Com os meus ainda breves anos nos movimentos sociais, em Itajaí, de vez em quando, é comum que eu pare para pensar: afinal, pelo que estamos lutando? Ter em vista o horizonte para onde estamos caminhando é fundamental para que possamos seguir. Em Santa Catarina, o conservadorismo, por vezes, levanta uma neblina densa sobre os olhos, então a clareza da nossa organização se coloca ainda mais como necessidade coletiva. Pautar o agora é uma série de entrevistas com organizações catarinenses do Movimento LGBT para dialogar entre as nossas sobre o ativismo que temos construído aqui, com a intenção de lançar para quem lê a pergunta: e aí, como tem sido?

No dia 19 de junho, à distância, entrevistei Alexandre Bogas Fraga Gastaldi e Fabrício Bogas Gastaldi, que dividem a vida, os sobrenomes e coordenam juntos os trabalhos da Acontece Arte e Política LGBTI+. A associação, criada no dia 22 de junho de 2013, em Florianópolis, completou dez anos de atividades este ano. Nesta década de militância em defesa dos direitos humanos, com foco em sexualidade e gênero, eles têm atuado principalmente através das práticas de advocacy e accountability. Em palavras mais simples, têm participado da construção de políticas públicas e da sua fiscalização.

Na lista das tantas contribuições da Acontece nesse tempo, está a publicação anual do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, tarefa de relevância nacional que faz em parceria com a Antra e a ABGLT, desde 2020. E, para falar de vida, fazem a Diversa Cultural LGBTI+, uma feira para promover e divulgar a potência cultural da nossa população — realizada, geralmente, durante a Parada de Florianópolis.

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Ato Fora Feliciano, em Florianópolis, em 2013 | Crédito: reprodução.

No papo, entre outros assuntos, comentamos sobre os dez anos da entidade e a conjuntura política do Brasil durante esse período; falamos sobre o Conselho Municipal de Direitos LGBT de Florianópolis, o primeiro e único do estado até hoje; e discutimos as dificuldades que pessoas LGBTs enfrentam quando se trata de participação social.

Joá Bitencourt: A Acontece comemora dez anos este mês. Eu gostaria de começar escutando a leitura de vocês sobre esse marco.

Alexandre Bogas Fraga Gastaldi: A Acontece nasceu em 22 de junho de 2013, quando a gente viu a necessidade, e a nossa  vontade. Viemos de outras cidades naquele período, nos mudamos para Florianópolis em 2012, eu e o Fabrício. A gente sempre foi muito ativo no movimento social, até mesmo se conheceu nesse processo. Naquele momento, a gente fundou, junto com outras amigas, a Guilhermina Cunha e a Carla Ayres, a Acontece Arte e Política LGBTI+.

Como o próprio nome já trata, a gente, por gostar muito e trabalhar na área de cultura, o Fabrício por ser formado em Artes Cênicas, agora com mestrado em Teatro, tem essa pegada artístico-cultural. Temos feito, nos últimos anos, o Diversa, que é a feira cultural LGBTI+, que é o nosso maior evento. A gente já teve também aula de tango, de desenho, nu artístico — que a gente trabalhou um período com pessoas voluntárias e foi bastante interessante — cinema, teatro.

E também fazemos a parte política, que é a incidência direta nas três esferas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não só localmente, em Florianópolis, mas com abrangência estadual e nacional. E participação direta nos conselhos de direitos. A gente participou desde a fundação — da criação da lei até a participação — do Conselho Municipal LGBT. Foram oito anos de luta do movimento social para conseguir aprovar a lei do Conselho. A gente participou de quatro anos dessa luta, desde quando a gente veio para cá até ser aprovada em 2016.

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4ª Marcha contra a Homofobia, em Brasília, em 2013 | Crédito: reprodução.

E, depois, o Conselho Estadual de Direitos Humanos também, que foi aprovado perto daquele mesmo ano. A gente vem alternando um pouco nesse sentido. No Conselho LGBT, a gente está desde a sua origem, e sempre continua renovando a participação. Nos últimos dois anos, que terminam na semana que vem, eu estava como presidente do Conselho LGBT aqui de Florianópolis. Também termina agora. Teve a eleição na semana passada do Conselho Estadual de Direitos Humanos, onde o Fabrício está como presidente nesses últimos dois anos, também pela Acontece, e agora, quando tiver atividade de reunião em julho, aí sim a gente passa a cadeira. Dessa vez, a gente não vai continuar diretamente como conselheiros, mas sim na Comissão LGBT que o Conselho Estadual tem. Isso é um pouco do histórico resumido, para a gente poder pensar. Mas a gente trabalhou arduamente na construção das conferências municipais, estaduais e nacionais desde 2011, mesmo um pouco antes da fundação da Acontece, que foi em 2013.

