Em entrevista à jornalista Erika Morhy, neste 28 Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, a deputada federal Vivi Reis (Psol-PA) afirma a defesa da legalização do aborto e de ações que enfrentem as mortes maternas, que sofreram aumento durante a pandemia; mortes consideradas evitáveis. 

Mais do que garantir a meninas e mulheres o direito ao procedimento nas três únicas circunstâncias permitidas por lei no Brasil, a deputada federal Vivi Reis (Psol-PA) defende sua legalização como uma questão de saúde pública. Fisioterapeuta, a parlamentar é vice-líder do partido na Câmara dos Deputados e titular das comissões de Direitos Humanos e Minorias e de Seguridade Social e Família, em que integra a subcomissão de Combate à Violência contra a Mulher.

Neste Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna e Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, a parlamentar fala sobre o cenário da mortalidade materna no Pará; o serviço de abortamento legal; como se reflete na Câmara de Deputados a lógica que rege a sociedade a respeito da mulher; e qual a postura do Poder Executivo em relação aos direitos sexuais e reprodutivos.

:: Essa entrevista é um desdobramento da matéria “95% da equipe médica nega atendimento no único serviço de aborto legal no Pará”::

Erika: O aumento da mortalidade materna no Brasil, durante a pandemia, é apontado, no relatório de 2020, da Anis, como um dos reflexos de restrições aos serviços de saúde reprodutiva no país durante a atual conjuntura sanitária. Como você avalia este cenário com relação ao Pará?
Vivi Reis: A pandemia intensificou e tornou mais evidentes as desigualdades no Brasil nos aspectos de classe, gênero, raça e também em relação às diferenças regionais. No Pará, e na Amazônia de uma maneira geral, o acesso à saúde, que sempre foi deficitário, se agravou com o colapso do sistema, atingindo diretamente as mulheres mais pobres e as populações mais vulneráveis como as indígenas, quilombolas, ribeirinhas e as mulheres que vivem em assentamentos.

Vale destacar que a morte materna atinge principalmente as mulheres negras. Existe um mito de que as mulheres negras são mais fortes, aguentam melhor a dor, além do aspecto da própria desumanização das mulheres negras. Discutir a fundo as causas da mortalidade materna é uma pauta importantíssima, porque ela está ligada a múltiplos aspectos, que vão além da negligência do Sistema Único de Saúde e chegam até o racismo estrutural, passando pela falta de acesso às unidades de saúde. No Pará isso ocorre com muita frequência por dificuldades logísticas e estruturais nos municípios, fazendo com que as mulheres não consigam realizar um número mínimo de consultas pré-natal, e atravessando a própria condição social das gestantes. 

Ainda no que diz respeito à saúde e à vida das mulheres, principalmente as pobres e negras, ainda é preciso levar em consideração as mortes em consequência de complicações decorrentes de abortos realizados de forma insegura.

Nós temos altos índices de mulheres que não têm seus direitos sexuais e reprodutivos respeitados e a nossa luta constante é para assegurar esses direitos, que não estão só relacionados à pauta da legalização do aborto, como os setores conservadores tentam nos empurrar, dizendo que é só isso que a gente debate. 

Foto: Gabriel Gentil

A necessidade de ampliar o acesso aos serviços de saúde reprodutiva tem relação com o próprio direito das mulheres de poderem cuidar da saúde, inclusive no momento do parto e do puerpério. 
E aqui eu acho importante destacar um outro aspecto que é a necessidade de se combater a violência obstétrica, um termo que vem sendo negado pelo governo atual que já quis inclusive tirá-lo dos documentos oficiais como se a simples exclusão do termo levasse automaticamente à sua extinção. A gente não pode esconder a violência que é real, concreta e está no dia a dia das mulheres, é uma realidade que atinge uma em cada quatro mulheres no Brasil. A situação do Pará não é diferente da nacional, mas incorpora desafios ainda maiores por conta das desigualdades regionais. Nós precisamos reduzir esse vão. 

No Pará, apenas a Santa Casa, em Belém, oferece o serviço de abortamento legal, um dos direitos de mulheres e meninas vítimas de violência sexual. A que você atribui esta lacuna?
Nós sabemos que ele é muito limitado, principalmente por questões de ideologia conservadora ligada aos profissionais de saúde e falta de prioridade do governo Estadual. No fim, as mulheres acabam sofrendo um novo processo de violência causada pelo machismo institucional. 

