Dissertação de mestrado da psicóloga Crissia Cruz, defendida em 2020, na Universidade Federal do Pará (UFPA), retrata parte dos dramas e esforços de profissionais da Santa Casa e da rede de assistência à mulher em situação de violência doméstica e sexual nesta porção da Amazônia brasileira. Neste dia 28, Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna e Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, é possível observar os dilemas de um país que reproduz opressões históricas. 

– Não é pelo fato de recorrer ao aborto que ela não está sofrendo. E isso é uma questão. Eu fiquei sabendo que, de toda a equipe, só tem um anestesista que concorda em fazer o aborto. 

Servidor: é o de segunda… 

Murmurinho entre os servidores concordando.

Servidor: …se ela chegar na terça, tem que esperar até a outra segunda pra poder fazer.

Servidora 4: aí é correr o risco de passar do prazo permitido em lei, e ela não vai mais poder fazer. Fico pensando que isso é um problema de gestão. […] a gente fica as madrugadas se batendo com essa questão tentando garantir um direito. E o que acontece: as pessoas têm as suas questões políticas, ideológicas, religiosas…

Advogada: …e têm todo direito de ter.

Servidora 4:.. mas a Direção tem a obrigação de garantir pessoas que deem conta disso, porque a mulher não tem nada a ver com isso. Então, só tem um anestesista? Contrata outro com a condição de que ele vá fazer. Coloca esse anestesista com sobreaviso, que ele possa ser chamado a qualquer dia da semana e receba por isso pra fazer. Alguma alternativa tem que ter pra essa mulher.

Servidor: Aí coincide: o dia que o anestesista faz, o obstetra não faz.

Servidora 4: Tem plantão que o anestesista aceita fazer e o obstetra se recusa.

Servidora 1: Mas eu acho que vai também contra o próprio Código de Ética. E isso é incoerente.

Servidor: Eles são respaldados pela liberdade, pela ideologia religiosa de cada um. Só que é um problema da instituição.

Servidora 1: Mas teu Código de Ética não te respalda para discriminar.

Servidor: Não, eu não falo em relação à discriminação…

Vários participantes falando ao mesmo tempo.

Servidor: Falo que não é um problema da lei do profissional [Código de Ética Médica], em si, mas chega a ser um problema institucional.

O relato está descrito na dissertação de mestrado “Assistência às mulheres que sofreram violência sexual: debates em um serviço de profilaxia e abortamento previsto em lei”, defendida pela psicóloga Crissia Cruz, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2020. A pesquisa retrata parte dos problemas e esforços de profissionais do programa de abortamento legal da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará e da rede de assistência à mulher em situação de violência doméstica e sexual. Dentre eles, a negação do procedimento por cerca de 95% da equipe médica.

::Leia também a entrevista que integra essa reportagem “Aborto legal e redução da mortalidade materna: faces da mesma moeda”::

Sobretudo, os dilemas são representativos de como a sociedade brasileira subjuga mulheres e meninas até mesmo dentro de instituições públicas e revelam o cenário de precariedade em políticas de saúde sexual e reprodutiva no país, gerando consequências dramáticas, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus. Neste Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna e Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, celebrados a cada 28 de maio, os resultados do estudo soam como um apelo rigoroso à defesa da vida de quem gesta.   

O Consorcio Latinoamericano contra el Aborto Inseguro (Clacai) produziu, entre março e agosto de 2020, o relatório “La Salud Reproductiva es Vital”, uma iniciativa para que gestores da região garantam o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) reafirmam ser direitos essenciais. Neste sentido, deveriam ser ininterruptos a meninas, adolescentes e mulheres os serviços relacionados à violência sexual; o acesso a contraceptivo de emergência; o direito ao aborto seguro para os casos previstos em lei; a prevenção e o tratamento de infecciones de transmissão sexual, incluído o diagnóstico e tratamento ao HIV e outras ITS; e o contraceptivo. Eles fazem parte do conjunto de obrigações do Estado quanto à saúde da mulher e a mortalidade materna pode ser um indicador confiável para medir as desigualdades, o nível de desenvolvimento, a qualidade e o acesso a serviços de saúde e assistência social.

