As pessoas se unem pelas mais diversas causas, e quando decidem pela coletividade, precisam estar dispostas a acolher singularidades, expressas de modos distintos e vindas de diferentes contextos. O afeto pode ser político e nos aproximar das pessoas, do lugar onde elas estão. É essa a perspectiva que trabalhamos na segunda entrevista desta série com entidades LGBTs catarinenses.

No mesmo quarto, dividindo o enquadramento da webcam, Alice Silva, Diego Neto e Diony Sousa conversaram comigo no dia 22 de junho. Eles compõem o Coletivo Bapho, que atua a partir da Casa de Gente, sua instituição-mãe, onde também está a Terreira do Povo das Almas, na qual Diego é pai de santo. Ele trabalha jogando baralho cigano, Diony é jornalista e Alice é estudante do terceiro ano do Ensino Médio. Os três, com suas pluralidades, ilustram a diversidade que dá base ao Coletivo, que foi organizado em 2017 em Lages e, agora, está em fase de reativação.

Em 2019, fizeram a Revolução dos Bisturis, uma campanha para levantar fundos para cirurgias transexualizadoras, e realizaram a primeira edição da Feira Cultural da Diversidade; em 2021, lançaram a websérie documental “Qual o teu Bapho?”, para retratar vivências LGBTs lageanas; e, desde então, têm participado de mostras de cinema por Santa Catarina. Este ano, estão em planejamento para a segunda Feira.

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1ª Feira Cultural da Diversidade, que aconteceu em 2019 | Créditos: Nicole Lima, Kimberly Koeche e Diony Sousa.

Em entrevista, tratamos das  especificidades do contexto LGBTQIA+ lageano, sobretudo a visão comunitária pela qual se organiza. Acompanhe.

Joá Bitencourt: Podem falar sobre o período em que vocês surgem?

Diego Neto: O Coletivo Bapho é uma das razões por que a Casa de Gente foi criada. O que inspira a Casa de Gente é que eu, a minha mãe e o meu irmão ficamos sem ter onde morar. E chega um momento em que a gente vem morar nessa casa, nesse bairro, que era o bairro que a gente já morava, mas não a mesma casa. E aí, quem nos acolhe são justamente as meninas, as travestis. As travestis, as bichas aqui do bairro. Aquelas bichas que moravam no beco. As bichas do ruão mesmo. Elas nos acolhem de volta no bairro e começam a apresentar a nossa casa. E assim também começamos a desenvolver toda a questão da terreira, dessa coisa da religião. 

O coletivo surgiu porque comecei a entender que não fazia sentido ter apenas uma casa que acolhesse todo mundo e uma casa diversa, mas que essa casa poderia ser organizada. Queria continuar sendo quem eu sempre fui, continuar sendo doido, subversivo e disruptivo, mas ser um doido, um disruptivo com CNPJ. O golpe da Dilma é também um dos motivadores, porque eu também me encontro em um lugar de ter que fazer alguma coisa, e fazer alguma coisa não é nada além de se organizar. De se organizar comunitariamente, de se organizar coletivamente. A Casa de Gente sempre foi diversa. A maioria dos protagonistas das lideranças são pessoas LGBT, porém não são só pessoas LGBT. Tem mulher, tem mãe de família, tem gente evangélica, tem de tudo um pouco. É uma Casa de Gente. Pensar o Coletivo Bapho é a necessidade de dar um nome e de dar um nome organizado aqui na Serra Catarinense, a região mais conservadora, mais machista do estado, com alto índice de feminicídio. Uma cidade que tem uma rua no Centro da cidade, que é a rua da Câmara dos Vereadores, que é conhecida como a “rua da vergonha”, porque onde as travestis fazem programa. É uma cidade extremamente contraditória, conservadora, difícil.

O nome do Coletivo Bapho carrega essa ideia do bapho, do bapho com ph, do bapho que cabe dentro da cidade de Lages. Do bapho na medida de falar tudo o que se pode, mas de saber conversar, de ir no truque mesmo.