O profissional de saúde precisa se desprender das suas crenças pessoais e se comprometer com a defesa da vida, da ciência e da sua própria atuação profissional, aí entra a obrigatoriedade de se dar formação adequada aos estudantes e trabalhadores de saúde. As pessoas que estão diretamente vinculadas a essa área precisam ter capacidade e condições de atender de forma humanizada essas mulheres que já sofreram violência sexual. 

O SUS não pode ser mais um reprodutor desse ciclo de violência contra as mulheres que já sofrem tanto. Uma mulher que procura um serviço para realizar um abortamento não pode ser criminalizada. 
O ideal é que nenhuma mulher seja obrigada a ser mãe, mas infelizmente, hoje, existe uma grande pressão psicológica sobre a questão da maternidade. Eu costumo dizer que o aborto é visto mais como um pecado do que um crime. Isso quer dizer que ele é muito mais julgado por um fundamentalismo religioso, que interfere diretamente na saúde mental da mulher, do que por questões legais. E esse é um dos fatores que entrava, junto com a falta de prioridade por parte do estado, a expansão dos serviços. 

A dissertação de mestrado da psicóloga Crissia Cruz, que teve como título “Assistência às mulheres que sofreram violência sexual: debates em um serviço de profilaxia e abortamento previsto em lei” e foi defendida em 2020, na UFPA, aponta que as tensões vividas dentro do programa da Santa Casa e da rede de assistência à mulher são, essencialmente, fruto da lógica que rege a sociedade a respeito da mulher. Como a Câmara de Deputados tem expressado essa lógica? Como você tem se posicionado e se sentido neste processo?
Neste contexto de um Governo Federal que é extremamente conservador, fundamentalista, inimigo da luta das mulheres, é muito mais difícil pautar qualquer tema referente à questão das mulheres e nossas lutas históricas.

Quando se fala, por exemplo, sobre o direito ao aborto seguro e legal, mesmo nos casos previstos em lei, surgem sempre dificuldades imensas em se fazer uma abordagem qualificada, porque há uma insistência em tratar o aborto como uma pauta individual, como se fosse apenas o direito da mulher sobre o seu corpo, quando na verdade está relacionado à saúde pública e coletiva.

Temos vários casos de mulheres e meninas que morrem por causa da prática do aborto inseguro, enquanto quem tem condições de pagar faz o procedimento em clínicas privadas ilegais. 

Na Câmara de Deputados e no Senado existem palavras que já são estigmatizadas. Qualquer projeto que paute questões como os direitos reprodutivos, o planejamento reprodutivo e até o direito à saúde da mulher encontram barreiras, porque esses termos são tachados como sinônimos de aborto. 

Mês passado, eu relatei um projeto da deputada Sâmia Bonfim sobre a Semana da Gestante, um projeto com um mérito excepcional que trata da capacitação dos profissionais de saúde, de orientação das gestantes, da criação de espaços para se debater os direitos da gestante, os direitos da criança, enfim, várias propostas muito boas e necessárias para a sociedade. Uma deputada altamente fundamentalista pediu para fazer um voto em separado, simplesmente para tirar alguns termos e trechos do projeto por achar que incorporavam “ideologia de gênero”, que é o termo que eles utilizam para tentar vetar qualquer projeto que seja voltado para a defesa do direito das mulheres, dos direitos humanos e até de lutas feministas. 

A parlamentar desconfigurou todo o projeto da deputada Sâmia Bonfim, relatado por mim, e escreveu outro relatório com um conteúdo superficial, inferior à proposta original. Quando nós, parlamentares feministas, que são aliadas dos movimentos, que têm esse histórico de relação com os movimentos sociais, pautam projetos como esse ou relatam como foi o caso, os olhares dos deputados e deputadas fundamentalistas se voltam para vetar. 

É muito importante que haja uma mobilização popular, que mostre a necessidade destas pautas nos espaços do Congresso, porque essa política conservadora acaba se isolando na anticiência, no negacionismo e tudo isso é reforçado pelo Governo Federal. 