Atuamos na criação do Plano Municipal de Políticas Públicas LGBT, aqui em Florianópolis. Ele foi reescrito. É de 2012, aí ele foi reescrito, conversado, analisado em 2014 e 2015, na Conferência Municipal. Nós fizemos várias reuniões com as secretarias e, depois, na Conferência Municipal, a gente aprovou essa segunda versão.

Ficamos de 2015 até 2019 lutando para a aprovação dele, até que ele foi aprovado via decreto do prefeito na época e a gente continua lutando para que ele seja implantado. Já estamos em 2023, então mais quatro anos se passaram. Quatro anos para aprovar, quatro anos com ele aprovado e ainda nada efetivo acontecendo. A gente continua firme como Acontece batendo nessa tecla.

A gente optou por não ser uma ONG assistencialista — uma opção política nossa. A gente sabe que não vai dar conta da cidadania LGBT em todos os sentidos. Quem tem que fazer isso para nós é o governo, é o Legislativo, o Executivo, o Judiciário. Das suas formas, dentro das suas esferas, cada um tem que se colocar a respeito. A gente trabalha incansavelmente para esse processo, e não desiste nesse sentido de bater na tecla que é sobre políticas públicas.

A gente tem essa linha desde o nosso nascimento, sem desmerecer quem faz a parte assistencialista. Entendemos que é urgente, mas optamos por colocar a nossa energia nessa parte da construção da política pública, da cobrança, da insistência para que esse processo aconteça, porque assim ele realmente vai funcionar mais e melhor, atingindo muito mais gente.

Nos últimos anos, não faltaram análises de conjuntura sobre o desmonte das políticas públicas no Brasil, principalmente se analisada a falta de assistência à nossa população. Indo um pouco mais longe, 2013, quando surgiram, foi um momento paradigmático para os movimentos sociais brasileiros, com as Jornadas de Junho, que também completam uma década em 2023. Gostaria de escutar a versão de vocês sobre esse momento.

Fabrício Bogas Gastaldi: Existem umas questões muito sensíveis quando a gente fala de junho de 2013. Temos, por um lado, um viés acadêmico que vai analisar o que aconteceu ali e tem um lado que eu, enquanto militante, vejo muito enviesado, que é dizer que foram movimentos espontâneos, quando, na verdade, tudo isso culminou no golpe da Dilma, três anos depois.

Mas, sobretudo, como a manipulação das massas, através das redes sociais, analisando hoje, aconteceu. Como as pessoas foram estimuladas por uma coisa que se dizia popular e, quando você chegava na manifestação, você não podia ter bandeira política, não podia defender uma pauta política. Era uma pauta xis, as pessoas eram agressivas com quem estava com uma camiseta vermelha ou quem tinha uma pauta definida.

Depois de fatos como a liberação de documentos pelo Assange, o escândalo de dados do Facebook e da Cambridge Analytica, a espionagem do Governo dos Estados Unidos à Presidência da República do Brasil, a gente começa a ligar os pontos. A gente percebe que esse movimento, que pareceu algo popular puxado pelos movimentos sociais, nada mais foi do que uma grande manipulação das massas contra a própria vontade do povo, que é ter uma vida melhor, que é ter mais acesso à saúde, que é ter mais acesso a direitos.

Tanto que, de 2013 para cá, nós tivemos um decaimento no sistema de garantia de direitos. A gente perdeu direito trabalhista, direito de aposentadoria, direitos ambientais. No meu entendimento enquanto militante, se a gente analisar friamente, começa a perceber elementos do imperialismo na manipulação das nossas pautas.

No decorrer dos anos, acabou surgindo um MBL da vida, com pessoas que parecem com a gente, mas que defendem uma pauta completamente contrária à participação, ao controle social, aos direitos humanos, aos direitos sexuais e reprodutivos. Nós temos pessoas desses movimentos que são LGBTs, que são negras, que são mulheres e que defendem pautas completamente contrárias às nossas.

