Adoção não é solução para justificar a criminalização do aborto legal
Argumento frequentemente repetido por grupos contrários à interrupção da gravidez, tem sido utilizada para sustentar propostas legislativas que buscam restringir ou até mesmo impedir o acesso ao aborto legal no Brasil, como o PL 1904/2024.
“Se não quiser ter o bebê, é só doar em vez de abortar.” Essa frase, frequentemente repetida por grupos contrários à interrupção da gravidez, tem sido utilizada para sustentar propostas legislativas que buscam restringir ou até mesmo impedir o acesso ao aborto legal no Brasil. Exemplos são o Projeto de Lei 1904/2024, que propõe equiparar o aborto após 22 semanas de gestação em casos de estupro ao crime de homicídio, e a Proposta de Emenda Constitucional 164/2012, que visa garantir a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção — o que, na prática, proibiria as situações hoje autorizadas em lei.
No entanto, esse argumento ignora direitos garantidos pela legislação brasileira, como o direito ao aborto legal e seguro, e desconsidera os impactos negativos que a gestação forçada tem na saúde física e mental das pessoas gestantes, especialmente em casos de violência sexual.
Tal justificativa para a manutenção da gestação torna-se ainda mais insustentável quando analisamos a realidade da violência sexual no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 revelam um cenário alarmante: a maioria das vítimas são meninas (88,2%), negras (52,2%) e têm até 13 anos (61,6%). Além disso, os abusos são frequentemente cometidos por familiares ou pessoas conhecidas (84,7%) e ocorrem, na maioria das vezes, dentro das próprias casas das vítimas (61,7%).
Segundo Bárbara Cunha, psicóloga e professora da Faculdade Vidal de Limoeiro, a gestação indesejada resultante de uma agressão sexual representa uma segunda forma de violência para as vítimas. “No caso de crianças e meninas, essa situação torna-se ainda pior, considerando que se trata de um grupo ainda mais vulnerável”, destaca.
Estudos como “Niñas Madres. Embarazo y maternidad infantil forzada en América Latina y el Caribe”, do Cladem, mostram que forçar meninas a manter uma gestação indesejada intensifica o trauma, compromete suas vidas e prolonga o sofrimento físico e emocional.
Bárbara Cunha, que se dedica a pesquisar temas relacionados aos direitos sexuais, justiça reprodutiva e maternidade, frisa que, além dos danos físicos causados por esse tipo de violência, a vítima também experimenta sentimentos de vergonha, medo, culpa, além do constante julgamento a que é submetida.
“Muitas dessas agressões sexuais são realizadas em contexto intrafamiliar e as pesquisas apontam que nas situações em que a vítima possui algum grau de conhecimento com o agressor, muitas vezes, tendem a ser mais culpabilizadas do que aquelas que são vítimas de estupro por desconhecidos”, ressalta.
Além disso, segundo a pesquisadora, aquelas que engravidam em decorrência do estupro podem desenvolver estresse pós-traumático, isolamento social, problemas relacionados à sexualidade, tentativa ou consumação de suicídio, depressão, comportamentos de risco, abuso de substâncias, entre outros.
“A criança, nesse período, está em fase de desenvolvimento e socialização, seja com seus pares, no ambiente escolar ou na comunidade. Crianças obrigadas a assumir responsabilidades associadas à gravidez e à maternidade prematura podem perder oportunidades cruciais de desenvolvimento social, emocional e educacional”, reforça.
Crianças não deveriam gestar e parir
Entre 2020 e 2023, 63.237 meninas entre 10 e 14 anos deram à luz no Brasil, segundo um estudo da Rede Feminista de Saúde, com base em dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc – Datasus). Apenas em 2022, foram registrados 14.293 nascimentos nessa faixa etária, o que equivale a uma média de 39 gestações por dia. No ano seguinte, dados preliminares indicaram 13.909 partos.
Todas essas gestações são classificadas como resultado de estupro de vulnerável, conforme a legislação brasileira, que determina que qualquer relação sexual ou ato libidinoso com menores de 14 anos é crime, independentemente de existir qualquer tipo de consentimento das vítimas para a prática do ato.
Gravidezes em idade precoce apresentam sérios riscos à saúde física. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), meninas que engravidam ainda crianças ou adolescentes enfrentam maior probabilidade de morrerem antes, durante ou após o parto. Além disso, estão mais suscetíveis a complicações graves, como anemia, pré-eclâmpsia, eclâmpsia, diabetes gestacional, infecções e hemorragias severas.
Um exemplo trágico dessa realidade ocorreu em Goiás, onde uma menina de 12 anos faleceu em 18 de julho de 2022, após oito dias internada no Hospital Estadual da Mulher (HEMU). Ela morreu devido à síndrome Hellp, uma complicação grave da pré-eclâmpsia. Uma morte evitável, que poderia ter sido prevenida pela garantia do direito ao aborto.
A mercantilização da vida
Além de todo o contexto já exposto, a solução defendida pelo movimento antiaborto desconsidera outro ponto crucial: as fragilidades e desafios do sistema de adoção nacional.
A advogada Jussara Marra, presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad) e membra da diretoria do Grupo de Apoio à Adoção em Uberaba (Graau), destaca a escassez de pessoal capacitado e a falta de identificação com o tema da adoção como grandes desafios para o sistema.