As conclusões do relatório são um desalento. Para se ter ideia, a morte materna no Brasil sofreu um aumento de 13,1%, passando de 870 casos, no período de janeiro a junho de 2019, para 984, no mesmo período de 2020, conforme “Painel de monitoramento de mortalidade materna”, da Secretaria de Vigilância em Saúde, consultado no último dia 6 de maio. A sistematização da Anis – Instituto de Bioética, responsável pelo informe nacional, havia identificado, por meio do mesmo banco de dados, uma variação de 859 para 926, o que denota a atualização que a plataforma nacional tem tido e o prosseguimento do drama da morte materna no país.

Pelo “Painel de monitoramento de mortalidade materna” é possível identificar ainda que este aumento, no estado do Pará, corresponde a 53%: a mortalidade materna saltou de 47 casos, entre janeiro e junho de 2019, para 72 casos, no mesmo período de 2020.

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belém/ Foto: Cristino Martins/Agência Pará

Interditos sobre o aborto

A Anis menciona o levantamento realizado pela organização não-governamental Artigo 19, em parceria com a Revista AzMina e a Gênero e Número, e o que se tem é que dos 76 hospitais que, em 2019, declararam realizar aborto legal no país, apenas 42 afirmaram seguir realizando o procedimento em meio à pandemia do novo coronavírus. Uma redução de 45%. De acordo com o monitoramento, o Pará consta como um estado desprovido deste serviço, previsto em lei desde 1940 para os casos de gravidez decorrente de estupro e gravidez que represente risco de vida à menina ou mulher e, desde 2012, em caso de anencefalia fetal.

A Santa Casa não concedeu entrevista a esta reportagem, mas, por meio de nota, informa números gerais de procedimentos realizados nas três situações em que o aborto não é considerado crime. Em 2019, foram 51 procedimentos; em 2020, 57; e, entre janeiro e abril de 2021, 24.

O descompasso de informações e as barreiras para se falar aberta e publicamente sobre violência sexual e aborto são sintomáticos do quanto os temas são tabu na sociedade, gerando mais do que constrangimentos às equipes profissionais. O interdito velado sobre os temas revitimiza meninas e mulheres que, na maioria das vezes, nem chegam aos serviços a que têm direito, podendo se submeter de uma gravidez forçada ao aborto inseguro, sob o risco de morte.

A Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016), de Debora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, indica que “o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres”. Destaca ainda que há “maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, sendo que quase a metade delas precisou ficar internada para finalizar o aborto”.

Crissia Cruz é coordenadora do Núcleo Belém da Associação Brasileira de Psicologia Social e professora do curso de Psicologia da universidade Estácio. Tem uma trajetória acadêmica, da graduação ao atual doutoramento, dedicada a estudos sobre violência contra a mulher, saúde das mulheres e relações de gênero e sexualidade. Declara-se espírita, “acho que comecei no centro espírita antes de começar na escola”, e fala sobre impacto do tema no seu cotidiano.

“Entender a importância da legalização do aborto foi também um momento de me entender como feminista, com suas complexidades. E foi uma questão de quando eu estava no centro espírita, eu era evangelizadora. ‘Eu não estou levantando aqui uma bandeira, gente, não vou entrar distribuindo panfleto para os adolescentes. Estou querendo dizer que o aborto é uma questão de política pública. É disso que estou falando aqui entre os coordenadores’. Era um pouquinho complicado”, lembra.

A reportagem recorreu a mais de dez pessoas no intuito de obter entrevista sobre o tema com profissionais da Santa Casa e apenas uma aceitou. A resistência tem razão de ser. A monografia da psicóloga registra elementos históricos de constrangimentos especialmente a quem defende os direitos de meninas e mulheres. Relato expresso em uma das oito rodas de conversa – realizadas entre 2018 e 2019 – indica, precisamente: “Em função de que a gente era da equipe que fazia o aborto, a gente sofria ameaças de pró-vida, de enfim… escritas e ameaças… Os debates religiosos que sempre traziam a questão da excomunhão… essa coisa que era pesada. Cada vez que a gente tinha uma divulgação do programa no rádio ou na tv, ou cada vez que a Neila aparecia em um programa ou que eu aparecia no jornal para falar alguma coisa do programa, era um problema”.

