Posicionada diante da câmera com símbolos indígenas pendurados na parede ao fundo, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos dá recado contra os direitos das mulheres
Três minutos e trinta segundos. Essa foi a duração do pronunciamento da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) ocorrida nesta segunda-feira (22).
Na gravação, editada para entrar durante a reunião do Conselho, Damares está sentada em uma mesa e, atrás dela, pendurado na parede, vê-se um cocar emoldurado (à esquerda), um maracá (instrumento indígena) emoldurado (ao centro) e um quadro com uma foto de uma criança e uma mulher indígenas (à direita). Além dos elementos explícitos, Damares começa seu discurso falando sobre a Amazônia e seus povos. Essas referências são usadas como “tokens” (“símbolos”, em inglês) para dar a impressão de inclusão e demonstrar concessão ou “valorização” desses grupos.
O termo “tokenismo”, usado pela primeira vez por Martin Luther King nos anos 1960, está relacionado à incorporação de um número de membros ou símbolos que remetem a grupos minoritários para gerar uma sensação de diversidade ou igualdade, sem que exista, efetivamente, um esforço para incluir essas minorias e dar-lhes os mesmos direitos e poderes do grupo dominante.
O Portal Catarinas checou o conteúdo da fala da ministra: em pouco tempo de pronunciamento, Damares mentiu quatro vezes. Além de mentiras sobre os valores investidos em políticas de combate à violência contra as mulheres e sobre planos de prevenção ao contágio da população brasileira pelo novo coronavírus, Damares também omitiu informações reconhecidas internacionalmente pela sua gravidade, como o alto índice de contaminados e de mortes pela Covid-19 no País. O Brasil já contabiliza mais de 247 mil mortos e mais de 10 milhões de infectados pelo vírus.
Além da pandemia, a violência doméstica e os índices de feminicídios e de mortalidade materna são outros problemas que o Ministério de Damares precisaria enfrentar, mas que sequer foram mencionados em seu discurso, como se o governo de Bolsonaro, o qual representa, não tivesse que responder a isso.
O pronunciamento também passou ao largo de uma denúncia feita pelo próprio Conselho de Direitos Humanos da ONU, na qual aponta o Brasil como o país com o segundo maior número de assassinatos de ativistas no mundo, atrás apenas da Colômbia, como publicou Jamil Chade. De acordo com o levantamento do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, entre 2015 e 2019, 174 brasileiros foram executados, o que significa um ativista morto a cada oito dias no Brasil, país responsável por mais de 10% do número de assassinatos desses líderes no mundo no período avaliado.
Acompanhamos o pronunciamento com comentários de Débora Diniz (Anis Instituto de Bioética) e de Maria José Rosado (Católicas pelo Direito de Decidir) – Diniz foi quem, inclusive, chamou a atenção para o uso dos indígenas como token por Damares -, e elencamos, abaixo, as principais mentiras e omissões da ministra em seu discurso perante a comunidade internacional.
DAMARES MENTIU
1) “O governo brasileiro apresentou planos de contingência estruturados nos eixos saúde, proteção social e proteção econômica, visando atender as necessidades de idosos, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, famílias em localidades urbanas vulneráveis, além dos povos e comunidades tradicionais”.
Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) demitiu dois ministros da Saúde, ambos médicos, que indicavam a necessidade de planos de contingenciamento e isolamento social. O governo também ignorou recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), incentivando aglomerações, e o próprio presidente participou de atos de rua.
O presidente e seus ministros também ignoraram a falta de comprovação científica quanto ao tratamento da Covid-19 com cloroquina, hidroxicloroquina e outros fármacos, incentivando seu uso e gastando mais de R$ 90 milhões dos cofres públicos na compra desses medicamentos, ao invés de vacinas.
O atual ministro da saúde, Eduardo Pazuello, até hoje não mostrou um plano de contingência estruturado para o combate à pandemia. Os governos estaduais estão agindo autonomamente por não haver uma recomendação federal. O país sofre colapso no sistema de saúde em várias regiões, tanto pelo aumento do contágio e a falta de leitos, quanto pela falta de equipamentos básicos, como tubos de oxigênio, como foi o caso de Manaus que chocou o País.
Quanto aos povos e comunidades tradicionais – que envolvem povos indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, caboclos, pescadores artesanais, entre outros, conforme a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) – somente em novembro de 2020, após longa mobilização da sociedade civil organizada, o governo federal apresentou um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para Povos Indígenas, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, cumprindo determinação do Supremo Tribunal Federal. No entanto, o plano deixou de fora os indígenas que vivem nos centros urbanos, os quais, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, são cerca de 46% da população indígena no Brasil.
Segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), até a última quinta (18/02), a Covid-19 já havia atingido 144 povos, 34.924 casos, causando 788 mortes.
