avós, eu achei que seria cruel demais que os pais dele se separassem naquele contexto”, remonta.

Mas, antes disso, já discordava de diversos comportamentos do companheiro que foram agravados com o isolamento. “Teve uma vez que ele não queria que o nosso filho fosse à festa de aniversário de um dos meus sobrinhos, uma criança de 8 anos, por considerar o menino ‘afeminado’. Nós mudamos de apartamento porque ele queria que menos pessoas frequentassem a nossa casa. A minha sogra, minha mãe, a irmã dele iam muito lá e ele achava que eram muitas influências femininas para o nosso filho”, conta.

Não saíam de casa e nem recebiam visitas. Durante o longo período de isolamento, ela pediu ao marido que dormisse fora do quarto, em um escritório da casa. E, após diversas investidas dele e tentativas de reconciliação forçada, ela trouxe o filho para dormir consigo como forma de se proteger. “Tinha que fechar uma porta de uma forma que ele não percebesse que estava trancando. Sempre acordava mais cedo e era a primeira a sair do quarto. Eu queria ter certeza do que iria ser visto. Então, eu não dormia. Eu sempre ficava ligada”, relembra.

Com o processo de reabertura começando em junho, em Fortaleza, ela retomou os planos de separação e pediu a colaboração do marido, mas ele se recusou a facilitar o que fosse e ainda a ameaçou: se saísse sozinha de casa, seria acusada de abandono do lar. Se levasse o filho junto, ele a denunciaria por sequestro. Com medo, Catarina buscou ajuda na Casa da Mulher Brasileira. “Em seguida, dei entrada no processo litigioso de separação e, em agosto, saí de casa. Fui me mudando aos poucos, escondido, retirando coisas do meu filho e minhas”.

A último episódio de conflito veio após a mudança. O marido levou o filho para passar um tempo com ele e, quando Catarina foi buscar a criança, o pai reclamou que o menino estaria dando muito trabalho para estar com ele. Depois disso, pediu para ir junto com a ex-esposa até a creche do menino. Chegando lá, quis forçar uma conversa nada amistosa.

“Eu disse que tinha um compromisso e precisava ir, liguei o carro e saí. Ele veio correndo, gritando atrás de mim, entrou no carro, puxou o freio de mão e disse que eu só saia dali depois que nós conversássemos. Eu comecei a chorar, a babá também entrou em desespero, até que um senhor apareceu e disse que tinha chamado a Polícia”, relata.

Desde então, os dois não mantêm mais nenhum contato a não ser pelos advogados. Segundo Catarina, o ex-companheiro já ligou para a psicóloga dela, buscou amigas e sempre tenta ir até o apartamento onde ela reside agora, nas oportunidades em que busca o filho, mas é proibido pela portaria. Ela ainda evita sair de casa para compromissos que não tenham a ver com trabalho pois teme represálias do ex-marido. Apesar de poder custear todo o processo de divórcio e busca pela guarda do filho, Catarina reclama da morosidade da Justiça.

“Quando fui lá (na Casa da Mulher Brasileira), o escrivão perguntou se eu estava com medo e respondi que sim. E ele ainda falou que, de uma coisa assim, pode vir uma tragédia. Mas, como eu não tinha lesão, não dispunha de provas para pedir uma medida protetiva contra o meu ex-marido. A Justiça brasileira não acompanha a urgência desses casos”, constata.

Queda ou subnotificação?

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do Ceará, entre os meses de março e junho deste ano, houve redução de 32,9% nas ocorrências de violência doméstica, indo de 7.278 para 4.881 casos, em comparação a igual período de 2019, no Ceará. Já no mês de julho houve redução de 10,9% dos casos de violência doméstica no Estado, indo de 1.821 registros em 2019 para 1.623, em 2020. Em agosto, a redução foi de 14,9%. Foram registrados 1.917 casos no oitavo mês do ano passado e 1.631, em igual período deste ano. Nesses quatro meses, foram registrados 13 casos de feminicídio no Estado.

“Um dos grandes problemas do isolamento é que as mulheres ficaram presas no mesmo local que o agressor. Não podiam atender telefone, conversar com alguém, nada disso. Outro ponto foi a mobilidade, pois o transporte público parou”, Daciane Barroso, Coordenadora da Casa da Mulher Brasileira no Ceará.

Daciane Barroso, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira no Ceará, explica que os dados oficiais não condizem com a realidade, que a aparente redução é fruto das dificuldades enfrentadas pelas mulheres para realizar denúncias durante o isolamento. “Um dos grandes problemas do isolamento é que as mulheres ficaram presas no mesmo local que o agressor. Não podiam atender telefone, conversar com alguém, nada disso. Outro ponto foi a mobilidade, pois o transporte público parou”, explica.

Por isso, uma estratégia utilizada pela Casa foi interligar telefones da Coordenação aos números pessoais dos funcionários para facilitar o atendimento. Mesmo assim, ela conta que houve um decréscimo no número de denúncias em 50%, entre os meses de março e maio deste ano. Mas, assim que a reabertura foi iniciada, no mês de junho, aumentou o número de vítimas a buscar atendimento.