Do meu ponto de vista, um pouco mais tranquilo hoje, conseguindo analisar esse momento histórico, eu percebo o quanto nós fomos facilmente manipuladas pelas redes sociais. Muitas de nós, enquanto militantes e pessoas que acreditam na democracia, morreram para que o Brasil tivesse partidos políticos. Muitas companheiras deram a sua vida para defender as agremiações políticas, a democracia e o voto direto. E, de repente, estavam lutando contra isso.

Eu tenho muita dificuldade em conversar e entender pessoas que não querem partido, porque são pessoas que desconhecem a trajetória dos direitos e da participação social no Brasil. Nós temos milhares de desaparecidos da ditadura que foram pessoas que defendiam a democracia, que defendiam ter partido, ter uma ideologia. E, hoje, esse discurso acaba sendo utilizado por uma nata meio nazista, meio fascista, evidentemente à nossa maneira.

Lembrando que isso é uma opinião minha enquanto militante, não é uma opinião da organização, porque a gente nunca fez esse debate. Para mim, foi um grande engodo. 

Quando se fala em junho de 2013, muito se fala em cooptação de pautas. E quando a gente discute o movimento LGBT e o capitalismo no estágio atual, a gente também fala sobre isso. Os nossos marcos históricos, mesmo que questionáveis — como a Revolta de Stonewall, que marca o Dia do Orgulho — têm um caráter de transformação radical. Vocês acreditam que é possível manter o horizonte revolucionário?

Fabrício: A nossa pauta está centrada, querendo ou não, no corpo. A nossa pauta está centrada no corpo, nas práticas sexuais, nas possibilidades que a gente tem além do que é estabelecido. Primeiramente, pela Igreja e, em segundo lugar, pelo Estado. Entendendo o momento do capitalismo que a gente está, é preciso ter sempre em mente que a gente só pode ser revolucionária se incluir na nossa ação as transversalidades: corpo, raça, gênero e classe social. Uma luta que não considera a classe social e não considera os aspectos do capitalismo na sua magnitude tem a tendência não só de ser uma pauta cooptada, mas de ser uma pauta vazia, descolada da realidade. A gente, enquanto instituição, sempre teve esse horizonte de entender que precisa de políticas públicas e que precisa do Estado, mas a gente precisa estar no Estado.

A gente precisa de vereadoras LGBTs, de senadores LGBTs, de legisladores, de prefeitos, de governadores, de presidentes LGBTs, ou de pessoas que não necessariamente sejam LGBTs, mas tenham em si a nossa causa.

Esse é um dos perigos do mal-entendimento do conceito de lugar de fala. A gente também tem que entender que o lugar de fala não é um lugar para você ser o centro do mundo e o centro da razão, porque não é. As pessoas LGBTs existem em relação às outras pessoas. Da mesma forma que eu, pessoa branca, tenho que lutar pelo fim do racismo, as outras pessoas também têm que lutar pelo fim da LGBTfobia.

O processo revolucionário passa por a gente saber que precisa das outras pessoas. Nós precisamos estar unidas com as mulheres, nós precisamos estar unidas com os trabalhadores do campo e da cidade. Nós precisamos estar unidas, trocando experiências e sabendo que a gente não vai destruir o capitalismo, mas a gente vai fraturar o capitalismo.

A gente não quebra um muro da noite para o dia. A gente tem que ir fraturando, quebrando aos pouquinhos. Nós, enquanto movimento, temos conseguido isso. Em alguns momentos, a gente consegue isso estando muito mais alinhadas com o poder econômico, e aí ok. Se a empresa quer dar dinheiro para nós, mesmo a gente sabendo que ela é uma baita de uma sacana, a gente tem que fazer a sacana em dobro. A gente vai pegar o seu dinheiro e depois vai tacar na sua cara que a senhora está fazendo o pinkwashing.

A gente tem que entender que o capitalismo quer contar a sua própria história. Stonewall não foi um marco. Stonewall é importante, aconteceu no centro do capitalismo, mas é um grande engodo. Quais são as bichas lá nos Estados Unidos que têm acesso? Que podem ser? São as que têm dinheiro. Essa cidadania baseada no consumo não nos interessa.

