Antes de fazer algumas considerações sobre a epidemia/pandemia do Zika vírus, é imprescindível descrever o mundo em que vivemos. Hipócrates, de Cós, considerado o pai da Medicina, orienta, em sua obra “Ares, águas e lugares”, como um forasteiro deve fazer ao chegar a um novo lugar. Identificava a influência da localização geográfica e dos elementos físicos como o clima, disponibilidade, qualidade e facilidade de acesso à água e a presença de vegetação para a saúde e modo de vida dos habitantes daquele ambiente. Hipócrates ressaltava a importância de se conhecer as peculiaridades de cada local, os ventos, as temperaturas atmosféricas, bem como observar a sua sazonalidade como fatores necessários para se fazer uma correta investigação das doenças. Em relação à água, se preocupou com a observação da sua qualidade e quantidade em cada lugar e sugeriu a análise de sua proveniência. Muitas de suas preocupações ainda são atuais e úteis para os gestores públicos que pretendem agir para controlar/erradicar os agravos que incidem sobre as populações.
A interdependência entre o ambiente, a fixação das populações humanas e a ocorrência de doenças são conhecidas desde a antiguidade. As civilizações ancestrais explicavam os fenômenos naturais sob o ponto de vista do pensamento mágico e sobrenatural. Hipócrates foi quem primeiro sugeriu que o desenvolvimento da doença humana poderia estar relacionado às características pessoais e ambientais. Muitas das medidas e providências passam por diferentes dificuldades para sua correta resolução. São fatores relacionados à cultura, religião, costumes e heranças tradicionais a respeito da relação com o ambiente. As relações entre o hospedeiro, o ambiente e o agente etiológico.
Com o advento do Cristianismo as doenças eram castigos de Deus, uma punição pelos pecados; para os pagãos, era possessão do demônio ou feitiçaria. Nós, mulheres, em geral, éramos as principais culpadas por esses males. A caça às bruxas que o diga. Vários autores relatam que o raciocínio epidemiológico surgiu no século XVII diante das epidemias que assolavam a Europa. Nessa época, havia a teoria miasmática (“a essência da doença se transmitiria pelo ar”), que foi útil para combater a malária (“maus ares”). Apesar da concepção equivocada sobre a forma de aquisição da doença foi importante para a urbanização das cidades. Naquele tempo já havia a percepção de que as condições sanitárias ruins criavam um estado atmosférico local, causador de doenças infecciosas e surtos epidêmicos.
Desde épocas muito remotas as epidemias trazem consigo discriminação, violência, sofrimento e morte. Além de terror, crendices e perplexidade. Foi assim com a “terrível lepra” (Hanseníase), Sífilis, Tuberculose e hoje AIDS, Ebola, novamente a Sífilis além das mais recentes a Dengue, Chikungunya e Zika. Nos dias de hoje, ocorrem epidemias das mais diversas origens. Epidemias de doenças infecciosas, crônico-degenerativas, de violência, acidentes e todas as demais formas de agravos e causas externas. É evidente que as causas de adoecimento e morte sempre estarão presentes, pois são as duas faces de uma mesma moeda, ou seja, a trajetória dos seres vivos em seu ciclo vital.
O que, no entanto, assusta é o surgimento de epidemias novas, emergentes, reemergentes e/ou negligenciadas. O que não muda são as populações que sofrem de forma mais intensa os efeitos desses fenômenos mórbidos motivados pela fome e pela miséria. São os pobres, as mulheres, os negros, os habitantes das periferias urbanas, das zonas de degradação ambiental, os trabalhadores urbanos e rurais, do campo e da floresta, enfim, a grande massa de população que é explorada como classe social e oprimida por práticas e preconceitos que impedem sua cidadania plena e a fruição dos direitos humanos.
