“Porque decirles que sujetos concretos, situados en las escenas históricas de nuestro continente pensaron propuestas que tomaron forma es hablarles de su propia potencia transformadora y constituye, por lo tanto, una verdadera pedagogía política” – Rita Segato, em entrevista a Karina Bidaseca.

Apostar na genealogia, como propõe a antropóloga argentina Rita Segato, é muito apropriado ao se observar o ensaio de Alexandra Bezerra (MPEG) e Ana Lazar (MN/UFRJ). “Mulheres na mastozoologia brasileira: as pioneiras e a Sociedade Brasileira de Mastozoologia” oferece um resumo biográfico de 21 pesquisadoras dedicadas ao estudo de mamíferos no Brasil do século 20 – duas delas escapam ao recorte temporal escolhido pelas autoras. Lê-se trajetórias individuais, mas capazes de desnudar conquistas e desafios que estão postos à vida coletiva, como políticas públicas para garantir a produtividade de pesquisadoras durante a maternidade e as lacunas ainda abertas na inserção de mulheres negras na ciência, por exemplo.

Um caso emblemático é o da alemã Emília Snethlage (1868-1929), que aportou na Amazônia paraense aos 37 anos. As mulheres de sua época ingressavam na academia bem mais velhas que os homens. A naturalista traçou seu destino: aprofundar os estudos em curso sobre aves e que já lhe davam distinção – ao ponto de ter endereço certo desde a partida do continente europeu até o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém. Consagrou-se ornitóloga e a obra “Catálogo das aves amazônicas”, de 1914, representa parte de suas contribuições científicas para o Brasil e para museus de inúmeros países com os quais mantinha relações.

Mas o ensaio é sobre mulheres especialistas em mamíferos, não? Pois é. Emília, que tantas vezes assinou como Emílio e chegava a referir-se a si mesma no masculino, em documentos oficiais, foi determinante para colegas da Mastozoologia e de outras áreas do conhecimento. Durante suas expedições científicas, e foram pelo menos 18 ao longo de sua vida, coletava espécimes fundamentais para os estudos sobre esses vertebrados de sangue quente. Ela foi cúmplice da Etnografia, com estudos sobre a língua de indígenas das tribos Chipaia e Curuaé.

Nelson Sanjad (MPEG) descreve este cenário, tendo publicado um artigo específico com objetivo de “evidenciar o papel proeminente de Emília Snethlage no início da carreira de Nimuendajú como coletor, etnólogo e correspondente de antropólogos bem situados em instituições alemãs”. Após minuciosa análise de documentos de época, conclui, entre outras coisas, “que a amizade entre Nimuendajú e Koch-Grünberg foi tecida de forma triangular, com participação de uma mulher, e depois se fechou em uma relação mais próxima entre os dois homens. Isso nos remete à presença de mulheres nas redes científicas e acadêmicas do início do século 20, ocupando posições subalternas ou invisíveis para seus contemporâneos e sucedâneos”.

Apesar da invisibilidade, espécies de diversos grupos de seres vivos foram batizadas com seu nome, entre roedor, primata, peixe, sapo, serpente, lagarto e periquito. E a Senhorita Doutora, como alguns a chamavam, chegou a dirigir o Museu Goeldi, tornando-se assim a primeira mulher a encabeçar uma instituição científica na América do Sul. Isto se deu em meio à Primeira Guerra Mundial e desembocou em seu deslocamento para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Nesta condição, fez sua derradeira missão na Amazônia, onde faleceu, possivelmente, em decorrência da malária.

Uma imagem em preto e branco exibe Emilia Snethlage em trabalho de campo, com espingarda nas mãos e trajando longa saia. Como seria passar dias e dias atravessando a floresta com as vestes de fácil engate nas folhagens? E se lhe viessem as regras?