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A entrevistada aponta que, embora o país possua uma legislação avançada, muitos processos acabam sendo negligenciados, resultando em crianças que, ao se tornarem adolescentes, permanecem em instituições de acolhimento sem receber o tratamento adequado.
Atualmente, mais de 30 mil crianças e adolescentes estão abrigados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desses, 4.884 estão habilitados para adoção, enquanto 35.872 estão na fila para adotar. Esse desequilíbrio entre o número de pessoas interessadas em adotar e as crianças que esperam por um lar reflete os estigmas e preconceitos ainda presentes na sociedade. Características fenotípicas, cronológicas e genéticas continuam sendo fatores determinantes para a maioria dos pretendentes à adoção.
A realidade é que os defensores pró-vida se concentram apenas nas vidas que ainda não nasceram, ignorando as dificuldades enfrentadas pelas crianças e adolescentes que já estão no mundo, muitas vezes em situações de abandono e vulnerabilidade.
Mãe de um menino negro, que chegou à sua vida por meio da adoção aos 8 meses de idade, Jussara Marra vê o mecanismo como uma forma de mercantilização da criança, voltada para a satisfação do desejo do adulto. Ela critica a visão simplista de que a adoção seria facilmente resolvida, partindo da premissa de que há muitas pessoas querendo adotar.
Para Marra, essa perspectiva ignora o complexo histórico que a criança carrega. “Não se leva em conta todo o trajeto que essa criança percorre, desde as reminiscências da gestação até a realidade que ela enfrentará quando decidir descobrir sua própria história, entender os motivos pelos quais foi adotada e lidar com tudo o que isso implica”, afirma.
Maternidade compulsória e o julgamento sobre a escolha da mulher
As escolhas feitas pelas mulheres estão constantemente sujeitas a avaliações e julgamentos, mesmo quando estão em conformidade com os valores defendidos por grupos ultraconservadores. Um exemplo marcante disso foi o caso da atriz Klara Castanho, em 2022. Após ter sua privacidade exposta, ela revelou publicamente que havia sido vítima de estupro e que descobriu a gravidez já na reta final da gestação.
Mesmo tendo o direito de realizar um aborto legal, optou por fazer a entrega direta para adoção, seguindo todos os trâmites legais. Trata-se de um ato legítimo, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que permite à mãe entregar o bebê para adoção por meio de um processo assistido pela Justiça.
O procedimento deveria ter sido sigiloso, mas seu direito foi violado quando as informações vazaram para a imprensa, desencadeando dezenas de ataques misóginos nas redes sociais. “Como mulher, eu fui violentada primeiramente por um homem e, agora, sou reiteradamente violentada por tantas outras pessoas que me julgam”, desabafou a atriz em uma carta aberta divulgada na época.
A psicóloga Bárbara Cunha destaca que o caso de penalização social enfrentado pela atriz expõe a fragilidade do argumento frequentemente utilizado por opositores ao aborto, que sugerem a entrega para adoção como alternativa. Cunha observa que, mesmo seguindo exatamente essa sugestão, a atriz enfrentou intensa repercussão midiática, foi exposta, culpabilizada, desmoralizada e submetida a diversas formas de violência.
Klara Castanho, vista como alguém privilegiada, com recursos financeiros, foi questionada sobre o motivo de não ter ficado com a criança. No entanto, segundo observa a psicóloga, muitos se esquecem de que a criança foi gerada a partir de uma violência sexual, e que ela não teve a liberdade de escolher a gestação, mas foi forçada a isso.
“Esse caso só demonstra o quão frágil esse argumento é, ele não se sustenta nem mesmo para as pessoas que o defendem. Isso porque a pauta desse argumento não é sobre entregar a criança para adoção, mas, sim, sobre o papel da maternidade na vida da mulher”.
A profissional reforça ainda que a norma da maternidade exerce uma influência social extremamente forte, sustentada pela crença de que a realização plena da mulher está associada à maternidade. Segundo ela, a mulher é frequentemente idealizada como símbolo de fecundidade, maternidade e pureza, e qualquer desvio ou não cumprimento dessa norma do que é considerado ser uma “boa mulher” pode gerar consequências sociais graves, como a violência de gênero e a restrição dos direitos sexuais e reprodutivos.
A psicóloga Alessandra Almeida, conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), também chama atenção para a imposição social da maternidade compulsória. “É preciso não só gestar, a gestação é compulsória, mas também é compulsória a criação dessa maternagem. Não é suficiente apenas gestar, mas é importante que a mulher se constitua como essa mãe ideal, essa maternidade ligada à constituição de um amor que abdica de tudo, um amor que abdica da sua própria vida, um amor quase puritano”, salienta Almeira.
Como analisa a profissional, mulheres que não desejam desempenhar esse papel e se posicionam a favor do aborto são frequentemente marginalizadas pela sociedade patriarcal.
“Assim como as mulheres que entregam seus filhos para adoção, aquelas que rompem com o papel de mãe tradicional são marginalizadas. Na construção desse papel de gênero feminino, especialmente para mulheres cis, em uma sociedade misógina e patriarcal, essas características são evidentes. Mulheres que abandonam suas crias ou deixam os filhos sob os cuidados dos pais são rotuladas como “más” ou “ruins”. Em resumo, a mulher nunca está certa e será sempre julgada, independentemente de suas escolhas”, conclui.
Esse conteúdo é apoiado pelo Fundo de Ação Urgente da América Latina e Caribe.