O flagelo do momento é o aparecimento em quantidade devastadora do mosquito Aedes aegypti. Trata-se de um inseto que é vetor de várias doenças como a Dengue, Chikungunya, Zika e Febre Amarela. A proliferação incontrolável desse mosquito deve-se ao acúmulo de lixo e entulhos nas cidades, nos prédios, nas áreas degradadas, enfim, nos lugares onde se acumula água parada. Essas informações estão difundidas exaustivamente pelos meios de comunicação, pelos serviços de saúde, pelos movimentos comunitários, ou seja, pela população em geral, que está assustada e temerosa dos efeitos das epidemias.
Começou com a Dengue e agora, a mais recente é a Zika. O grande dano quem sofre são as gestantes e os fetos em formação. Foi evidenciada uma provável relação entre gestantes infectadas pelo Zika vírus e a microcefalia nos recém-nascidos. Há um grande esforço científico em busca de medicamentos eficazes, de vacinas, de ações educativas, utilização de medidas profiláticas e preventivas para controlar/erradicar a epidemia que, aliás, já é uma pandemia e se alastra planetariamente. Até aqui o que está exposto é mais ou menos óbvio.
Voltando a Hipócrates uma pergunta se faz necessária: quais as condições em que se encontra o nosso país, o continente e o planeta terra? Nosso planeta foi transformado num gigantesco lixão onde os seres vivos se relacionam, vivem, resistem e morrem. Na maioria das vezes, as ações de proteção e recuperação sobre as epidemias são executadas apenas sobre os efeitos e as consequências. As causas são estudadas, em geral, sob a ótica biológica, geográfica e individual. O Estado e as instituições de saúde repassam às populações vulneráveis o ônus dos cuidados e das medidas profiláticas sem suficiente ação preventiva anterior à eclosão dos danos. Além do mais, provocam uma intensa contaminação ambiental pelo uso massivo de agrotóxicos para combater as larvas e insetos adultos.
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É nessa perspectiva que deve ser analisado o atual panorama epidemiológico. Uma leitura geral da epidemia de Zika evidencia alguns dados essenciais. A maior incidência ocorre amplamente em zonas de pobreza, com falta de saneamento, abastecimento de água sem regularidade, acúmulo de lixo, valas e esgotos a céu aberto, moradias precárias, ausência ou difícil acesso às Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Sistema Único de Saúde (SUS). É importante ressaltar que o sucateamento do SUS, a privatização e a terceirização dos serviços de saúde pelos estados e municípios, a mercantilização da saúde e a busca incessante e compulsória pelo modelo imposto de Estado Mínimo são o grande motivo desse caos sanitário e humano.
A Constituição da República Federativa do Brasil é muito clara nos artigos referentes à Saúde, onde afirma que esta é um direito de todos e um dever do Estado e enfatiza as ações relativas à promoção, proteção e recuperação à saúde. Ou seja, a integralidade. Ora, como atingir a integralidade e a garantia do direito se com a privatização dos serviços de saúde uma infinidade de Organizações Sociais assumiram essas funções e atuam de forma totalmente diversificada e fragmentada? Se não obedecem nenhum parâmetro técnico (ou talvez nem os conheçam) para o planejamento, organização, execução e avaliação dos serviços prestados? Se grande parte dessas organizações sequer são da área da saúde? Se a finalidade principal delas é o lucro e garantir a aparência e a farsa da austeridade e eficiência dos governos que as contratam? Se o direito à saúde é apenas um mero detalhe discursivo e vago? Se o esvaziamento da área social e ambiental se dá mediante o repulsivo discurso neoliberal cujas palavras de ordem são “choque de gestão”, “fazer o dever de casa”, “austeridade” e “responsabilidade fiscal”? E como ficam as mulheres neste cenário? Como sempre ficaram. Na condição de cidadãs de segunda classe. Na condição de reféns de providências e recomendações que lhes destinam a maior parte das obrigações de prevenção, proteção e cuidados. Na condição de vítimas dos preconceitos e interdições sobre suas decisões em relação a manter ou não uma gravidez de consequências previsíveis, como o nascimento de crianças com malformações congênitas decorrentes da microcefalia. Como cidadãs destinadas a dedicar as suas vidas ao cuidado de crianças com danos graves e irreversíveis sem contar com o apoio e o suporte dos órgãos de saúde, assistência social e demais serviços necessários. Com o drama pessoal, familiar e emocional de ver a tragédia anunciada acontecer sobre o/a filho/a que, na maioria das vezes, era intensamente desejado/a e amado/a. E isso tudo porque a decisão, a escolha das mulheres em realizar ou não o aborto nesses casos está dentro da criminalização geral dessa prática no Código Penal Brasileiro.
