A resistência da UNALGBT em Chapecó, no Oeste Catarinense
“O movimento social coletivo é transformador dos sujeitos que são protagonistas dele”, fala Gerson Junior Naibo, presidente da entidade
Um projeto político de sociedade se constrói a muitas mãos. Dimensionar o Brasil e suas especificidades não é uma tarefa pequena, muito menos quando se trata de uma população tão multifacetada quanto a de pessoas LGBTQIA+. As lutas territorializadas ganham sentido quando temos como certo que é preciso saber por onde se anda — como se caminha, com quem, por quê, para quê.
A União Nacional LGBT (UNALGBT) está organizada, entre outros territórios, em Chapecó. Na data da 6ª Parada de Luta LGBTQIA+ do Oeste Catarinense, no dia 25 de junho, o presidente da unidade, Gerson Junior Naibo, conversou comigo. Com frações municipais espalhadas pelo país, a UNA é uma das mais recentes coalizões LGBTs com atuação federal, articulando a luta de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais a partir de uma perspectiva interseccional desde 2015.
Emprestando sua voz ao grupo, nesta última entrevista da série Pautar o agora, Gerson me contou quais têm sido suas principais frentes de atuação e falou sobre a importância da coletividade na política.
Joá Bitencourt: Como a UNA chegou a Chapecó? Desde então, como vocês têm se organizado?
Gerson Junior Naibo: Eu não participei da fundação da UNA, eu não residia em Chapecó na época. Eu entro na direção da UNA na segunda gestão, mas a gente aqui em Chapecó é conhecido como o celeiro do Oeste, no que diz respeito aos movimentos sociais. Os movimentos sociais são muito fortes e muito consolidados historicamente. Têm todo um histórico de enfrentamento ao contexto político-econômico bastante conservador no qual nós estamos inseridos.
A UNA aqui em Chapecó surge a partir de um movimento que vem se consolidando desde 2015. Inclusive, é um dos primeiros braços da União Nacional a se formar no Brasil e, numa perspectiva bastante histórica, a gente tem a nossa primeira parada realizada no ano de 2016, impulsionada após o atentado em Orlando, na boate Pulse. A ideia inicial era fazer uma vigília em alusão a esse contexto, mas foi realizada uma parada. Desde então, a gente realiza paradas anuais.
A Parada, aqui em Chapecó, tem um contexto regional. Até este ano, ela vem sendo nominada como Parada de Luta LGBTQIA+ do Oeste de Santa Catarina. Ela tem essa característica por abraçar o contexto regional, inclusive por atravessar fronteiras, por conseguir alcançar parte do estado do Rio Grande do Sul e parte do estado do Paraná.
Voltando à formação da UNA, ela é uma entidade bastante recente, mas foi uma atividade muito planejada. A UNA vinha se consolidando há muito tempo através do diálogo entre partidos e entre outros grupos na sociedade. Então, é importante enfatizar que ela é resultado de uma soma de luta e esforços coletivos, que vinham acontecendo há um número bastante significativo de anos, através de várias pessoas.
O apartidarismo e a apolítica têm ganhado espaço e impactado na discussão de políticas públicas como um todo, dificultando a participação social por gerar afastamento. A UNA, ao contrário, parece ser transparente quanto ao diálogo que faz com os partidos. É um movimento social orgânico, que parte das bases, mas também que dialoga com as estruturas burocráticas do Estado. Como funciona esse diálogo na prática?
É uma pergunta bastante complexa. Em Chapecó, é a nossa terceira gestão. Eu estou como o terceiro presidente da entidade. E a gente foi para o Brasil. Mas, nesse contexto bastante recente da entidade, a gente tem conseguido ver como algumas diferentes gestões das unidades municipais têm dado caras diferentes para a entidade. Contudo, ela tem uma carta de princípios que a gente segue. E a UNA é uma entidade LGBT, mas que ultrapassa a sigla. É uma entidade que é eminentemente democrática, que é aberta para a participação coletiva de todas, todos e todes, independentemente da condição que se entende enquanto perspectiva de gênero ou orientação cultural.
O diálogo entre partidos tem sido bastante próximo, mas ao mesmo tempo bastante aberto. Quanto mais diálogo, mais pluralidade a gente ganha enquanto entidade, enquanto representatividade.