A partir disso, a gente foi organizando, reunindo, acolhendo as pessoas. A Alice é uma pessoa que transicionou aqui dentro da Casa, então chegou bem adolescente. Fora a Alice, várias outras pessoas transicionaram. A gente transicionou nesse processo enquanto instituição. De entender que, por exemplo, a nossa próxima presidenta da Casa de Gente vai ser uma pessoa trans, que é a Luna, porque é o nosso compromisso enquanto uma entidade, o nosso compromisso transinclusivo, de entender que as pessoas trans têm que ocupar lugares de poder, de decisão e nos representar.

A gente vem se educando e o Coletivo Bapho vem trazendo esse processo de educar o nosso jeito de ser. Aqui é diferente. As mães serranas vão brigar e matar pelos filhos, mas talvez elas vão ter dificuldade de chamar pelo nome, como é o caso da Alice, porque a mãe dela teve muita dificuldade para aprender a chamar o nome. Mas é uma mãe que não vai deixar a filha na rua, que vai acolher. A gente lida com essa particularidade conservadora, fomos aprendendo a lidar. A gente fez a primeira Feira Cultural da Diversidade, na Praça do Terminal, em 2019. A gente já fez várias atividades, já esteve em vários lugares no truque. As pessoas nem sabiam quem a gente era, por que estávamos convidando. E a gente vai, fala, dialoga, faz o debate, porque o ser bapho em Lages é um ser bapho na medida, sabe? Não adianta ir mostrar o cu na praça. Você tem que chegar lá e saber o que mostrar. A gente vem fazendo esse diálogo desde 2017.

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1ª Feira Cultural da Diversidade, que aconteceu em 2019 | Créditos: Nicole Lima, Kimberly Koeche e Diony Sousa.

Com a pandemia, a gente teve que interromper a programação de atividades externas, mas continuou junto. As mesmas lideranças; a gente continua nesse processo de formação, de estar junto, acompanhando o desenvolvimento de cada um. E agora estamos no processo de retomada, de reestruturação da Casa de Gente. O Coletivo Bapho é uma das nossas principais bandeiras, que é essa bandeira da diversidade. E aí, dentro do Coletivo Bapho, tem o Transgrupo Jeanzinho Waltrick, onde a gente também pensa e articula esse protagonismo trans, que a gente não tem dúvida da importância. 

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Transgrupo Jeanzinho Waltrick, parte do Coletivo Bapho, com protagonismo de pessoas trans e travestis | Crédito: reprodução.

Diony Sousa: Vamos só retomar, compartilhar, essa questão de como foi a pandemia. Porque a gente estava a todo vapor na websérie. Foi um dos nossos grandes feitos enquanto produção audiovisual. A gente veio fazer essa discussão, esse diálogo entre nós, entre a comunidade aqui de Lages, através do audiovisual, e percebeu esse meio como ótima forma de contar a nossa história, ser protagonista das nossas próprias narrativas enquanto contação de história. E aí foi muito importante para nós essa produção, a gente acessou por meio da Lei Aldir Blanc, durante a pandemia, de auxílio às produções de audiovisual. O Diego foi o produtor, o cinegrafista e o editor da produção. Nós mesmos filmamos, nós editamos. Foi uma produção ótima.

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Crédito: reprodução.

Diego: Foram sete episódios, sete histórias de pessoas LGBTs, pessoas diversas aqui na Casa. Pudemos contar não só as tristezas, não só as dores, mas trazer essa ideia de humanização, o quanto falar de nós nos humaniza. Propor essa coisa: “Qual é o seu bapho?” e as pessoas responderem qual era a sua fortaleza, qual era o seu bapho, qual era o seu brilho. E a gente já vem aí pensando como retomar esse projeto. É algo que a gente quer dar continuidade, porque funciona bem nesse diálogo na cidade, na nossa região. Aqui, não adianta chegar com os pés na porta, a gente tem que saber dialogar.

Eu sempre conto uma história da Feira, que a gente não estava conseguindo a liberação da Praça em nenhum lugar. Nenhuma secretaria, nenhum órgão público, eles estavam dificultando. E, de repente, resolvi ir à Secretaria de Agricultura e Pesca do município. E catei um secretário e contei um texto, e foi através da Secretaria de Agricultura e Pesca, que a gente não conhecia ninguém, que era bem aleatório, que a gente conseguiu a liberação, porque é uma questão de saber o que dialogar e como dialogar.