Quanto aos quilombolas, inicialmente, o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 deixou de fora a população quilombola, uma das mais atingidas pela pandemia no Brasil comparativamente a outros grupos. Novamente, grupos sociais se mobilizaram para inserção dessa população.
Reportagem da Gênero e Número demonstra que nenhum valor do orçamento do Ministério para 2020 foi gasto para a população em situação de rua, assim como foi nulo o valor gasto para a população LGBT+.
2) “Estamos cuidando não só da Amazônia, mas sobretudo de seu povo que, hoje, é no número de mais de 30 milhões de pessoas”.
De acordo com balanço anual do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), de agosto de 2019 a julho de 2020, a maior floresta tropical do mundo perdeu 11.088 quilômetros quadrados de área, o recorde em 12 anos.
Segundo os dados acumulados do Deter-B (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), projeto vinculado ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em 2020, os alertas de desmatamento na Amazônia alcançaram níveis alarmantes – o saldo é de 8.426 km², o segundo maior desde 2015.
O Ministério do Meio Ambiente, comandado por Ricardo Salles, também está em processo de desmonte dos órgãos de proteção ambiental brasileiros (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e Instituto Chico Mendes – ICMBio). Em 02 de outubro de 2020, portaria assinada pelo ministro do Meio Ambiente publicada no ‘Diário Oficial da União’ criou grupo de trabalho para estudar a fusão entre IBAMA e ICMBio. A sociedade civil ficou de fora das discussões.
Além disso, o governo Bolsonaro no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, prevê uma queda nas despesas discricionárias de R$ 107 milhões (29,1%) no orçamento para o Ibama; de R$ 120 milhões (40,4%) para o ICMBio; e de R$ 40 milhões (39,4%) para a administração direta do Ministério do Meio Ambiente. Novamente, organizações da sociedade civil se uniram para exigir que deputados e senadores alterem a proposta.
Toda a “boiada” que passou, relativa ao desmonte ambiental, promovido por Salles durante a pandemia de Covid-19 está compilada em relatório produzido pelo Observatório do Clima.
Além disso, na última semana, Bolsonaro publicou quatro decretos que aumentam o número de armas permitido por cidadão, liberam a posse sem justificativa e afrouxam o controle para a fabricação e compra de munições. De acordo com pesquisadores na área de segurança pública, mais armas em circulação resultam em mais mortes.
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Clique aqui para ler o Decreto nº 10.630.
Assim, contrário ao que quer fazer crer Damares, o Governo de Bolsonaro não está cuidando da Amazônia nem de seus povos. Seja desmantelando os órgãos que protegem a região do desmatamento, seja liberando as armas, os povos indígenas, lideranças e de defensores do meio ambiente contrários à exploração dos territórios da Amazônia estão correndo mais riscos de assassinato neste governo.
3) “Na defesa dos direitos das mulheres, o governo brasileiro executou em 2020 o maior orçamento para a área dos últimos cinco anos, com investimento 5 vezes maior que o ano de 2018”.
De acordo com reportagem da Gênero e Número, com base nos dados do Portal da Transparência, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos utilizou, em 2020, pouco mais da metade do orçamento total para o ano (53%). Com relação às políticas para as mulheres, somente R$ 2 milhões foram gastos, apesar de o site oficial da pasta apontar um investimento de mais de R$ 106 milhões em políticas para mulheres.
De acordo com o Estudo técnico 16/2020, feito pela Câmara de Deputados, na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020 foram autorizados R$ 20,1 milhões para atividades relativas à Casa da Mulher Brasileira em todo o País. Segundo reportagem da Gênero e Número, ao longo de 2020, o ministério gastou somente R$ 66 mil, enquanto haviam sido empenhados cerca de R$ 61 milhões.
Quanto à comparação com os últimos 5 anos, em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM) teve um orçamento de quase R$ 250 milhões e cerca de R$ 121 milhões foram executados. No ano seguinte, o orçamento foi de R$ 111 milhões, com execução de cerca de R$ 78,6 milhões. As informações constam em portal do governo.
4) “Já em 2021, garantimos a vacinação prioritária da população idosa, realizada em paralelo com a dos profissionais de saúde e dos povos tradicionais”.
A demora do governo federal em comprar vacinas, somada à postura negacionista de Bolsonaro quanto a essa ser a única forma de enfrentarmos a pandemia faz com que o País ainda esteja longe de vacinar a população prioritária que soma 77,2 milhões de brasileiras/os, segundo a atualização de janeiro do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação. Até o momento, somente 5,9 milhões foram vacinados contra o novo coronavírus, o que representa 2,83% da população, e somente 7,6% do grupo prioritário.
DAMARES OMITIU
1) “Indígenas, quilombolas e outros povos isolados, por exemplo, foram beneficiados com mais de 700.000 cestas básicas para que se mantivessem em suas comunidades, longe de áreas de contaminação”.