Nos interessa a verdadeira revolução. Em 1914, a União Soviética tirou da Constituição qualquer menção à Igreja e contra as pessoas homossexuais, quando a gente vai atrás dos fatos, foi a primeira vez na história contemporânea que se teve uma legislação que não punia pessoas LGBTs. A primeira vez foi na criação da União Soviética. É óbvio que depois o Stalin vai entrar e retroceder. Mas a primeira vez que a gente tem uma legislação que inclui pessoas LGBTs — com outros termos naquele momento, mas que retira todo processo discriminatório da Constituição e do Código Penal — foi lá. Hoje, a Rússia tem uma outra visão.

Mas, quando a gente conhece a história, vai ver, por exemplo, pessoas aqui no Brasil que já tinham uma luta por liberdade sexual, por ser travesti, por ser bicha, por ser marica. E hoje a gente está perdendo a nossa noção da construção histórica para substituir as bichas por pessoas queer, o que não faz nenhum sentido na nossa realidade.

Não estou dizendo que as pessoas queer não possam existir, o que eu estou dizendo é que, muitas das vezes, as nossas pautas são cooptadas dentro do próprio movimento. A gente tem uma série de nomenclaturas e pautas que, na prática, são muito mais um PDF da academia do que uma demanda da nossa comunidade.

Se a gente olhar para a nossa história, tem questões que a gente ainda não superou. Não superamos o HIV/Aids, nem as questões de saúde sexual e reprodutiva em nenhum âmbito da comunidade LGBT, principalmente entre homens gays. Hoje em dia, todas as pessoas podem fazer piadas com homens gays, inclusive a própria comunidade. A gente tem uma série de reproduções do patriarcado dentro da nossa comunidade, que também vão interferir na luta. Como a gente vai ser revolucionário se o nosso horizonte é um PDF academicista? Para ser revolucionário, a gente tem que estar com os pés no chão.

Tem que saber o que está acontecendo na comunidade, que a gente tem problemas de saúde a enfrentar, problemas ainda no casamento. Até pouco tempo atrás, as pessoas ainda tinham dificuldade de se casar em Florianópolis, por exemplo. Uma lei que já existe, que tem decisão judicial e, mesmo assim, as pessoas têm dificuldade em se casar. As pessoas têm dificuldades em ter acesso à Saúde e à Assistência Social, dentro dos programas do governo, e tem gente querendo que a pauta seja uma outra coisa, quando a gente ainda não resolveu as questões fundamentais de existência e sobrevivência da nossa comunidade. A gente ainda tem preconceito de HIV/Aids fortíssimo, tanto fora quanto dentro da comunidade, e não conseguiu resolver isso. A gente não conseguiu resolver também as questões ligadas a estar nos espaços políticos. Em junho de 2013, supostamente, foi todo mundo para a rua, mas passaram os anos e as casas legislativas continuam com homens brancos ricos com mais de 50 anos. Não teve uma mudança, teve um retrocesso.

A Dilma entrou com um Congresso extremamente conservador, depois, com o Bolsonaro, piorou e agora, com o Lula, piorou mais ainda. Mesmo tendo Erika Hilton, mesmo tendo alguns nomes, o cenário é péssimo, porque a gente não ocupou a política. A gente até ocupou um pouco a universidade, mas foi para falar das teorias que são produzidas no centro do capitalismo. Não conseguimos produzir uma teoria falando das bichas, das travestis, das sapatões. Uma teoria que leve em consideração o nosso território, a nossa contemporaneidade. Para se manter revolucionário, a gente tem que se manter olhando para a gente, porque, em um horizonte de dominação tão grande, o nosso referencial continua sendo o centro do capitalismo, continua sendo um processo digitalizado, fake, mentiroso, em que todo mundo é feliz. E a gente não conseguiu resolver a questão do suicídio entre a nossa população. Nós temos um dos maiores índices de suicídio entre pessoas LGBTs, de uso de medicamentos controlados, que têm finalidades psiquiátricas. A gente não consegue resolver essas questões e está sempre olhando para a Grande Maçã como referencial.

Agora, a gente tem drag, tem RuPaul’s Drag Race, só que a gente tem Léo Áquilla há dez mil anos. Tem Silvetty Montilla, Miss Biá. A gente tem uma cultura LGBT muito forte no nosso país, mas estamos sempre buscando lá fora, porque o capitalismo faz com que o nosso referencial de vida se desloque para lá. Para ser revolucionário, a gente tem que manter o olho nos nossos umbigos e entender que a nossa luta só vai dar certo se a gente estiver unidas com os outros movimentos.