Outro ponto reiterado por Daciane é o aspecto financeiro da violência, já que muitas vítimas que permanecem nessa situação o fazem por não dispor de recursos para reestruturar a própria vida e a dos filhos. Por isso, além do acompanhamento jurídico, psicológico e de serviço social, a organização mantém um programa de acompanhamento a essas mulheres que oferece cursos para auxiliar na reentrada no mercado de trabalho.

É o que tem auxiliado Juliane* a mudar de vida após um ano sem compartilhar o teto com o ex-marido. Há seis anos, ela deu início a um relacionamento com um rapaz da mesma igreja evangélica que ela frequentava. Os dois casaram, mas, desde a noite de núpcias, a jovem percebeu que não conhecia tão bem o companheiro.

“Na lua de mel, ele me chamou para conversar e disse: ‘agora você é minha propriedade, eu mando em você e você tem que me obedecer’. Eu aleguei que nós combinamos que eu iria estudar, ia para a academia. Ele disse: ‘esquece tudo isso’. Cinco meses depois, ele ficou desempregado, começou a usar drogas, quebrava ou vendia minhas coisas. Eu achava que, por ser meu marido, eu tinha que aceitar. Minha sogra me dizia isso”.

Quando veio a primeira agressão, ela conseguiu se defender, pois tinha prática de defesa pessoal no jiu-jitsu. Mas, ainda assim, ficou sujeita a abusos psicológicos do marido e da mãe dele. “Ele me obrigada a manter relações sexuais com ele. Em um episódio, o vizinho ouviu eu chorando porque não queria (sexo). O vizinho veio aqui e disse que ele não podia fazer isso comigo”.

Logo veio o abuso financeiro. Juliane era a única a buscar recursos para manter a casa e percebeu que o dinheiro estava desaparecendo. O então companheiro também não permitia que ela estudasse e participasse de processos seletivos. “Me inscrevi em um concurso da Polícia Militar e dei o dinheiro para que ele fosse pagar a inscrição e ele não pagou. Eu só soube disso quando fui buscar o local de prova e não tinha nada”, relata.

Com o Grupo Independência Financeira, ela redescobriu possibilidades de cursos e trabalho. Além disso, conheceu outra pessoa que a ajudou a encontrar um trabalho e, da amizade, veio um novo relacionamento. No entanto, as ameaças do ex-marido persistiram e, mesmo após um ano de separação, ela ainda não conseguiu o divórcio.

“Um dia, meu ex me ligou ameaçando de me esquartejar, disse que pertencia a uma facção  criminosa e eu ia morrer e esse rapaz me incentivou a ir à delegacia na mesma hora”, conta. A negativa do agressor em assinar os papéis da separação sugere que essa ainda é uma forma de prejudicar a mulher.

“Infelizmente, depois de tanto tempo, desse período tão doloroso, eu ainda não posso me casar. E é isso que eu quero. Quero véu e grinalda, tudo que eu tenho direito. Infelizmente, não posso realizar porque a Lei não colabora comigo”.

Quando a mulher é dependente financeiramente a situação a dificuldade de se afastar do agressor é ainda maior | Foto: Adriana Pimentel

Sensação da liberdade

Apesar do empecilho, após um ano longe do agressor, Juliane sente que toma conta da própria vida: “Hoje eu me sinto livre. Uma das maiores provas disso é poder usar o cabelo solto. É a mesma coisa que estar andando de moto numa estrada ou boiando no mar, a sensação de liberdade que eu tenho. É eu poder usar um batom vermelho, maquiagem, fazer as unhas. Receber meu dinheiro e poder comprar uma roupa porque não tem ninguém me roubando. Me sinto como um passarinho que acaba de nascer”.

A professora de Direito Sarah Lima destaca que a violência contra a mulher é um dos resultados das diferentes formas de ocupação dos espaços públicos e privados entre os gêneros. Segundo a mestra em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), os locais públicos e cargos de poder ainda são destinados aos homens, enquanto as mulheres são relegadas ao ambiente doméstico. “Mesmo quando elas trabalham fora ou ocupam cargos de chefia, onde são minoria, ainda têm todos os deveres domésticos de cuidado com a família e com a prole. Por isso, é justamente no ambiente doméstico onde elas sofrem mais violência”, explica.

Sarah ressalta, ainda, que a Lei Maria da Penha também se aplica a casos em que o agressor não é necessariamente parceiro da mulher ou homem. Dessa forma, ela chama a atenção para outras relações abusivas que se destacaram durante o período de isolamento, como a relação entre empregadas domésticas e patrões. “Domésticas adoecendo, sendo privadas de sair da casa, sem receber salário, muitas não podendo manter contato com seus familiares. A Lei Maria da Penha também pode ser aplicada nesses casos”, reforça.

No entanto, a professora reafirma que até 90% dos casos de violência contra a mulher são cometidos por companheiros homens e concorda que há uma morosidade na separação judicial para mulheres que buscam sair de uma relação violenta.

“O divórcio é um Direito Potestativo. A pessoa vai se divorciar de um jeito ou de outro, mesmo que não queira. Mas, de fato, o processo litigioso é mais lento. E não há realmente nenhum dispositivo que torne o processo mais célere para quem sofreu algum tipo de violência. É algo realmente a ser pensado”, finaliza.

* Nome fictício para preservar a identidade da vítima.

A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.

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