A gente entende que deve chegar em um outro momento em que não precise fazer isso, mas aqui, na nossa região, ainda é muito atrasado, por mais que a gente não esteja isolado hoje. Mas sabemos que ainda é muito provinciano, ainda é uma cultura muito conservadora, inclusive entre a própria população LGBT. É uma cultura muito transfóbica, a gente é extremamente transfóbico. A gente está aqui se educando, educando a cidade.

Diony: Nessa questão da produção da Feira Cultural, foi não só um marco para a Casa de Gente, para o coletivo, mas também para a cidade, porque foi um dia em que a gente levou mais de 300, 400 pessoas. Podemos dizer que a gente lotou a Praça. Tivemos ali o ato interreligioso, que tinha padre, pais de santo, pastores, espíritas. Compartilhamos fruta, pão, sabe? Artesãos, artistas locais, artistas LGBT, coletivos de mulheres, coletivos de pessoas negras. Tinha um povo indígena que estava acampado na beira da estrada, a gente levou eles para a feira. Lages é uma cidade muito contraditória. É uma cidade muito conservadora e, ao mesmo tempo, é uma cidade muito acolhedora. Aqui, se você for a uma festa, você encontra um hippie, um punk, um skinhead, tudo na mesma festa. Lages tem essa capacidade de misturar e, ao mesmo tempo, tem esse conservadorismo. Tem essa coisa que nos violenta, porque a gente tem que ter sempre muito cuidado. Hoje não é mais opressor, mas a gente tem que saber chegar, saber sair. Ainda não demos um passo tão grande, mas a gente caminha.

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Pessoas de diferentes igrejas e terreiros se reuniram em um ato inter-religioso de boas-vindas durante a 1ª Feira Cultural da Diversidade, que aconteceu em 2019 | Créditos: Nicole Lima, Kimberly Koeche e Diony Sousa.

Diony: A nossa coordenadora do Coletivo e futura presidente da Casa de Gente, a Luna Andrade, recentemente, esteve no concurso de Miss Universo, representando a cidade de Lages. Ela era a Miss Lages, uma mulher negra, trans e nordestina representando Lages em um concurso de beleza. É daqui que vem essas possibilidades, essas particularidades. Dentro de todas as questões, dos pontos ruins que existem na cidade, Lages ainda tem muitas coisas boas.

Alice Silva: Falando sobre qual é o nosso motivo, do porquê a gente está aqui, eu sou a prova. Como a gente disse aqui, Lages é uma cidade extremamente conservadora. Ter um grupo de pessoas que estão ali, que são diversas, que vão te entender, que vão te escutar, que vão estar ali do teu lado, que vão estar ali para te mostrar a religião, por exemplo, porque aqui, além do Coletivo, a gente tem a terreira. E é tudo muito bem dividido. Não é só uma questão de entrar no Coletivo e as coisas aconteceram junto com a terreira. Não, é tudo muito separado. E aí eu conheci a terreira e tudo foi mudando, tudo foi melhorando. E, nessa questão das pessoas, de ter um grupo ali com quem se pode contar, com quem se pode conversar, isso é um dos maiores motivos. Por que isso é tão especial? Por que isso é tão bom?

Porque a gente aqui tem um lugar aconchegante para qualquer pessoa que quiser chegar. Qualquer pessoa que quiser chegar vai ter um espaço legal, vai ter um cafezinho, vai ter pessoas legais para conversar. A gente está aqui para isso, para ser um lugar de apoio para essas pessoas que precisam. Sem julgamento, sem nada disso. Só um espaço acolhedor e afetivo. Essa é a nossa maior especialidade.

Enquanto movimentos LGBTs, nós temos discutido bastante políticas públicas sendo criadas e pautadas pela nossa população. Como vocês têm dialogado sobre isso?

Diego: A gente vem há um tempo estudando. Literalmente estudando, entendendo, aprendendo. Agora, nesse processo de retomada, a gente vem fortalecendo algumas coisas, por exemplo, o debate sobre a saúde da população trans. Estamos pensando alguns caminhos, com quem a gente vai dialogar. Quais são as pautas que a gente precisa trazer? Estamos finalizando essa pesquisa. A gente entende que existe um potencial, não só a nível municipal, mas de pensar enquanto região. Dentro da questão da região da Amures [Associação dos Municípios da Região Serrana], porque a gente sabe que existe uma demanda e uma necessidade de pensar isso. Da mesma forma, dentro da questão de geração de trabalho, emprego.