A ministra omitiu o fato de que a distribuição de cestas básicas em muitas das comunidades indígenas, como é o caso dos indígenas do médio Xingu, no Pará, ocorreu por determinação da Justiça e não uma iniciativa do Governo Federal. No 7 de julho de 2020, Bolsonaro vetou parcialmente o Projeto de Lei (PL) 1142 que obrigava o Governo Federal a garantir acesso à água potável, distribuição de cestas básicas e “distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias”. Posteriormente, após pressão popular, o PL foi aprovado e os vetos sancionados, conforme é possível ver no histórico de tramitação da proposição.
2) “O Brasil tem priorizado também políticas públicas e iniciativas direcionadas às crianças e aos adolescentes. Equipamos mais de 500 conselhos tutelares que atuam na ponta, na defesa de crianças e adolescentes vítimas de violência”.
O Brasil possui mais de 5.500 cidades. Em cada cidade deve haver, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pelo menos uma sede do Conselho Tutelar (CT), contendo ao menos quatro conselheiras/os. No município de Florianópolis, capital de Santa Catarina, por exemplo, existem quatro sedes do Conselho Tutelar. Em cidades mais populosas esse número é ainda maior.
Assim, existem, atualmente, 5.956 Conselhos Tutelares no território nacional, de acordo com o próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Considerando esse dado, ao dizer que “equipou mais de 500 Conselhos Tutelares”, Damares assume que sua política ministerial não atingiu nem 9% dos Conselhos Tutelares existentes no País, algo para se envergonhar.
No entanto, a ministra menciona os Conselhos Tutelares por outro motivo. Sua atuação direta junto a assistentes sociais e pessoas ligadas a grupos fundamentalistas religiosos é conhecida e, nas últimas eleições para conselheiras/os tutelares, ela e seus grupos incentivaram a participação massiva de pessoas de religiões evangélicas dentro desses espaços.
Além disso, em agosto de 2020, Damares agiu diretamente, usando seu cargo de ministra e servidores públicos ligados à sua pasta para convencer profissionais que atuavam no Conselho Tutelar de São Mateus, no estado do Espírito Santo, a não encaminharem uma menina de dez anos, vítima de violência sexual desde os seis anos, ao serviço de acolhimento e atendimento de vítimas de violência sexual para a interrupção de uma gestação. Ela prometeu diversos bens materiais para o conselho, inclusive um carro, em troca de os profissionais convencerem a família da menina a não acessar esse direito.
Desmonte das políticas de direitos humanos e recado contra direitos das mulheres
Além das mentiras e omissões ditas durante o pronunciamento de ontem, o nome da ministra tem sido assunto desde a publicação da Portaria 457 por seu Ministério em que decide excluir a sociedade civil da reavaliação do Plano Nacional de Direitos Humanos.
Parlamentares e entidades reunidas após a publicação da portaria protocolaram o Projeto de Decreto Legislativo 16/2021 na Câmara, que visa preservar a participação da sociedade civil na construção do documento.
Juntam-se à resistência às tentativa de desmonte, organizações feministas e parlamentares da Frente Parlamentar Feminista Antirracista do Congresso, que têm se articulado para barrar os retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas com útero.
Ao encerrar seu pronunciamento, Damares diz que quer “reiterar que o Brasil continua firme na defesa da democracia, da liberdade família, e da vida a partir da concepção”. A proposta de alteração na legislação e na própria Constituição Federal, visando incluir o direito à vida “desde a concepção” é uma bandeira deste governo e conta com parlamentares engajados tanto na Bancada Evangélica, que é base do governo, quanto no Centrão, que hoje assume as presidências das duas casas legislativas.
Balanço publicado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) mostra que, mesmo com a pandemia e a urgência sanitária, o Governo Federal não deixou de atuar contra os direitos sexuais reprodutivos das mulheres brasileiras. Em 2020, grande parte das 62 proposições protocoladas no Congresso Nacional partiu do próprio governo e teve como foco a tentativa de mudança na legislação sobre o aborto, no sentido de restringir ainda mais os casos em que é permitido – anencefalia, risco de vida para a mulher ou em decorrência de violência sexual. Antes, a maior parte das propostas vinham do Legislativo.
As distorções, mentiras e omissões deste governo apostam na precariedade da vida das cidadãs e cidadãos brasileiras/os impossibilitadas/os de conferir uma por uma das informações divulgadas em redes sociais e pelo WhatsApp pelos grupos governistas. No entanto, no quesito desmonte das políticas de direitos humanos e dos direitos de mulheres, crianças e da população LBGTQIA+, o recado é explícito. Nem diante da comunidade internacional Damares se furta de dizê-lo em alto e bom som.
* Com colaboração de Inara Fonseca.