A psicóloga e pesquisadora Crissia Cruz, nossa entrevistada, tem uma trajetória acadêmica dedicada a estudos sobre violência contra a mulher, saúde das mulheres e relações de gênero e sexualidade/Foto: arquivo pessoal

A participante remonta à origem do serviço na Santa Casa do Pará, em 1996, quando houve um seminário promovido pelo movimento de mulheres, em Belém. O evento contou com a participação do médico Osmar Colás, do Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro de Sabóia, conhecido como Hospital Jabaquara, na cidade de São Paulo, onde foi implantado o primeiro serviço de Abortamento Previsto em Lei do Brasil. Foi determinante a adesão da então coordenadora da Tocoginecologia do hospital, a médica Neila Dahás, e, em 1997, o programa teve início com a realização do primeiro procedimento.

A especialista chegou a representar a Santa Casa do Pará na reunião com integrantes dos serviços do Brasil, em 1998, ocasião em que se elaborou a versão preliminar da Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, do Ministério da Saúde. O documento normatiza e incentiva a implantação desse tipo de serviço no país. A primeira edição foi publicada em 1999.

“No caso do aborto, você nega”

Meninas e mulheres vítimas de violência sexual têm direito à profilaxia, um conjunto de serviços de saúde imediatos, que incluem a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e da própria gravidez. O assunto provocou a atenção da psicóloga Crissia Cruz, que foi residente na Santa Casa, hospital vinculado à Secretaria de Saúde do Estado e certificado para o ensino.

“A princípio, qual era minha questão: a dificuldade de lidar com a violência sexual. A pesquisa ganhou o tom do aborto, porque esse era um problema maior pra assistência. Em termos de profilaxia, você podia até prestar um atendimento de qualidade, porque você podia julgar a mulher, mas você prestava assistência. No caso do aborto, você nega, você trava o serviço”, argumenta a pesquisadora.

Integrantes das rodas de conversa relataram o drama vivido pela equipe diante da objeção de consciência alegada por obstetras e anestesistas, que se recusavam a realizar o aborto legal. De fato, o Código de Ética Médica versa sobre a autonomia do profissional e lhe preserva de práticas que contrariem sua consciência, conforme se lê no artigo 7 do capítulo I: “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje”. No entanto, o mesmo texto indica os limites dessa autonomia: “excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

A pesquisadora, mencionando a Norma Técnica, cita ainda o artigo 15 do cap. III do referido Código: “é vedado ao médico(a) ‘descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento’”. Portanto, negar o pronto atendimento à mulher em caso de abortamento pode, sim, recair em situações de negligência, omissão ou postergação de conduta que viole a lei, o código de ética profissional e os direitos humanos das mulheres e, “caso a mulher venha sofrer prejuízo de ordem moral, física ou psíquica, em decorrência da omissão, poderá recorrer a responsabilização pessoal e/ou institucional”.

Gestores também participaram dos encontros e demonstraram preocupação com o cenário. “O atendimento que é postergado para o outro plantão, ele deixa de ter o que diz o Código de Ética Médica, porque o que diz o Código de Ética é que, se eu não for fazer, eu tenho que passar para outro colega e passar pra outro plantão não é passar pra outro colega; eu ´tô tardando o atendimento da vítima, eu ´tô aumentando toda a repercussão psicológica, de traumas e tudo mais”, transcreve Crissia em sua monografia.

Foram expostos impasses e estratégias que se criavam para garantir o atendimento a meninas e mulheres no programa de aborto legal. “Aqui na Santa Casa funciona esquema de plantão. A gente tem uma equipe de segunda-dia, segunda-noite, terça-dia, terça-noite, pelo menos uma pessoa, um obstetra e um anestesista em cada plantão, que fosse responsável pelo atendimento a essa gestante. Conforme foi se passando os meses, como a realidade do serviço, que é de muitos contratos temporários, essas pessoas foram saindo”, prossegue o relato.