A gente pensa em promover ações tanto com o poder público quanto com empresas. A gente pensa em parcerias, projetos de formação, de capacitação, de empregabilidade. Vamos iniciar, daqui a uns dois meses, um coworking comunitário. A gente vai estruturar e pensar, ocupar, porque ninguém vai nos dar esses lugares, temos consciência disso. A gente é pobre, a gente é periférico. Nossa rua é uma rua de terra. Não tem asfalto, não tem calçamento, não tem esgoto. O esgoto cai ali na frente do mato. As pessoas que estão por aqui são pessoas que realmente estão na margem. A gente entendeu que precisamos ocupar esses lugares. Vamos ocupar esse discurso, a linguagem, a narrativa. Vamos falar de empreendedorismo social, vamos ocupar essa questão da tecnologia, do mundo digital. Por que não isso na periferia? Por que vamos nos relegar a estar sempre sendo a mão de obra pesada? E aí a gente vem pensando em como transformar essas coisas em políticas públicas, porque são políticas essenciais.

Para este ano, estamos articulando receber o título de utilidade pública municipal. A gente também já quer chamar atenção na Câmara de Vereadores, para a gente vir trazendo essa pauta. Começamos com a Casa de Gente, mas a gente também quer, de repente, daqui a pouco, transformar o Coletivo Bapho em um coletivo de utilidade pública municipal. Estamos pensando a segunda edição da Feira da Diversidade para dezembro. E pensando também em outros mecanismos, canais de comercialização dos produtos, canais de apresentação de ofertas, de serviços.

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1ª Feira Cultural da Diversidade, que aconteceu em 2019 | Créditos: Nicole Lima, Kimberly Koeche e Diony Sousa.

Entendemos que não podemos mais ficar à margem. E a gente precisa entender que hoje esse é o analfabetismo. O Paulo Freire, criando a educação popular, resolveu o problema do analfabetismo. E, hoje, a gente tem que entender que são outras carências, são outros analfabetismos, são outras leituras que a gente tem que ensinar. Tem que aprender e ensinar o tempo todo.

Hoje, empresas privadas e grandes corporações abraçam a causa LGBT, mas a gente sabe que isso faz com que o nosso horizonte revolucionário se dilua. Primeiro, gostaria de saber se vocês concordam ou discordam da minha afirmação. E, caso concordem, como vocês têm se organizado para não perder esse horizonte?

Diego: A gente aqui sempre manteve uma postura muito ética. A gente brinca que é de esquerda até na religião, porque aqui é um terreiro de quimbanda, então o toque fala que a gira é de esquerda. Mas fazemos a leitura de que talvez seja melhor isso que as empresas e as instituições fazem do que nada. É um acesso tão primário, mas ele é importante. Por exemplo, sai a propaganda da Natura. É melhor que saia a propaganda da Natura do que não saia nada. A invisibilidade mata muito mais, a invisibilidade exclui, oprime muito mais.

A gente vem falando desde o início da Casa de Gente sobre uma questão que é a do acesso. Muitas vezes, quem é mais do campo progressista perde a noção de que as pessoas — a grande massa, os pobres — não têm acesso. Não têm acesso à informação, não têm acesso à interpretação de texto, não têm acesso à internet direito. A gente pensa que é pouco. Sim, é pouco, mas pelo menos é acesso. Pelo menos, está acontecendo alguma coisa.

Alice: É pouco esse reconhecimento que nos é dado e é somente no Mês do Orgulho, porém, eu acredito que vai ser a gente entrando nesses espaços, nesse primeiro momento, para que depois as pessoas vejam e falem: “Nossa, essa pessoa ficou tão linda ali naquele comercial, por que ela não ficaria linda nesse outro comercial?” Assim, a gente vai caminhando, de pouquinho em pouquinho. Acredito que assim vai ser a nossa caminhada, como sempre foi, de muito pouco, muito devagar, mas está acontecendo.