Esse tem sido um desafio constante, que eu, enquanto dirigente da UNA, tenho visto. Conseguir alcançar essa pluralidade, tanto no que diz respeito à pluralidade da própria diversidade que a entidade abarca quanto ao contexto político do Estado, como bem mencionou. A UNA é uma entidade aberta e democrática. E o diálogo entre partidos tem acontecido de uma forma bastante experimental. Até porque a gente constrói as nossas próprias gestões. A gente é suprapartidário.
Esses diálogos existem, mas para qualquer movimento social – na verdade, qualquer movimento de base –, eles precisam de um tempo de consolidação até que se traduzam em práticas efetivas. Nesse sentido, quais pautas têm sido prioridade de luta para vocês, localmente?
A nossa Parada este ano tem como temática Saúde, Trabalho e Educação. Por que esse tema? Porque a gente entrou em um contexto político, em 2023, que nos permite olhar para nós mesmos, no sentido de que temos pautas que são nossas e precisam ser pautadas para além de um contexto político externo. Quais são as principais pautas do movimento LGBTQIA+ em Santa Catarina? Os temas das paradas têm sido, historicamente, o que pauta as nossas principais diretrizes de trabalho. E, nesta edição, o nosso tema é um tripé basilar para sobrevivência no sistema econômico e político no qual estamos inseridos.
Precisamos falar de trabalho, porque a nossa comunidade tem tido dificuldades imensas para acessar o campo de trabalho, principalmente quando a gente fala das pessoas transgêneras, transexuais e travestis. A gente tem tido dificuldades eminentes na educação, principalmente na Educação Básica, em um contexto que é bastante violento para as crianças LGBTQIA+. E a gente tem tido dificuldades gigantescas em acessar os serviços de Atenção Básica de Saúde. Tanto no que diz respeito a acessar políticas específicas quanto ao atendimento humanizado, como profissionais de saúde têm visto nossa população e como a gente tem sido tratada enquanto sujeitos providos de direitos, que são humanos e que são universais.
No ano passado, a gente teve um movimento bastante lindo e interessante, que foi através de uma demanda emergente, principalmente da população transgênero, transexual e travesti, que foi pensar instrumentos para a formação dos profissionais de saúde, no sentido de que a gente tinha relatos de atendimentos bastante violentos, com a não utilização do nome social e abordagens violentas. Quando eu falo de violência, eu não estou me referindo apenas à violência física, mas uma violência que é tida também no campo simbólico e moral, que muitas vezes é velada.
Então, a gente deu início a um projeto de formação permanente em saúde, aqui no município, e a nossa ideia era criar o projeto piloto sobre atendimento humanizado para a população LGBTQIA+, especificamente. É um projeto que tem dado tão certo que a gente tem sido referência e que, inicialmente, foi realizado com a Secretaria Municipal — claro que com muitas resistências e enfrentamentos, porque a gente está em um contexto político bastante difícil e que, aqui em Chapecó, é importante se dizer, é bolsonarista. Mas, mesmo assim, a gente tem sido procurada enquanto referência para pautar essa discussão.
Tanto o poder público municipal quanto os profissionais de saúde têm se sentido tocados por notarem que não dá mais para fazer o que estavam fazendo, que precisam promover mudanças. Claro que não é generalizar, mas a gente tinha contextos em que, por falta de conhecimento mesmo, as pessoas promoviam violência. Isso é importante ser dito.
A gente tinha uma prioridade que era para além da temática da Parada, em um contexto político bastante tenebroso. A gente teve esse grande eixo, que nos levou a uma necessidade social da nossa comunidade. Inclusive, essas formações foram lançadas no ano passado no contexto da Parada e, com muita felicidade, eu digo que há um ano a gente tem realizado formações sobre esse tema nos mais diferentes espaços, desde o sistema financeiro e institucional até a formação permanente em saúde, uma formação que é complementar para profissionais já formados e em formação.
Falando em políticas públicas, vocês têm atuado enquanto movimento dentro dos conselhos da cidade, em outros espaços formais de participação social?
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A gente tem um problema legal-burocrático aí. Em alguns conselhos, a gente tem conseguido espaço, como o Conselho Municipal das Mulheres, por um tempo, inclusive na gestão, mas em muitos dos outros conselhos a gente tem encontrado um debate legal, que é não ter o CNPJ. A gente ainda não possui o CNPJ por a gente ser uma entidade bastante recente, por ser uma pauta burocrática e exigir recursos financeiros. É um debate que a gente tem iniciado e uma tramitação que parece que tende a acontecer nos próximos meses.