Nós temos que estar unidas com a luta antirracista, com os outros trabalhadores e saber qual é o momento que a gente tem que bater o pé e em qual momento a gente tem que ceder. Falta parcimônia para nós no movimento, porque a gente quer tudo aqui e agora e a gente nunca consegue nada. A gente não tem nenhuma lei LGBT, todas são decisões judiciais, então ainda falta avançar muito.

Alexandre: A gente só vai conseguir avançar quando tiver políticas de Estado, quando o governo realmente assumir isso. E quando isso acontece? Quando um prefeito, um governador ou um presidente, dizendo diretamente dos cargos executivos, quando um desses realmente assume que vai fazer algo. Se a gente pegar exemplos práticos, em outros estados, lembrando quando o Haddad foi prefeito em São Paulo, quantas políticas públicas avançaram e foram criadas naquele momento? O Transcidadania, por exemplo, entre várias outras coisas que aconteciam. Ele criou uma coordenação específica, com funcionários, com orçamento para isso. Só vai funcionar e avançar quando for assim, senão a gente continua nisso. Uma negação da política.

Aqui em Florianópolis, apesar de existir o Plano Municipal desde 2012, efetivamente, como decreto de lei — dizendo o que fazer, quais ações tomar em cada situação — e uma vontade maior, atualmente, do prefeito Topázio, no sentido de ele ter ido em reuniões, escutar, receber as pessoas, nada efetivo ainda aconteceu. Em janeiro, quando teve a reforma administrativa, foi criada a Coordenadoria de Direitos Humanos, onde eles criaram a Assessoria de Políticas Públicas para Pessoas LGBTQIA+. Hoje, a Selma Light está nesse papel, assumiu recentemente. Mas não tem orçamento, não tem dinheiro para aquilo. Ela não consegue trabalhar porque é só ela no papel, na verdade.

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Ação do projeto A Hora é Agora: ações híbridas de saúde e qualidade de vida, em parceria com a Fiocruz | Imagem: reprodução.

Fabrício: É difícil porque a nossa comunidade nega a política. Não porque quer, mas porque a gente é estimulado a isso. A gente é estimulado a participar das Jornadas de Junho sem partido, sem discussão política. É vazio do ponto de vista político-pragmático, completamente vazio, e esse vazio permanece até hoje. A população negra é mais de 50% do Brasil, a população de mulheres também, e cadê a representatividade dessas pessoas? Elas não estão. Por quê? Porque a gente nega a política.

A gente nega esse espaço como um espaço legítimo e revolucionário. É óbvio que a Social Democracia tem os seus problemas, mas você imagina se nós tivéssemos um Senado, uma Câmara com a maioria das pessoas do povo? A coisa seria outra. Por que é sempre o mesmo fazendeiro latifundiário matador de pessoas indígenas que ganha a eleição? Ele não nega a política, mas faz um discurso antipolítico. A gente tem pessoas da nossa comunidade negando a política. A gente lutou tanto tempo para ter partido, para poder discutir as coisas e, agora, está dizendo que não quer mais? Que quer um onguismo? Porque as ONGs, de alguma maneira, também têm um papel de culpa. As ONGs estão querendo ocupar um espaço que é da Assistência Social. Não tem que ter ONG administrando hospital ou creche. Esse não é o nosso papel. O nosso papel não é o papel que o Estado tem que fazer, e isso a nossa instituição tem muito claro. A gente tem que cobrar. O nosso papel enquanto organização é o controle social. Quando a gente aceita a política como um meio de melhorar a nossa vida, isso é revolucionário, porque é contra-hegemônico.

Construir politicamente é demorado. A revolução não é do dia para a noite. Existem passos para construir e etapas para serem ultrapassadas, porque as coisas não são imediatas. A gente não constrói uma casa do dia para a noite. Precisa planejar, cumprir todas as etapas, o passo a passo. A revolução dos direitos humanos é justamente isso: cada vez conquistar mais territórios e pessoas e ir ampliando.

Falando em processos demorados, gostaria que vocês entrassem em mais detalhes sobre a construção que têm feito nos conselhos de direitos que estiveram à frente nos últimos anos, o Conselho Municipal de Direitos LGBT de Florianópolis e o Conselho Estadual de Direitos Humanos.