Que nem aqui na nossa cidade, as coisas foram acontecendo devagar. Por exemplo, na minha escola, eu não sou uma mulher trans identificada, porém, na minha escola o meu nome na chamada é Alice, eu posso colocar o meu nome nas provas… Por quê? Por conta do meu nome social. E o nome social existe há muito tempo, porém só agora, que veio uma outra menina de uma outra cidade trazendo essa informação, podemos usar, antes eles não sabiam. Eles simplesmente falavam: “Não, você só pode ter o teu nome se você mudar o teu nome na identidade, senão a gente não pode colocar”. Depois de um tempo eles foram lá, aprenderam e colocaram. É assim, de pouco em pouco, eu acredito que é assim que funciona.

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Em 2021, o Transgrupo Jeanzinho Waltrick fez uma ação coletiva para a retificação dos nomes em cartório | Crédito: reprodução.

Diony: Existe uma questão, quando se trata desses espaços mais progressistas, mais coletivos, de uma cultura de você trazer um discurso muito teórico, de formação, onde a gente tem algumas pessoas que são responsáveis por trazer conhecimento e acabam, de certa forma, menosprezando as pessoas que fazem parte daquela comunidade, tidas como incapazes de produzir conhecimento, de produzir cultura. E a gente, de certa forma, vem reproduzindo isso nos anos iniciais. Eu não digo a Casa de Gente em si, porque, na sua essência, ela vem da educação popular e a gente tenta proteger essa essência da Casa de Gente para que esses outros discursos não acabem corrompendo a Casa de Gente enquanto educação popular. E aí, no período da pandemia, a gente refletiu muito. Foi um período de pausa enquanto atividades, mas a gente teve um bom período para refletir sobre o que a gente estava fazendo.

Aquela coisa de produzir: “Ah, vamos fazer uma palestra, vamos participar de um evento da universidade, prefeito está aplicando tal coisa”. Toda aquela coisa onde a gente acaba sendo atores em determinadas datas específicas, e o que acontecia? A gente começou a perceber que, ainda assim, as nossas pessoas estavam passando por violências, não tendo acesso a trabalho, a estudos, à formação, à educação. Esse período da pandemia foi muito importante para a gente se reformular e para pensar outras possibilidades, enquanto Coletivo e enquanto Casa de Gente.

Quando o Diego traz essa questão de pensar o espaço, o empreendedorismo social, de pensar um coworking, é justamente para a gente trabalhar essas possibilidades de gerar emprego para as nossas pessoas. Coisas que realmente vão trazer uma transformação efetiva para a vida dessas pessoas. Pensar a saúde da população trans, pensar acesso ao trabalho, acesso à educação, justamente para a gente pensar as nossas realidades. Às vezes, lá em São Paulo, lá em determinada região, essa questão de pensar ou refletir sobre as pautas sendo apropriadas por grandes empresas não seja tão importante, porque existem algumas possibilidades. Já aqui em Lages, para a gente, acaba sendo muito, dependendo da questão de como a gente pode trabalhar nessas possibilidades. Eu acredito que é um conjunto de várias coisas, mas é isso. A gente vem se reformulando e pensando justamente numa solução, porque às vezes, dada a realidade, não é o poder público que vai oferecer isso para nós, a gente vai ter que estar no espaço de disputa de narrativas.

Vocês falaram bastante sobre as andanças que têm feito, e algo que noto por aqui é que a gente anda e segue com essa preocupação: será que só estou falando ou será que o que estou dizendo está revertendo, de alguma forma, em participação social? Qual a avaliação que vocês têm feito sobre o quanto as pessoas aderem ao movimento a partir do Coletivo Bapho?

Diego: Olha, sinceramente, a gente tem focado mais nas pessoas e não em grupos, e não em espaços coletivos formais. A gente cansou de participar desses espaços, principalmente com as pessoas que a gente convivia, que eram as pessoas mais do campo progressista, de esquerda e tal. A gente parou de ver sentido por conta da invisibilização da nossa pauta.

A gente percebeu que não era obrigada a estar nesses espaços, então a gente tem filtrado muito onde a gente vai. Não queremos ser feitos de enfeite, a gente não quer ser bibelô de grupos para eles dizerem que amam a gente e que eles têm “vários amigos gays”, sabe aquelas conversas assim?

A gente consegue perceber um reconhecimento, tanto das pessoas quanto desses espaços, e estamos  pensando que vale muito mais a pena ir conversar com outros atores. É o que a gente vem buscando: outros atores. Aí a gente vai pensando em uma outra rede, com empresários, com o ramo da tecnologia, outros espaços para a gente tentar captar recursos, captar voluntariado.