Mas é importante dizer que, não necessariamente enquanto entidade, mas através dela, a gente tem fomentado a participação social nos conselhos. Por exemplo, no Conselho Municipal de Saúde, a gente não tem CNPJ para participar, mas existe a Conferência Municipal de Saúde, que tem espaço para usuários, então, se enquanto entidade a gente não consegue acessar, a gente acessa enquanto usuários LGBTs. A gente tem fomentado isso. Elas são espaços deliberativos.
Inclusive, na última Conferência Municipal de Saúde, o nosso diretor participou enquanto funcionário da rede e conseguiu levar a nossa pauta de saúde LGBT para a Conferência Estadual. É um espaço de enfrentamento, que tem que ser feito. Enfrentamento político-social mesmo, temos tido resistência dos mais variados tipos para ocupar esses espaços e para pautar a nossa luta. Em passos de formiga, temos conseguido avançar.
Talvez uma pergunta melhor seria: quais instrumentos de participação social vocês têm conseguido fomentar a partir da entidade? Como um todo, quem tem participado?
A gente é um coletivo político orgânico. Eu sou uma pessoa muito feliz presidindo essa entidade, porque a gente tem um grupo bastante potente, pessoas muito capazes, politicamente muito preparadas.
Como eu tinha mencionado, a gente tem priorizado a nossa participação social em alguns espaços e a nossa luta tem se resumido a um enfrentamento político, a como a gente precisa pautar a ocupação do espaço político pelas pessoas LGBTs. Essa é uma pauta que a gente tem levantado nos nossos últimos anos eleitorais. O Jonas Marssaro é uma pessoa que poderia falar muito bem disso, porque ele foi uma figura LGBT que esteve à frente de processos eleitorais. A Carol Stone também é alguém que tem representado a nossa entidade nesse sentido, inclusive ocupando espaço da política e pensando em políticas públicas.
A gente tem uma bandeira que é a ocupação dos espaços de poder. É através de pessoas como nós ocupando os espaços de poder que a gente vai construir realmente uma democracia plural e representativa. A gente pode ter figuras políticas que não são LGBTs pautando a nossa luta, isso é necessário, mas a gente precisa também que as pessoas LGBTs ocupem os espaços de poder. Essa tem sido uma das nossas bandeiras, uma das nossas lutas, no que diz respeito à UNA no contexto geral.
Além disso, a gente tem priorizado o contexto de formação política, social e educacional, tanto nos nossos quadros quanto nas nossas bases. A gente precisa sentar, estudar e pensar sobre a temática LGBT. A gente precisa estudar sobre trabalho, sobre educação, sobre saúde e é apenas através da formação que a gente vai conseguir avançar. A gente tem priorizado ações nesse sentido, tanto de formar os nossos quadros nesse contexto, porque eles precisam estar preparados para fazer um enfrentamento político, mas também a comunidade de modo geral. Formação para as nossas bases e também além delas, furando bolhas. Um exemplo é esse projeto de formação em atendimento humanizado e educação permanente em saúde da população LGBT, que eu tinha mencionado anteriormente.
A UNA tem uma característica de interiorização. Em Santa Catarina, por exemplo, ela está presente em mais de uma cidade. Tem existido um diálogo intermunicipal entre vocês?
Sim, sim. Tem tido um diálogo interessante entre as municipais. É um diálogo em parceria. A gente entende que é filha da mesma entidade. Temos a UNA, que é nacional, e temos as frações municipais. As frações municipais são uma irmã da outra. Isso tem acontecido aqui no Oeste de Santa Catarina.
A nossa relação é muito próxima com a UNALGBT de Xaxim, de Xanxerê, de Caçador, de Pinhalzinho. Se a UNA Pinhalzinho está fazendo uma parada, a gente vai participar. A nossa participação é importante enquanto entidade. Bem como, hoje, a gente tem a Parada aqui em Chapecó e a gente vai ter a participação das diferentes UNAs, de diferentes regiões do estado. Mas o desafio que eu tenho percebido é estreitar esses laços. E talvez a gente precise, enquanto municipal, pensar em espaços de formação mais coletivos. Porque a gente tem se apoiado muito enquanto protagonistas das nossas lutas, mas talvez unindo as nossas forças na formação política, a gente terá mais força.
Esse tem sido um desafio e tem sido algo que eu tenho enxergado como necessário e uma possibilidade. Precisamos nos unir, porque a luta social avança apenas no coletivo.