Porque o opressivo e brutal pensamento fundamentalista e patriarcal é hegemônico; porque se faz representar num Parlamento apodrecido; porque impõe ao conjunto do povo brasileiro um pensamento particular e religioso pertencente a uma parcela da população; porque aproveita essas particularidades para oprimir as mulheres e saciar a misoginia histórica que habita entre nós.
Porque a maioria absoluta das mulheres que passam por esses dilemas são pobres, negras, das periferias urbanas, excluídas dos avanços da ciência, do conforto doméstico e das melhorias de vida trazidas pelo progresso, vítimas da imobilidade urbana, da violência e de toda sorte de privações. Enfim, uma população destinada apenas para a exploração do trabalho arrancado de seus corpos exauridos. Mas esse é o mundo que vivemos. Esse é o lugar onde o Brasil se encontra. Esse é o quadro de horror gestado pela fase neoliberal do capitalismo. Sistema que se nutre do consumo sem limites, do desperdício, da obsolescência planejada, do despejo do lixo, em todo e qualquer espaço existente.
Enquanto isso, para cumprir as imposições das agências internacionais, os governos suprimem dos orçamentos os gastos e investimentos essenciais para atender às necessidades e direitos da sociedade. Uma das aberrações foi a imposição pelo FMI, no final dos anos 1990, de privatização das ações de saneamento. De lá para cá, no Orçamento Geral da União, a dotação para saneamento não ultrapassa valores em torno de 0,05% a 0,08%. E, no atual governo Temer o BNDES elegeu o setor de saneamento básico como prioridade para privatizar. Será que a privatização é o caminho? Tudo indica que não e há uma tendência global de reestatizar o setor. A explicação é simples, as empresas privatizadas não conseguem atender os mais pobres (que vivem nas áreas mais carentes desses serviços) e são de difícil controle público, pois em geral são monopólios sem concorrentes. A necessidade de novos espaços para investimento leva os capitais às destruições mais brutais. Soma-se a isso a irresponsabilidade dos governos ao apoiar as novas hidroelétricas, como Belo Monte, com destruição das populações indígenas e ribeirinhas e da exploração sexual das meninas e mulheres. Outra barbárie ambiental é a forma de expansão do agronegócio e da mineração.
Nesse contexto ocorre o desmatamento desenfreado que expulsa os mosquitos de seus espaços originais. Os agrotóxicos destroem os inimigos naturais desses e ajudam sua expansão e novos domiciliamentos em geral nas áreas degradadas das cidades. A epidemia de Zika vírus evidencia a íntima relação entre a dominação econômica, a opressão sobre as mulheres, as condições sub-humanas de existência das populações excluídas. Além disso, o Código Penal não atende à realidade das mulheres, caso contrário o aborto já estaria legalizado e as mulheres teriam o direito de escolher sem ser criminalizadas. Há uma evidente inversão de prioridades. Toda a estrutura do Estado, a legislação e as ações públicas estão voltadas para atender as questões econômicas ao invés de a economia ser um instrumento para prover as necessidades sociais. Essa última observação remete a Garcia, J. C. (1989), quando afirma que “A estrutura econômica não somente determina o lugar da prática médica na estrutura social, mas também a característica e a importância dos elementos que compõem o todo social”. E, nesse lugar onde estamos, como sempre, nós mulheres pagamos a conta!