A gente não quer ficar chovendo no molhado, discutindo com as mesmas pessoas, disputando espaços que a gente não precisa disputar, que deveriam ser espaços coletivizados. Não vamos lá para encher linguiça ou falar mais bonito que o outro. A gente não vai. A gente não quer falar bonito. A gente nem tem muita história bonita para contar. A cada dia é uma violência diferente, a cada dia derrubando um exército, a cada dia sendo humilhado, passando medo. A gente não tem que falar bonito, porque não tem nada de bonito para se contar, então vamos ser estratégicos. A gente entendeu isso.

A gente tem que aprender a jogar com o capitalismo. Não é que a gente consiga, mas, pelo menos, tentar. Pelo menos, se aproveitar de alguma coisa disso, não ficar chovendo no molhado. A gente tem que se valorizar, não tem que ser de quem não nos queira, a gente não tem que ficar brigando por determinados espaços, por exemplo. Não faz sentido.

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Bastidores das filmagens da websérie “Qual o teu Bapho?” | Crédito: Diony Sousa.

Diony: Esse reconhecimento e essa percepção vêm de olhar para a nossa própria história nesses anos de atividades. Ontem mesmo nós estávamos olhando alguma foto, e aí a gente vê como as pessoas se transformaram, como nós nos transformamos nesses últimos anos. Coisas que a gente achava que não seriam possíveis, hoje se tornaram possíveis.

Ter a nossa presidenta, a Luna, como miss ou mesmo ocupando esse papel de presidenta da Casa. A gente olhando as fotos da Feira, o Diego entrou, olhou a gente e falou: “Nossa, a gente é muito cara de pau mesmo”, porque a gente inventou todo o discurso e colou na cidade. Nós recebemos algumas sugestões para fazer uma Parada em Lages, mas fazer uma Parada em Lages seria só para a gente apanhar. Por que de repente a gente não traz essa questão cultural, por meio dos nossos coletivos e dos nossos artistas, para ocupar esse espaço e dialogar de outras formas com a população? Porque não adianta a gente ficar conversando entre nós, que era o que a gente fazia muito. “Ah, vamos fazer uma rodinha de conversa!”

Diego: Uma rodinha de punheta! Porque é onde fica um agradando o ego do outro para ver quem fala mais bonito, quem conhece mais teóricos. É um negócio que não dá! Vamos sair da rodinha de punheta, vamos dialogar com outras pessoas. Chega, chega de ficar se alimentando, querendo disputar, falar bonito, um dando palestra para o outro, a mesma palestra que todo mundo já sabe. Não, a gente não está muito a fim disso.

Vocês falaram sobre reconhecimento, o que é importante, mas eu tinha perguntado um pouco no sentido de saber como é quando vocês estão nas comunidades. As pessoas têm se sentido aptas à participação política a partir das ações de vocês?

Diego: É tão orgânico para a gente essa coisa de que não tem problema se relacionar… Aqui em casa, morava a Monyque e a Gaby, que eram duas travestis de rua, faziam ruão antes de vir morar aqui. A Gaby continua fazendo. Mas elas conviviam tranquilamente comigo e com a minha mãe, uma mulher católica de 50 anos. Para te dizer que essa convivência é muito simples. Quando chega alguém e pergunta como que chama tal pessoa, a gente aprendeu que é só dizer para perguntar para ela como ela quer ser chamada. Não é um problema. É por isso que eu falei dessa coisa dos coletivos, dos espaços formais, porque o problema está justamente aí e não no orgânico, não com as pessoas.

As meninas trans, por exemplo, não gostam de ir na balada LGBT que tem aqui na cidade, que é um pouco mais elitizada, porque lá elas são desrespeitadas enquanto identidade. Mas elas vão para o bailão, para o Bali Gode, para o Bailão da Amizade, que é onde vai a galera mais pobre, mais periférica e não sei o quê, e lá elas são tratadas como mulheres, tá tudo certo, ninguém desconsidera a identidade delas. E são espaços em que as pessoas não têm acesso à academia, a esse discurso todo. Não é difícil.