Pegando o gancho, se uma pessoa que não necessariamente teve contato com um movimento social organizado anteriormente se depara com esse texto, se ela por acaso chegar até aqui, por que ela deveria se organizar coletivamente?
Primeiro, porque a política é um espaço coletivo. A democracia é um espaço coletivo. Uma democracia plural acontece quando tem representação social. Enquanto dirigente, eu aprendi muito com os movimentos sociais de base, com o movimento estudantil. Eu sou alguém que surge do movimento estudantil e entra com a pauta LGBT — entro na UNA a partir desse debate que eu tive no movimento estudantil.
Para alguém que não tem uma organização político-social coletiva, eu faria um convite no sentido de vir com a gente, de somar às nossas lutas, de vir se transformar como sujeito. O movimento social coletivo é transformador para além da sociedade, é transformador dos sujeitos que são protagonistas dele.
O movimento social transforma as pessoas. Eu falo isso com muita alegria, com muito sangue no olho e com muita segurança, porque o movimento social transforma as pessoas, transforma as formas que elas veem no mundo.
Eu vejo no diálogo coletivo que a gente precisa de organização para avançar socialmente. A organização é algo necessário. Eu deixaria esse convite. E, claro, para as pessoas virem nos ensinar, para elas trazerem as suas pautas, porque o movimento social precisa ser orgânico. Ele precisa aprender também com essas pessoas. As pessoas todas têm muito a nos ensinar e muito a nos dizer. O diálogo coletivo é uma via de mão dupla, ao mesmo tempo que eu estou ensinando, estou aprendendo com o outro.
As organizações LGBTs anticapitalistas falam muito sobre a cooptação do movimento LGBT, sobre como as nossas pautas acabam, às vezes, sendo roubadas pelo capital. Como não perder o horizonte revolucionário?
Essa resistência tem sido feita em Chapecó, no sentido de que a gente é uma das únicas paradas autogestionadas pela própria entidade. As paradas no Brasil são feitas a partir de parcerias público-privadas, no geral. E aqui em Chapecó, até este ano, a Parada tem sido um evento organizado pela UNA, porque a gente entende que apenas assim vai conseguir pautar o nosso debate. Se a gente realiza a Parada de Luta de LGBTQIA+ do Oeste de Santa Catarina através dos fundos que a gente levanta, a gente é que pauta a nossa luta. E a gente vai dizer o nosso direito de guerra. É necessário fazer resistência.
Um exemplo real é a situação da PrEP — a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV — em Chapecó, que tem sido uma resistência. A gente tem uma demanda por esse tratamento. Essa demanda existia e a gente não conseguiu aplicar essa demanda na prática através do diálogo político. A gente não conseguiu. Não conseguiu. Não adiantou conversar com o poder público e falar assim: “Senhores e senhoras, precisamos aplicar essa política pública no município de Chapecó”. Não adiantou fazer isso. O que a gente fez? Acionou o Ministério Público! Então, a Prefeitura, através de uma ação do Ministério Público, implementou essa política.
Hoje, através de uma luta do movimento LGBT, das forças das entidades que discutem saúde no município, a gente conseguiu implementar uma política, mas por uma ação da UNA através do Ministério Público. A Prefeitura foi fundamental, porque ela precisava implementar essa política. Sem ela, a gente não tinha essa implementação. Mas a luta que teve para chegar a isso ninguém falou. Foi como se a Prefeitura tivesse acordado e, do dia para a noite, tivesse resolvido implementar. São microapropriações da pauta. Porque, para quem não acompanhou esse debate, viu essa ação de forma louvável. “Nossa, a Prefeitura de Chapecó é progressista.” Mas não foi bem o que aconteceu. Foi muita luta.
Movimento nenhum se faz sem referências. Quais referências regionais gostaria que as pessoas conhecessem?
A região Oeste é muito rica em movimentos sociais. Movimentos sociais de peso. Mas, se eu tivesse que citar referências de movimentos sociais que eu gostaria que fossem conhecidos por toda a população, eu citaria o movimento estudantil, especificamente a União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Chapecó, que é um movimento foda para caralho. É um movimento muito potente, que foi forte no período pós-ditadura militar e que eu tenho muito orgulho.
E o movimento agrário aqui no Oeste, principalmente o movimento de mulheres camponesas. Elas têm feito um debate sobre a vida, sobre a integralidade da relação humana com a natureza, que é um debate que tem sido esquecido pela política.