Os números são estarrecedores, como se pode notar em mais um trecho publicado na monografia. “O gestor é responsável em manter médicos sem objeção de consciência para realizar esse procedimento, mas pensa numa missão difícil. Hoje, eu tenho acho que 3 ou 4 médicos, num universo de 70 e tantos médicos, que não têm objeção de consciência em realizar o abortamento legal…”, contabiliza participante da roda, referindo-se a obstetras da instituição.

“A gente precisou chamar anestesista de fora […] para que nós tivéssemos dois anestesistas sem objeção de consciência”, complementa.

O envolvimento de integrantes da Comissão da Mulher Advogada (CMA), da OAB-PA, nos encontros permitiu a abertura de diálogos sobre ferramentas legais para viabilizar o serviço. O edital de Processo Seletivo da Santa Casa de setembro de 2019 estabelece como atribuição do cargo de Médico Ginecologista e Obstetra “realizar procedimentos de Abortamento Legal”, como forma de reafirmar aos profissionais o que lhes cabe como parte de suas funções na instituição.

Estado reproduz histórico de violência contra a mulher

A psicóloga ressalta existirem vários critérios para que a mulher possa realizar o procedimento de abortamento legal, como idade gestacional e relato da violência condizente com o tempo de gestação, identificado na ultrassonografia. Ainda assim, a mulher é passível de sofrer julgamentos, mais ou menos explícitos, durante todo o processo nas instituições públicas de saúde.

“A equipe toda é gente, tem seus valores, preconceitos, medos, inseguranças. E é formada em escolas que existem nessa lógica social”, aponta Crissia Cruz.

A pesquisadora discorre sobre uma série de legislações brasileiras na perspectiva de seus modos de subjetivação e de constituição da sociedade. Historicamente, a mulher é “considerada como um ser inferior, portanto, não detentora dos mesmos direitos que gozavam os homens, as mulheres estiveram subjugadas a eles com respaldo do Estado, o que tem implicação direta com a conivência ou mesmo autorização de violência contra as mulheres”. Exemplo disso são as normas penais vigentes no Brasil durante o período colonial, de inspiração medieval e católica, em que o crime de estupro era passível de ser sanado mediante o casamento com a vítima ou o pagamento de dote. Algo semelhante aqueceu o Senado, em março deste ano de 2021, com o PL 5435/20, denominado Estatuto da Gestante, de autoria do senador Eduardo Girão (Podemos-CE) e que institui uma espécie de “bolsa estupro”.

Crissia afirma que a desinformação, em si, não é generalizada entre os profissionais, mas há quem creia, incorretamente, poder ser preso, ser necessário Boletim de Ocorrência da mulher ou que a menina precise identificar o agressor.

Caminhos

“Nosso desafio, que foi um dos produtos da própria pesquisa, era de deixar um plano de ação como possibilidades de treinamentos amplos, que se torne necessário para equipe majoritária”, explica Crissia. O documento foi entregue à Santa Casa como uma solicitação do “Grupo de entidades governamentais e não governamentais que discutem o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual”. É assinado pela Comissão de Psicologia e Gênero do Conselho Regional de Psicologia (CRP-10); Comissão da Mulher Advogada da OAB-PA; Central de Equipe Multidisciplinar das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Pará; Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Pará;  Grupo Inquietações (UFPA); Associação Brasileira de Psicologia Social (Núcleo Belém); Coletivo Juntas; Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense; Projeto Rosas Aprisionadas; Articulações de Mulheres Brasileiras (AMB); e Grupo de Mulheres Brasileiras (GMB).

Entre as proposições, estão a criação do Comitê de Violência Sexual da Santa Casa; apresentação do protocolo de atendimento à mulher que sofreu violência sexual à equipe de Urgência e Emergência Obstétrica; divulgação do fluxo de atendimento à mulher que sofreu violência sexual; evolução no sistema de prontuário da instituição pela equipe multiprofissional na Triagem Obstétrica; curso de capacitação e sensibilização ao atendimento à mulher que sofreu violência sexual; e coleta de vestígios.

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