Essa coisa de educar as pessoas é simples. Educar até aprender a chamar pelo pronome, por exemplo. A gente pensa a Casa de Gente e todos os projetos como lugares de educação, então a gente tem que ter paciência, porque as pessoas não são obrigadas a saber lidar, saber tratar, saber falar. Se a gente está fazendo educação, educação também é educar para isso.

Diony: Eu, como estou em um outro lugar, com a questão das mídias sociais, com esse trabalho que venho desenvolvendo, percebo que esse canal é um potencial para a gente trazer mais pessoas para o nosso Coletivo. Às vezes, a gente faz uma postagem de material e as pessoas nos acessam por meio desses canais. Eu percebi também como a websérie contribuiu para essa educação. Muitas famílias com pessoas trans vieram nos acessar, principalmente adolescentes que estavam nos processos de descoberta de identidade, construção e tudo mais. Para mim, esses canais e esse tipo de formato contribuem muito para as nossas atividades, que foram de certa forma afetadas pela pandemia. Mas, agora, também já tem outros projetos, inclusive produção de conteúdo através de podcasts, de audiovisual, que a gente vem desenvolvendo enquanto planejamento, justamente para retomar essas mídias, que contribuem muito para a nossa visibilidade.

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Bastidores das filmagens da websérie “Qual o teu Bapho?” | Crédito: Diony Sousa.

Ser LGBT é muito solitário em alguns contextos e uma das saídas que a gente encontra é a organização coletiva. Vocês acreditam que vale a pena? E, se sim, de que maneira as pessoas que estão lendo podem fazer isso?

Diony: Um exemplo de como a gente acaba se invisibilizando quando não se une coletivamente é perceber que desenvolvemos a Feira e, no dia, conseguimos reunir umas centenas de pessoas que a gente nem sabia que estavam que se identificavam como parte da comunidade. Muita gente falou que queria participar, que queria fazer, que queria acontecer, então a gente percebe, por meio dessas ações e de outras, que é assim que a gente acaba unindo tudo isso.

Alice: No dia que a gente estava fazendo, veio gente que nem participava e chegou ali dizendo que iria ajudar, se sentindo confortável de estar junto, por a gente trazer essa questão da afetividade. As pessoas se sentem bem estando juntas. E é isso, é você se sentir bem.

Diony: Falando de forma bem particular, para mim, enquanto Diony, eu fui reconhecendo a importância do Coletivo com o passar dos anos. Como eu entrei, como eu me entendia enquanto parte da comunidade, na forma como eu me comunicava, me expressava, me posicionava nos determinados espaços, e eu digo que aqui, principalmente na Casa de Gente, aqui foi que eu descobri o senso de coletividade. Essa questão da afetividade, do acolhimento, do apoio que se tem, porque, de certa forma, é isso.

Claro que não são todas as famílias, mas na minha família eu aprendi de uma forma diferente. Aqui na Casa de Gente, eu aprendi a compartilhar. Quando o Diego diz que a gente morava lá com 12 pessoas, eu era uma dessas pessoas. Tinha criança, tinha hétero, tinha gay, tinha trans, tinha senhora de idade. Somos um exemplo de que a gente pode transformar toda a coletividade e trabalhar tudo isso sem que seja um problema. Sem que seja a partir da violência, sem todas essas coisas que são tão presentes na nossa cidade, que nos excluem, que nos violentam e, dependendo, até matam. Aqui, eu aprendi tudo isso e eu vejo que principalmente a questão política, se não for abordada de forma coletiva, a gente dificilmente vai chegar em algum lugar, dificilmente a gente vai conseguir transformar nossa realidade.

Diego: A gente é pobre, então a gente não tem acesso, não tem dinheiro, não tem recursos, não tem herança. A gente não vai ser herdeiro de pai rico. Tem gente, aqui entre nós, que tem muito menos. Tem gente que não tem nem pai. Tem gente que fica sem nada disso, que é expulso de casa. Para mim, a única saída é coletiva. É juntar para a gente poder ter o mínimo de acesso a qualquer coisa, para poder democratizar o acesso.

Não é nem uma questão de escolha. Não tem opção de escolha. Ou é coletivo, ou é coletivo, porque no individual a gente vai seguir morrendo, vai seguir invisibilizado, vai seguir sendo insignificante, porque a maioria hegemônica tem o controle, porque eles estão organizados, porque eles contam a sua história, porque eles registram a sua história, porque a história é contada por eles, do jeito que eles querem.