Alexandre: O Conselho Municipal de Direitos LGBT nasce em 2016, oficialmente. A gente toma posse nesse período. A cada dois anos, tem uma nova eleição da sociedade civil, quando é trocada a diretoria. A dificuldade nesse período todo foi criar todo o aparato jurídico para que ele funcione corretamente. Do Conselho em si, a gente está com tudo em dia. A gente conseguiu finalizar todo o processo burocrático que precisa para ele funcionar, com a criação do nosso regimento interno. Através do regimento, a gente consegue criar sanções, fazer outras questões, tanto no município quanto internamente, quando uma secretaria não participa e assim por diante. A gente conseguiu também criar as resoluções que criam as comissões permanentes, que estão dentro do regimento, mas detalhando o que cada comissão faz. São quatro: de Instituições LGBTI+, de Combate à Violência, de Normas e Legislações e a de Implementação e Acompanhamento do Plano Municipal LGBT.

O desafio é fazer com que elas funcionem, porque as reuniões são uma vez por mês e a gente precisa que os conselheiros participem dessas comissões, discutindo essas situações, para que a gente leve para assembleia os encaminhamentos. Porque em uma ou duas horas de assembleia não é onde vamos decidir as coisas, ali é mais para encaminhar, conversar e referendar com todo mundo. E as comissões não funcionam, porque dependem do tempo das pessoas.

De certa forma, o movimento social sempre se esforça em fazer parte, tanto das assembleias quanto das comissões, mas o governo é sempre ausente. Nós temos dez instituições da sociedade civil e dez secretarias do governo municipal. A média de participação é de duas a três secretarias, de dez que teriam que participar. Fica muito centrado na diretoria, no que a presidência do Conselho faz. Pelo menos pela minha experiência, fica concentrado em poucas pessoas. A sociedade civil se esforça para fazer o que está dentro do possível, o pessoal do governo cumpre tabela. Alguns auxiliam mais, outros menos, mas a experiência do governo não passa da reunião mensal. O pessoal não pega para fazer.

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Lançamento do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil 2022, realizado com o apoio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e da Secretaria Nacional de Direitos de Pessoas LGBTQIA+, em maio | Crédito: reprodução.

A gente definiu, na Comissão do Plano Municipal, prioridades pela Acontece. Às vezes, o Conselho não funciona da forma como deveria, então, pela ONG, em 2021, a gente fez uma revisão do Plano Municipal, que é de 2015, aprovado em 2019. Na revisão, a gente tirou duas prioridades de cada eixo. Fizemos isso, entregamos ofícios, conversamos. Tentamos com a Secretaria de Educação a possibilidade de fazer formações continuadas, porque foi uma das demandas mais tiradas, e não tem, não vai, não tem orçamento, as pessoas não têm tempo. O pessoal da Secretaria participa da reunião, mas se você pede para eles fazerem, eles não fazem. Essa é a experiência.

A gente não desiste como Acontece porque esse é o único caminho. Se for para gastar a energia com algo, é nesse caminho que a gente está fazendo, mas é cansativo e desestimulante esse processo. A Selma entrou nos últimos três meses e ela não tinha nem internet no lugar, não tinha computador para ela trabalhar e outras dificuldades do dia a dia, do processo.

Fabrício: Eu vou falar a partir da minha experiência. Eu já estive no Conselho LGBT e, agora, ainda estou presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos. A questão é que política sem recurso é perfumaria, em qualquer área. Não vai ter direitos humanos se a pasta não tem previsão no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias ou na Lei Orçamentária Anual, que são essas coisas burocráticas que nós temos que saber. Se não está previsto lá, não tem recurso, é perfumaria. Não estão a fim de mudar.

Nós tivemos um governo como o do Moisés, bombeirão. Ele é bem bonito, o ex-governador, mas era um lixo. O Jorginho Mello é o quê? Qual é o interesse dele em direitos humanos? Toda semana tem gente sendo resgatada de trabalho escravo em Santa Catarina. O estado mais rico do Sul do país, com maior índice de qualidade de vida, tem pessoas sendo escravizadas. Provavelmente, deve ter uma cebola ou uma batata na sua casa que foi colhida por uma pessoa escravizada. A gente não precisa dizer que os trabalhadores lá na China foram escravizados para fazer o iPhone. Não, a nossa batata e a nossa cebola vieram de mão de obra escravizada.

Se dentro dos conselhos, a gente não entende a burocracia e não entende como o Estado funciona, a gente perde o fio da meada. Precisamos batalhar para que sejam aprovadas nessas leis — na LOA, na LDO, no PPA — para que tenham recursos para as pessoas LGBTs, para as mulheres. Mas aí o que acontece? Quando essas coisas são votadas, cada um fica disputando o seu para ver quem leva um pedacinho, e aí divididas a gente é menos.