Foto: Gabriel Gentil

O mesmo trabalho acadêmico aponta que o histórico desta lógica sobre a mulher e o sentido do estupro ainda fazem eco nos dias atuais, a exemplo do Projeto de Lei do “Estatuto do Nascituro”, de 2007. Em março de 2021, o Senado esteve em vias de votar o PL 5435/20, denominado Estatuto da Gestante. Na sua avaliação, qual o papel do Poder Legislativo neste momento?
Eu, como parlamentar, defendo declaradamente a pauta da legalização do aborto e entendo que essa legalização está diretamente relacionada com a saúde púbica. Não é só uma vontade pessoal, mas uma demanda coletiva e necessária. Hoje nós temos que ficar muito vigilantes, porque a todo momento tentam desenterrar projetos que atacam direitos já conquistados. 

Recentemente, tentaram trazer à tona novamente o Estatuto do Nascituro, a bolsa estupro e outros tantos projetos que nós sabemos bem o que pretendem. Projetos que querem forçar as mulheres a assumirem uma maternidade compulsória. E a maternidade não pode ser compulsória. A maternidade tem que ser uma escolha vivida na sua plenitude. Também não pode ser romantizada, porque a maternidade também tem suas limitações, seus problemas.

E esse é um debate que precisa ser enfrentado. Ao contrário do que se fala, não seria tão onerosa para o SUS a legalização do aborto.

Hoje se gasta muito mais com o tratamento de mulheres que sofreram complicações decorrentes de abortos inseguros do que gastaria com um procedimento seguro, com acompanhamento multiprofissional.

Países que já legalizaram o aborto hoje apresentam uma queda no número de procedimentos realizados e isso significa que, ao contrário do que tentam impor como verdade, a legalização do aborto diminui o número de procedimentos realizados, porque as mulheres vão ter um acompanhamento que vai garantir mais acesso à informação.

Quando a gente fala em educação para decidir, contraceptivo para não engravidar e aborto legal para não morrer, isso é mais do que uma palavra de ordem. É a luta por uma política associada aos cuidados de saúde. Não se trata apenas de liberar o aborto. É a construção de critérios. Não estamos falando aqui de abortamento, por exemplo, nos últimos três meses de gestação. Nós estamos falando em legalização de um procedimento com um teto para realização, com acompanhamento psicossocial, baseado em estudos científicos. 

 A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a dizer, em 2019, que “as meninas lá são exploradas porque elas não têm calcinha, não usam calcinha, são muito pobres”, em referência ao índice de estupro no Marajó. Por sua vez, o Ministério da Saúde tem criado embaraços ao serviço de abortamento legal, como ilustra a Portaria 2.282, exigindo que os médicos dos serviços acionem a polícia em caso de estupro. Como você avalia a situação do Marajó e a postura do Poder Executivo no sentido de políticas para as mulheres?
A ministra Damares Alves personifica a política do Governo Federal para as mulheres e os direitos humanos. É importante a gente pautar esse debate, porque é alguém que, mesmo sendo mulher, não representa a pauta feminista. Quando a Damares fala que as meninas do Marajó sofrem violência sexual porque não usam calcinha, ela está culpabilizando a vítima por um problema que é muito maior e que tem que ser combatido por meio de políticas públicas e por uma pressão coletiva para que a realidade da região seja vista de forma muito mais ampla. 

É preciso ter a compreensão de que existem problemas inclusive que são estruturais, reflexo de uma sociedade que é patriarcal, que é misógina e que é racista também. Nós temos que buscar mecanismos para modificar essa realidade com propostas que incorporem a garantia de direitos e a mudança da realidade econômica da região, porque hoje o que a ilha do Marajó precisa não é de uma fábrica de calcinhas. As crianças precisam ser vistas como crianças, precisam ter direito ao brincar, a uma educação de qualidade, a alimentação de qualidade.

Hoje, a realidade terrível é que muitas crianças são inclusive entregues para a exploração sexual pelas famílias em troca de comida. E não sou eu que está relatando isso. Temos vários casos absurdos nesse sentido e que futuro estamos garantindo para essas crianças? Isso é bem preocupante e precisamos atuar diretamente nas causas. Sobre essas questão, eu tenho debatido com a equipe do mandato a construção de um projeto de lei voltado ao combate à violência sexual contra meninas e que contribua para a reversão desta realidade.

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