O tema da pandemia e da emergência sanitária que assola o planeta têm visibilizado a terrível condição de vulnerabilidade que as propostas coloniais de dominação, terceirizadas pelo Estado, fizeram vigente a vida das pessoas, essencialmente aquelas que não conformadas com a categoria social e os estigmas genético-binários impostos sobre os corpos, transgrediram as relações corpo-biologia, chamadas de pessoas transgêneras. 

Para as informações presentes, a América Latina e Caribe, onde podemos individualizar o Brasil, possui o infeliz título de país que mais mata pessoas trans no mundo. Apesar de muitos destes, terem avançado em políticas afirmativas e pautas internacionais de direitos humanos, a emergência que nos traz a Covid-19, mostra o terrível caso que dos mais de 30 países que conforma a América-Latina e Caribe, apenas a Argentina criou em conjunto com o Ministério da Saúde, recomendações de saúde para a população travesti, transexual e não-binária. Nem no Uruguai, tão conhecido por seus avanços, agora com o novo presidente Luis Lacalle, foi pensada alguma medida.

Integrantes do movimento Transvida da Costa Rica organizando as
cestas básicas que serão entregues para a população trans/ Foto Transvida

A realidade dessas mulheres – que muitos dos países como Peru, Panamá, Colômbia e Honduras, estão em quarentena por gênero – não é nada fácil. O debate já alavancado pelos movimentos feministas radicais, dando início à ideia biologicista de ser-mulher, trouxe à tona a difícil realidade que não está conformada juridicamente com o Estado em seus documentos, principalmente em países em que não existe a Lei de Identidade de Gênero.

Muitas proibidas de circularem nas ruas, de comprarem comidas e ainda até detidas e humilhadas publicamente por agentes do Estado, em vídeos que têm circulado nas redes sociais de mulheres ajoelhadas, com os braços presos nas costas, tendo que gritar “quiero ser un hombre”, “un hombre quiero ser” enquanto são linchadas a gargalhadas de policiais.

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Algumas, como de costume, são mortas. A relação tão acirrada entre gozo e ódio trouxe a população mais vulnerável suscetível a mortes segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), somadas a mulheres negras e pobres. A heterodivisão homem/mulher e pênis/vagina estruturou, nessa quarentena, as relações mais desiguais e absurdas da humanidade – fez com que fossemos submetidas à cosmética estatal, um conceito que eu chamo atenção para pensar o papel do Estado em tentar nos maquiar de pessoas cisgêneras quando, muito dificilmente, pensa em políticas públicas para a população travesti.

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Mulheres trans sendo vacinadas contra a gripe influenza, em Córdova em ação da Associação de Travestis, Transexuais e Trangêneros de Argentina (ATTTA) e o Ministério da Saúde/Foto: ATTTA Filial Córdoba

Como dizem algumas companheiras latinas, a preocupação nossa não é com o coronavírus, mas com a fome. É com companheiras imigrantes, que por questões xeno-transfóbicas, estão sendo expulsas de suas casas, como o caso das imigrantes venezuelanas no Peru. É também ter que estar enclausuradas em residências onde a família é a que mais nos rejeita. 

E a prostituição, que é o cotidiano de mais de 90% da nossa população, onde boa parte era sustento, outra parte aceitação, outra parte vontade, agora é barrada.

Os sites de pornografia aumentando e as masturbações trans-inspiratórias têm ganhado sentido no imaginário da maior parte da população de homens brancos cisgêneros. Diria que o maior Édipo da cisgeneridade é gozar com aquilo que quer matar.

Companheiras da Red Trans de Bolívia (TREBOL) entregando insumos para companheiras trans na cidade de Cochabamba, Bolívia/Foto: Red Trebol Bolivia

Muitas das companheiras caribenhas sofrem muito e geralmente migram de seus países para ter dignidade de vida, já que boa parte dos países que conformam o Caribe não possui direitos mínimos para a população trans. Como o caso do Haiti, onde mais 90% da população se declara cristã, as coisas não são nada fáceis. Por falarem diferentes idiomas, as comunicações entre os outros países são unificadas pelo inglês, é o que pude observar entre os movimentos de pessoas trans.

A condição é de muita tristeza para pessoas que não conseguem aceder a seus hormônios devido à crise nos hospitais, não conseguem consultas médicas, muitas que tinham a prostituição como única fonte de renda hoje não mais conseguem sobreviver com o pouco que guardavam. Em alguns países, boa parte da população trans é uma população em situação de rua, vivendo com HIV e vulneráveis imunologicamente.

Militantes do Grupo Diversidade de Niterói organizando cestas básicas no Teatro Municipal de Niterói./Foto: Grupo Diversidade Niterói

As travestis que se encontram em privação de liberdade, na maioria dos países tem sido mortas pelas precárias condições sanitárias do presídios que muita das vezes não estão seguindo as recomendações de saúde.

Pelo silêncio sistêmico do Estado, os movimentos sociais de pessoas trans, no que pude observar na América Latina e Caribe, estão sofrendo muito pela invisibilidade. Quase todos, dentre as medidas, têm escrito cartas aos respectivos presidentes pedindo para que deem a devida atenção aos grupos prioritários neste momento, que não podemos esquecer que são também as pessoas trans.

Assassinato da travesti negra em situação de rua em Porto Rico, conhecida como Alexa, baleada por um grupo de homens, após ser humilhada nas redes sociais por ter sido expulsa de um banheiro feminino/Foto: Trans Pride Puerto Rico

Infelizmente não consigo pensar soluções interessantes, já que sem o Estado, com políticas neoliberais não alcançaremos absolutamente nada para nós. Penso até, como mencionei anteriormente, que o que eu chamo de cosmética estatal é criado em conjunto com o colonialismo jurídico, já que os estados nacionais latino-americanos e caribenhos surgem na tentativa de acabar com a diversidade, resumindo-a a um senso de pertencimento nacional inexistente atrelado a uma norma binômia.

Morta por Covid-19 nos EUA, a ativista trans mexicana Lorena Borjas, importante referência para as imigrantes latinas no país/Foto: BuzzFeed News

Quando o Estado formula a retificação de nome e sexo dos documentos, nada mais ele está que fazendo com que aquilo que antes era diverso, como as travestilidades, terá que se encaixar na norma jurídico binária do masculino e feminino, e logo assim, é a forma que o Estado tem de não criar políticas sociais para a população trans, já que a mesma encontra-se camuflada na população cisgênera e que sempre as políticas para homens e mulheres nunca serão pensadas se agregado o sufixo “trans”.

*Alessandra Mawu Defendi Oliveira, mulher travesti, membra da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais de Foz do Iguaçu – Casa de Malhu. É Promotora Legal Popular da Fronteira Trinacional e estudante de Antropologia pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana em Foz do Iguaçu (PR). 

 

 

 

 

 

 

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