Alexandre: A gente já fez isso estadualmente também, mas consegue ter mais incidência em nível municipal. O Executivo, que é o prefeito ou o governador, manda a LOA todo o ano e nunca coloca nada LGBT. A gente faz um trabalho dentro da Casa Legislativa, com os deputados e com os vereadores, para colocar emendas LGBT. A gente já colocou várias vezes emendas e nunca são aprovadas. Fizemos todo o caminho, está tudo correto.

Eu cheguei a fazer um estudo na época, na própria Secretaria da Fazenda, que cuida de todo o orçamento municipal. Eu cheguei, fiz reunião, entrevista, conversa e treinamento para entender como é que eu faço uma emenda, como é que coloco todos os detalhes para não ser negada. Tecnicamente, estava tudo certo com as emendas, mas politicamente não. Seria só o prefeito ou o secretário da Casa Civil dizer para que aprovassem que eles aprovariam. Não tem nada técnico que a gente possa fazer, é o caráter político. E a gente nunca avança, entendeu? Por nenhum dos lados.

Fabrício: Mas é justamente isso. Nós precisamos entender que os conselhos também são espaço de disputa. Porque a gente está lá, onde tem os representantes do governo, e eles têm uma agenda. Eles sabem que estão ali, às vezes, só para encher linguiça. Mas por que isso acontece? Porque nós não temos força política. E a gente precisa saber disso, porque aí parece que o Jorginho não faz porque ele não quer. Não, ele não faz porque nós não temos força política. Se a gente colocar qualquer proposta LGBT na Alesc, por exemplo, vai chegar lá e ser detonada.

Nós precisamos entender que existem forças políticas e que fazer política parte dessa compreensão. Se a gente acha que vai aprovar as coisas sem conversar, sem eleger os nossos, nós não vamos conseguir, tanto que é muito nítido. É só corte de direitos, porque nós não temos pessoas lá. Nós não conseguimos fazer articulação política, nem no secretariado nem nas casas legislativas. Atuar nos conselhos, além de ser muito desgastante, é também a gente perceber a real política, como a coisa se dá na prática. A gente precisa estar mais nesses espaços, estar mais nesses locais de disputa de narrativa, tanto estar nos conselhos como ter representantes nas casas legislativas. A gente precisa conhecer todos os nossos deputados e deputadas, vereadores e vereadoras, saber quem é quem e cobrar dessas pessoas, fazer pressão política para que as coisas aconteçam. Mas aí, quando a gente vai fazer pressão política, vem o quê? Cinco pessoas?

Alexandre: É, mas você vai precisar de tempo, de dinheiro para fazer isso, porque você tem que cuidar da sua vida. Se eu fosse colocar isso na prática, eu vou dizer que o que ajudaria seria a formação continuada dos profissionais das Secretarias da Saúde, da Educação, da Assistência Social, e todas as outras. Essas são as três maiores, seja em nível estadual ou municipal. Se a gente consegue trabalhar diretamente com os profissionais, é sobre toda a rede que estamos falando.

A formação continuada em  e sobre as questões LGBTI+, eu vejo que é o caminho inicial. Tem que se trabalhar formação, mas tem que partir de onde? A partir dali, dos servidores públicos, em todos os níveis: efetivos, comissionados e terceirizados. Só de fazer esse processo, a revolução já vai ser grande. A partir disso, tem que se desdobrar para as escolas. Uma vez formados os professores, tem que ter formação continuada para os alunos, com a disciplina de  na grade curricular. Nas escolas, aí sim a gente pega o estado como um todo. Isso reflete.

Quando a gente forma, por exemplo, os profissionais da Saúde, os postos, os centros e os hospitais ficam mais acolhedores, vão entender, vão tratar as necessidades, vão discutir. É um processo que parte daí. Formação em , começando pelos servidores públicos. Essa é a urgência que a gente vem trabalhando. Municipalmente conseguimos avançar mais nessa questão do que estadualmente, embora a gente trate disso nessa esfera.

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Cine Orgulho, com participantes do Brasil e da Argentina, em 2022 | Crédito: reprodução.

Gostaria que as pessoas saíssem da leitura da entrevista motivadas a se engajarem politicamente. Nesse sentido, poderiam deixar uma mensagem para quem estiver lendo sobre como é possível somar?

