Mais de 120 propostas de legislação sobre Políticas do Cuidado estão em tramitação no Congresso Nacional, segundo o Grupo de Trabalho que trata sobre o tema. Os projetos de lei (PLs) abordam, por exemplo, a contagem desse tempo de trabalho para aposentadoria ou remição de pena, além da inclusão de dados no Sistema de Contas Nacionais. O Catarinas reuniu PLs que exemplificam como o tema está sendo debatido no Congresso Nacional.

O Grupo de Trabalho Política de Cuidado na Câmara, criado pela bancada feminina, realiza um levantamento dos projetos que estão em tramitação sobre o tema para contribuir com a Política Nacional de Cuidados. Conforme fontes do governo ouvidas pela Agência Pública, a proposta de projeto de lei elaborada pelo Executivo será enviada ao Congresso Nacional até o final de maio.

O cuidado é definido como o trabalho de manutenção da vida, envolvendo tarefas como cozinhar, limpar a casa, cuidar de alguém doente, auxiliar nas tarefas escolares e amamentar.

De acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, se esses esforços fossem devidamente contabilizados, representariam 13% do Produto Interno Bruto brasileiro. Esse valor é de 8,5% quando consideramos apenas o trabalho realizado por mulheres.

“É um número de destaque, mas não há o reconhecimento em virtude de todo o machismo e racismo que estão atrelados à forma de organização da nossa sociedade”, aponta Stella Francisca do Nascimento, advogada integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), organização que contribuiu com o PL 1028/2024, que trata sobre contabilizar trabalho do cuidado para remição da pena.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, as mulheres dedicam quase o dobro do tempo do que os homens aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos. O resultado desse cenário é que as brasileiras estão esgotadas, conforme pesquisa da ONG Think Olga

Nana Lima, diretora da ONG, compartilha que a pesquisa identificou como as brasileiras não conseguem ter tempo para descansar, lazer e autocuidado, o que afeta diretamente a saúde mental.

Arte: Rafaela Coelho.

“Olhar para o cuidado como algo que gera essa sobrecarga e impacta a saúde mental das mulheres se faz urgente para distribuir o trabalho, apoiá-las, criar políticas públicas que de verdade aliviam essa sobrecarga. Somente assim poderemos iniciar a melhoria da saúde mental das mulheres brasileiras”, ressalta.

Desafios

A diretora da ONG cita que um dos desafios atuais em relação ao trabalho do cuidado é a desprivatização. Ela destaca que, mesmo sendo realizado de maneira individual e privada, é essencial que seja reconhecido como um direito e que políticas públicas sejam implementadas para oferecê-lo.

Outra questão colocada como central pela diretora da Think Olga é a necessidade de desfeminização do cuidado. “É necessário tirar esse entendimento social de que o cuidado tem que ser feito por mulheres e meninas, tanto quanto onde isso é um trabalho formal, reconhecido, ou também na esfera privada dentro das casas”, aponta.

Lima avalia que, apesar dos avanços positivos na área, como o tratamento do tema pela mídia, especialmente após sua inclusão na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2023, e a estruturação da Política Nacional de Cuidado, bem como os projetos de lei propostos por parlamentares, ainda é necessário fortalecer e estruturar as políticas públicas.

“Isso não pode ser uma pauta apenas de um governo ou de uma ideologia política. Sabemos que o cuidado precisa ser transversal a todos os ministérios, integrado a uma discussão sobre economia, trabalho e saúde”, destaca.

Inclusão no Sistema de Contas Nacionais

Em 2019, a deputada Luizianne Lins (PT/CE) propôs que o trabalho do cuidado fosse incluído no Sistema de Contas Nacionais, o que possibilitaria o uso para avaliação do desenvolvimento econômico e social do país e para a definição e implementação de políticas públicas. “Esta mulher deve ser vista como indivíduo que produz e contribui para o bem-estar da sociedade”, defende a parlamentar no PL 638/2019.

Cinco anos após ser apresentado, o PL ainda não foi aprovado em nenhuma das quatro comissões pelas quais deve passar. Na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher), a deputada Elcione Barbalho (MDB/PA) apresentou, em dezembro de 2023, um parecer favorável, que não foi votado. Barbalho não integra mais a comissão e o PL ainda não foi designado à nova relatoria.

Remição de pena

A deputada Erika Hilton (PSOL/SP) propôs, em março deste ano, que, em pedidos judiciais sobre execução penal, mulheres em regime domiciliar ou semiaberto poderiam reduzir o tempo de pena contabilizando o trabalho do cuidado. A remição de pena por trabalho ou estudo é parte uma estratégia de ressocialização e a cada 3 dias de trabalho ou 12 de estudo, ocorre a redução de um dia de prisão. O PL 1028/2024 sugere que 8 de horas de trabalho do cuidado sejam consideradas diariamente. 

“O reconhecimento do serviço doméstico como forma de trabalho válido para remição de pena representa passo importante na valorização de atividades laborais não remuneradas, especialmente aquelas realizadas por mulheres. Pode, ainda, contribuir para a reinserção social e econômica das detentas após o cumprimento das penas”, defende na proposta.

A Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) contribuiu com a elaboração da proposta, baseando-se no relato de casos que acompanharam e apoiaram. Stella Francisca do Nascimento, advogada integrante da Renfa e da Associação de Mulheres Todas Para o Mar, destaca que o PL irá impactar principalmente a vida das mulheres negras, que constituem a base da sociedade e frequentemente enfrentam dificuldades para retornar ao mercado de trabalho devido aos estigmas.

“É muito importante a garantia da remissão por meio do trabalho do cuidado para contemplar mulheres que estão na base da nossa sociedade, que é essa mulher que exerce esse lugar de cuidado. O projeto vai suprir uma lacuna legislativa, especificando e destacando a importância da economia do cuidado na nossa sociedade”, ressalta.

Para a advogada, é importante pensar e expandir o conceito da economia do cuidado para além do direito civil e do previdenciário, garantindo que a lei de execução penal possa observar esse cuidado de extrema relevância para a sociedade, sob a perspectiva de reparação.

“É de extrema importância que a gente possa ter isso reconhecido por meio de lei para que esse direito venha a ser observado, fiscalizado e garantido, de maneira que essas mulheres possam ter um pouco da sua pena reduzida”, complementa.

Em 8 de abril, o PL foi recebido pela CMulher e deverá passar também pelas comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Contagem para aposentadoria

O debate sobre a inclusão do trabalho do cuidado para aposentadoria está em pauta no Congresso Nacional. Em 2021, a então deputada Perpétua Almeida (PCdoB/AC) propôs que a criação de filhos biológicos ou adotados seja contabilizada no tempo de serviço para aposentadoria. O PL 2647/2021 defende que seja contabilizado um ano de tempo de serviço para cada filha ou filho nascido com vida e dois anos para cada criança adotada ou por filho biológico nascido com incapacidade permanente.

“Sabe-se que 1/3 das mulheres brasileiras em idade de aposentadoria não tem acesso ao benefício por não terem conseguido cumprir as regras do tempo de serviço. Essas mulheres trabalham todos os dias. Cumprindo jornadas extenuantes, não remuneradas, de cuidados de pessoas, suprindo a falta de políticas públicas. É necessário reconhecer a maternidade como uma função social”, defende o PL.

Em novembro de 2022, o parecer da então deputada Tereza Nelma (PSD/AL) foi aprovado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher). Agora, o PL está na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF), com relatoria da deputada Samia Bomfim (PSOL/SP). Também deverá passar pelas Comissão de Finanças e Tributação (CFT) e CCJ.

Também em 2021, a deputada Taliria Petrone apresentou um PL para que os cuidados maternos fossem considerados para aposentadoria. O projeto foi apensado ao PL 2691/2021, que trata sobre a mesma temática e tem autoria de Jandira Feghali (PCdoB/RJ), Professora Marcivania (PCdoB/AP), Dep. Renildo Calheiros (PCdoB/PE) e Alice Portugal (PCdoB/BA). A Comissão da Mulher e CPASF já aprovaram o PL, que aguarda parecer da deputada Laura Carneiro (PSD/RJ) na CFT, antes de seguir para a CCJC.

Licenças maternidade e paternidade

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 30% das mulheres não procuram um emprego devido às responsabilidades com o trabalho doméstico e de cuidados não remunerados. Entre as mulheres com filhos até três anos, esse percentual sobe para 62%.

A diretora da Think Olga destaca a ampliação da licença paternidade como algo necessário para igualar o trabalho do cuidado no Brasil.

“Quem decidir ter filhos no Brasil, seja um homem ou uma mulher, precisa ter esse tempo garantido por lei para cuidar do seu filho ou da sua filha. A ampliação da licença paternidade tira esse ônus e esse impacto negativo que tem na carreira das mulheres quando elas decidem ter filhos”, coloca.

Atualmente, a licença-maternidade é de 120 dias, ou até 180 dias, se a empresa for inscrita no programa empresa-cidadã. Já a licença-paternidade possui duração de cinco dias, com início a partir do dia do nascimento do bebê. Em alguns casos, pode haver prorrogação de 15 dias. Decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que, em casos de dupla maternidade, a mãe não gestante tem direito a cinco dias de liberação, prazo equivalente ao da licença-paternidade.

O PL 1974/2021, de Sâmia Bomfim (PSOL/SP) e Glauber Braga (PSOL/RJ), propõe uma licença parental remunerada de 180 dias às mães, pais e a todas as pessoas em vínculo socioafetivo para os cuidados necessários com a chegada de um bebê, criança ou adolescente em grupos familiares.

O projeto foi aprovado, em dezembro de 2022, na Comissão De Trabalho (CTRAB) e aguarda parecer da deputada Laura Carneiro (PSD/RJ) na CPASF. Também precisará passar pela CCJ e CFT.

Política Nacional de Cuidado

A Política Nacional de Cuidado é debatida por um grupo interministerial desde maio de 2023. O objetivo é assegurar o direito ao cuidado, promover a corresponsabilização social, garantir a autonomia e independência das pessoas que necessitam de cuidados e incentivar o bem-estar e a qualidade de vida.

Nana Lima, da Think Olga, defende a existência de uma legislação nacional, considerando a extensão territorial e social do país. “O significado do que é uma política de cuidado em São Paulo, numa zona urbana e central é diferente de uma comunidade ribeirinha no interior do Pará”.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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