Eu sempre disse uma coisa, que é a questão de a gente se tornar nossas próprias referências. As nossas referências são héteros. Até as referências no relacionamento, as nossas referências são da tia, da mãe, da avó que apanhava do marido, que era traída e não sei o quê. E a gente continua reproduzindo, inclusive nas nossas relações, esse modelo, porque é a referência que a gente tem. Coletivamente, a gente pode construir outras referências. Descobrir outras coisas.

Que nem a Alice e as outras pessoas que transicionaram aqui na Casa de Gente. As pessoas vêm e elas conseguem transicionar e dizer quem elas são, construir quem elas são, e essa construção não é individual, ela é coletiva. Porque a gente é esse ser biopsicossocial, comunitário, coletivo, então a saída é coletiva. Não é uma opção. A gente não faz nada demais, a não ser fazer o mínimo possível.

Como acabaram de falar, é importante que nós sejamos nossas próprias referências. Se vocês quiserem compartilhar algumas referências de vocês, sintam-se à vontade.

Alice: As minhas referências são a minha avó de santo, que é a mãe de santo do meu pai de santo, que é uma travesti mais velha. Ela é uma pessoa assim que tem uma energia incrível. Onde ela chega, ela para tudo. Ela é a babadeira. E tem a Aninha e a namorada dela, a Nicole, que são um casal de mulheres lésbicas fotógrafas, aqui de Lages, e elas são incríveis. A Aninha lançou um clipe esses dias, porque ela também é cantora. O nome da música é Vênus e você tem que ouvir. É uma ótima música, uma música muito calma. Elas são algumas das minhas referências.

Diony: A Alice estava falando da Rafa, a avó de santo dela. Ela é uma referência para nós. Ela mora em Vacaria, no Rio Grande do Sul, mas toda vez que a gente está com ela, ou quando ela vem aqui, a gente percebe essa diferença de gerações. De certa forma, pode ser que as coisas não estejam tão boas agora, mas já foram tão piores. Hoje, a gente sabe da expectativa de vida de uma pessoa trans, principalmente mulheres trans, e ela é uma pessoa que superou essa expectativa. Ela está com mais de 50 anos, firme e forte. Nem tão firme, nem tão forte, mas está aí sendo referência para nós.

Diego: Tem a Gabriela da Silva, que é uma travesti lá de Tubarão. Ela fazia parte da ONG GATA. Ela defendeu a tese de doutorado agora, recentemente. Ela é professora aposentada da rede pública, professora do EJA, que é uma referência.

Posso falar da Elen Linth. Ela é cineasta, uma mulher lésbica negra amazonense, mas mora na Bahia. Inclusive, a Casa de Gente nasceu quando eu estava na Bahia junto com ela e a Riane Nascimento, que é a companheira dela, uma mulher quilombola, e elas tinham criado a Rede de Desenvolvimento Quilombola Eparrêi, que foi a inspiração para criar a rede de desenvolvimento comunitária.

Tem uma outra referência, que pode ser usada como exemplo, a Monique. Ela veio morar aqui logo que a gente iniciou a Casa de Gente, e morou aqui com a gente um ano. Monique, uma menina que sofreu muito na rua, com questão de droga, e que hoje está morando em Itajaí, que está trabalhando em algum lugar da Justiça por conta de um projeto, que é uma história de alguém que conseguiu superar a expectativa de vida dos 30 anos de uma forma muito forte. Ela também é uma das nossas referências e é uma referência daqui, uma referência própria.

Diony: A gente sempre olha para as pessoas, e talvez esse seja um problema, e a gente sempre olha para esse lugar de “vencer na vida” ou algo de sucesso. E, de certa forma, a gente também tem referências comuns. Assistir à websérie, por exemplo, também é olhar para nós e ver que nós estamos nos tornando referências para outras pessoas, a partir do momento que a gente conta a nossa história. Não vamos permitir que outras pessoas digam por nós ou que tirem o nosso protagonismo, porque a gente sabe que, caso contrário, sempre vai ter um velho branco de terno lá, assumindo os espaços de poder, tomando decisões por nós.

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    Joá Bitencourt é estudante de Jornalismo, pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e faz estágio obrigatório no Por...

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