Fabrício: A primeira coisa é ter a vontade de mudar o nosso cotidiano. E mudar a partir do aqui-agora. Pode começar apoiando instituições que existem, fazendo Pix. Faz um Pix para a instituição! Não precisa ser para a Acontece. Tem tanta instituição LGBT. Tem instituição que ajuda na cesta básica, que é importante também; tem instituição que vai ser como nós, que está fazendo as políticas públicas, pensando em colocar as pautas para frente; tem instituição de apoio para falar sobre HIV/Aids. Tem tanta instituição LGBT que está às mínguas, com dificuldade de pagar o contador, as contas, a água, a luz, para manter funcionando. Então, faz um Pix, ajuda financeiramente! Deixa de tomar uma cerveja e ajuda a comunidade! Podem ajudar monetariamente, é importante.

Quer ajudar mesmo? Vai nas redes sociais, impulsiona esse discurso pró-direitos humanos, compartilha, curte, comente, marque outras pessoas, envie o conteúdo para alguém que você acha que precisa. Os engajamentos nas redes sociais são muito importantes, porque fazem com que os nossos discursos de direitos humanos ecoem, em vez do discurso que diz que “bandido bom é bandido morto”. Isso faz com que as pessoas que concordam com as nossas pautas compartilhem, porque algumas não fazem isso por terem medo de ser gongadas. Uma militância que não exige muito é essa.

Ter respeito pelas pessoas no ambiente virtual também é uma forma maravilhosa de ser engajado. Acolher as pessoas é uma forma de fazer a militância no dia a dia: respeitar o corpo, o limite, a aparência, as escolhas. Isso é ser militante no dia a dia, sem precisar ir para a Câmara Municipal ou para a Assembleia Legislativa.

Alexandre: Outra questão é a participação. Participe dos conselhos da sua cidade! Acompanhe as reuniões! Se quiser dar um passo mais avançado, se envolva diretamente com as associações. Falando aqui de Florianópolis, se envolva no Conselho Municipal LGBT, que se reúne uma vez por mês. Se envolva no processo de criação das políticas públicas! E eu finalizo dizendo: tenha orgulho de ser você, tenha orgulho de ser LGBTI+, do seu corpo, da sua voz, das suas amizades, do seu trabalho, de viver!

Fabrício: E a gente não está sozinha! Esse é o principal: a gente não está sozinha. Tem milhões de LGBTs por aí precisando se sentir parte de um coletivo. É importante a gente entender que a gente não é a única. A gente tem uma comunidade diversa, bonita, com todos os tipos de corpo — com e sem deficiência, com eficiência. Quando a gente percebe no outro essas outras corporalidades e percebe que a gente não está sozinha, é mais um alento para a gente continuar. Se você quer fazer parte, vem! Ache o seu caminho, como um rio que acha o caminho com o mar. Nós, LGBTs, estamos nessa pegada.

Para finalizar, levando em consideração que existem muitos movimentos pelo estado e que não temos como dar conta nesta série, quais outras iniciativas vocês indicariam?

Fabrício: Uma coisa muito legal que eu tenho visto é a galera das casas de vogue. Eu sou bem comunistinha, então às vezes torço o nariz para algumas coisas norte-americanas, porque as brasileiras fazem muito melhor. A gente sempre percebeu que a cultura e a arte são instrumentos, ferramentas e metodologias potentes para a gente conseguir as coisas. Não digo políticas públicas, mas conseguir se enxergar enquanto gente. Enxergar outras de nós e se sentir pertencente.

E eu tenho visto as casas de vogue, aqui em Florianópolis, como um espaço de ressignificação, de cultura, de potência, de ajuda mútua. A gente auxiliou algumas casas durante a pandemia, quando precisamos nos articular para colocar o que comer na casa das manas. Mesmo não sendo uma ONG assistencialista, na pandemia a gente deu um 360º e percebeu que precisava arrumar cesta básica, pagar uns papéis de energia e água, senão o estrago seria muito pior. Se for para citar uma, citaria a Casa das Feiticeiras, que tem feito um trabalho muito rico, muito legal. Mesmo sendo um rolê norte-americano, a gente se apropriou e está trazendo para a nossa luta.

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  • Joá Bitencourt

    Joá Bitencourt é estudante de Jornalismo, pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e faz estágio obrigatório no Por...

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