Sua postura tinha alguma fluidez, transitando entre referências tradicionalmente vinculadas aos comportamentos masculino e feminino, entre o que se associava à subjetividade (no caso das mulheres) e à objetividade (no caso dos homens). Miriam Junghans reproduz, em artigo de sua autoria, trechos do discurso de Miranda Ribeiro, proferido em março de 1936, na Academia Brasileira de Ciências: “a moda dos cabelos curtos seria de fato muito cômoda para uma naturalista, mas as senhoras, no interior, poderiam estranhar”. A pesquisadora evoca outro elemento próprio de nossa conjuntura: “A historiografia das ciências no Brasil apresenta, até agora, poucos exemplos da atuação feminina no campo das ciências naturais antes da fundação das universidades na década de 1930”.

Brasil contemporâneo – O relatório “Gender in the Global Research Landscape”, publicado em 2017 pela editora holandesa Elsevier, aponta para um espectro mais promissor, como escrevi em reportagem para a Agência Museu Goeldi. A proporção de mulheres entre pesquisadores no Brasil, no intervalo de 2011 a 2015, chegou a 49%, o que representa um crescimento em relação aos 38% registrados no período de 1996 a 2000.

Algumas das barreiras para esses avanços são sugeridas por cientistas do Parent in Science. No I Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, realizado em 2018, o grupo demonstrou que 54% das pesquisadoras são as únicas responsáveis pelos cuidados com os filhos e 34% compartilham a tarefa com o pai da criança; nos demais casos há apoio de outras pessoas, como membros da família e babá. O mesmo estudo indica que pesquisadoras sem filhos conseguem manter a taxa de publicações científicas em ritmo regular ao longo do ano, enquanto cientistas que se tornam mães apresentaram queda no desempenho, reduzindo os indicadores de bolsa de produtividade pela agência de financiamento público.

Estas constatações reiteram o descabimento do discurso em defesa da meritocracia e invocam a necessidade de políticas públicas para dar suporte às mulheres cientistas. Uma delas trata-se da aprovação e implementação da Lei No. 13.536. Desde de 2017, bolsistas de pesquisa passaram a ter direito de suspensão de suas atividades acadêmicas por até 120 dias, sem prejuízo financeiro, em caso de maternidade ou adoção.

Nessa dramática pandemia do novo coronavírus e no contexto de um Brasil gravemente infectado pelo bolsonarismo – em conceito construído pela Ciência Política – é importante mencionar a preciosa contribuição de uma mulher, a médica e Doutora em Imunologia Ester Cerdeira Sabino. Ela coordenou o sequenciamento genético desta variação, de impactos sociais dramáticos. Infelizmente, é preciso considerar que a chamada “fuga de cérebros”, um termo alusivo à saída de especialistas do Brasil na ditadura militar de 1964, tem fortes chances de voltar a ocorrer.

Marcadores sociais – Mas há outras questões a se levar em consideração, como se lê no artigo de Diana Alberto (UFPA) e Nelson Sanjad (MPEG): “Ao se traçar uma linha teórica da categoria gênero destacam-se as leituras de Harding (1993) e Scott (1995), em trabalhos nos quais elas fazem uma interpretação de que a investigação acerca deste assunto deve ir além de uma concepção única do ser ‘a mulher’, mas de que existem ‘as mulheres’. De acordo com Scott (1995), há a interseccionalidade do sujeito, e este possui uma raça, uma classe, enfim, um marcador social. E isso se nota ao olhar Snethlage, uma mulher branca, de classe abastada e com instrução. Tratam-se de debates importantes, pois, como enfatizado por Harding (1993), a categoria analítica feminina se mantém nesse patamar teórico, enfrentando uma instabilidade de posicionamento na sociedade, reverberada no mundo científico”. É preciso que se produzam conhecimentos com base nestes marcadores. É primordial garantir o entendimento da genealogia da ciência como pedagogia política e essencial enfrentar os desafios atuais de forma organizada e coletiva, no intuito de garantir a construção de uma sociedade mais harmônica, mais justa.

 

*Erika Morhy é jornalista e bolsista do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).

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