Em meados de 2020, em plena pandemia, a ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, hoje eleita senadora pelo Distrito Federal, tratou de impedir uma menina de 10 anos, do Estado do Espírito Santo, grávida em decorrência de estupro, a realizar o procedimento do aborto legal. A criança só conseguiu acesso ao seu direito após ampla mobilização dos movimentos feministas, que por todo o país questionaram: “e se fosse a sua filha?” [1].
Já no ano passado também assistimos indignadas à juíza Joana Ribeiro Zimmer constranger uma menina de 11 anos grávida, no Estado de Santa Catarina, e obstacularizar seu acesso ao direito do aborto legal. Em uma das audiências a magistrada questionou à criança: “Você suportaria ficar mais um pouquinho com o bebê?”. Após denúncia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Corregedoria Nacional de Justiça passou a acompanhar a apuração dos abusos institucionais cometidos pela magistrada [2].
Iniciamos o ano de 2023 recebendo mais uma notícia desoladora de violência sexual, psicológica, pessoal e institucional. Mais um caso de uma criança violada, dessa vez uma menina de 12 anos do Piauí, que vem sendo impedida pelo Estado de realizar o aborto legal.
Conforme apuraram o Catarinas [3] e o Intercept [4], a menina piauiense, negra, de família trabalhadora, está em sua segunda gestação após estupros reiterados por parte de familiares e outros homens próximos da família. Na 12ª semana dessa gestação, ela foi levada ao hospital e expressou claramente sua vontade de interromper a gravidez. No entanto, apesar do procedimento ser previsto por lei, não conseguiu realizar o aborto e passou a ser exposta a uma série de tentativas de dissuasão e coação.
Hoje, a criança está sofrendo psicologicamente e se encontra em um abrigo de administração religiosa em Teresina – PI, com o filho de 1 ano, a quem trata como uma boneca, e já está na 28ª semana de gravidez. Ela precisou tomar medicamentos para ansiedade, mas ainda assim tentou o suicídio e realizou automutilações, segundo relatos de uma conselheira tutelar.
O caso, que corre em segredo de Justiça na 1ª Vara de Infância e Juventude de Teresina e que depois veio a passar para a 2ª Vara de Infância e Juventude de Teresina, poderia ser o enredo de um pesadelo, mas é um retrato real das múltiplas violências estruturais as quais nós mulheres somos submetidas cotidianamente numa sociedade machista e patriarcal, que se apropria violentamente dos nossos corpos e nos nega direitos sexuais e reprodutivos.
Tais violências são perpetradas inclusive por aqueles e aquelas que deveriam proteger e tutelar os nossos direitos, mas movimentam as engrenagens de opressão às mulheres.
Em outubro do ano passado, a juíza que atuava no processo realizou uma manobra sem qualquer base legal para nomear uma defensora pública para representar os interesses do feto. Essa previsão se encontra em um Projeto de Lei (PL) de extremo conservadorismo que tramita no Congresso e visa instituir o Estatuto do Nascituro, impedindo qualquer possibilidade de interrupção gestacional. Tentativas de aprovar leis com esse mesmo conteúdo, de base fundamentalista, ocorrem no país há cerca de 15 anos, na contramão dos direitos sexuais e reprodutivos, de toda produção científica e do debate político internacional.
Mas se o PL não foi aprovado – em virtude de forte oposição dos movimentos e parlamentares feministas – como podem juízes tratarem de impor um procedimento não previsto em nosso ordenamento jurídico? Não podem. Porém, foi com base no pedido da “defensora do feto” e da mãe da menina, que o desembargador José James Gomes Pereira suspendeu, em dezembro do ano passado, a decisão exarada pela 2º Vara da Infância e Juventude de Teresina autorizando a realização do procedimento do aborto legal.
É difícil expressar o que é mais absurdo e cruel nesse caso, pois a realização do aborto nos casos de estupro e de risco à vida da gestante sequer exigem qualquer decisão judicial.
Não há que se discutir a violência sexual, haja visto que estamos diante de um caso de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, no qual a violência é presumida. O caso só está judicializado em razão de uma resistência estatal em garantir um direito, previsto no artigo 128 do mesmo Código desde 1940, à uma menina, uma criança de 12 anos.
Leia mais
- 28 de setembro em defesa do direito ao aborto: saiba onde vão ocorrer atos no país
- O julgamento transformativo do STF sobre acesso aos banheiros para pessoas trans
- Nina Camargo quer cuidar de quem cuida em Garopaba
- Cuidar de quem cuida: as propostas de Marina Wirna para Blumenau
- Prof. Iza Alicerce defende a classe trabalhadora em Florianópolis
É ainda chocante que a Defensoria Pública do Estado do Piauí tenha anuído a essa infame manobra do Poder Judiciário, atuando em dois lados antagônicos, sendo um deles, digamos, uma ficção. De um lado, uma menina vítima de violência sexual, que tem seus direitos preservados pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais, de outro lado, um feto, que possui, conforme o nosso ordenamento jurídico, apenas uma expectativa de vida e de direito.
Numa pretensa rota de colisão de interesses, fabricada pelo próprio Juízo, criou-se a interpretação de que a expectativa de direito vale mais do que o próprio direito. Ou pior, tratou-se de considerar que a vida se inicia na concepção, sobrepondo os direitos do feto sobre os da criança, o que não encontra abrigo algum em nossa ordem normativa. Ao contrário, fere a proteção integral à criança instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal.
As magistradas envolvidas no caso parecem não só não se importar com a forma jurídica, mas também desprezam a proteção da criança viva e de meninas e mulheres vítimas de violência sexual.
O Estado pretende, assim, impor que uma menina de 12 anos, violentada, venha parir seu segundo filho. E, a cada dia que passa, essa criança tem seus riscos de vida ampliados. Não estão apenas negando acesso ao aborto legal, mas também ao aborto seguro. E não podemos esquecer que, segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil está entre os países onde ocorre grande parte dos abortos inseguros no mundo [5], que vitima todos os dias mulheres e meninas, a maioria delas negra, enquanto mulheres das classes mais altas se resguardam em procedimentos também ilegais, mas pelo menos seguros.
Já não bastasse a violência sexual, emocional e pessoal sofrida pela menina, agora ela é revitimizada pelo Estado. A gravidade do caso se destaca também em razão da tentativa de se produzir um precedente jurisprudencial contra as leis que protegem as meninas e mulheres brasileiras, um verdadeiro abuso institucional. O caso já foi inclusive denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – CIDH.
No dia seguinte à reportagem (31), a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL) acertadamente pediu ao CNJ para impedir que juízes e desembargadores venham novamente realizar a aberração jurídica que representa a nomeação de curadores para defender fetos em casos de crianças e adolescentes grávidas após estupro. [6]
É urgente que o CNJ crie um protocolo para que as e os magistrados lidem com causas relativas ao aborto sem violar os direitos das meninas e mulheres e sem recorrer aos seus próprios juízos morais.
Seguindo essa linha, o CNJ criou uma uniformização do procedimento para a entrega protegida de bebês para a adoção, que também teve como base o seu Protocolo para Julgamento sob a Perspectiva de Gênero de 2021 [7]. A nova Resolução CNJ n.º 485/2023 exige analisar se a mulher foi orientada sobre direitos de proteção, inclusive de aborto legal.
Vale lembrar que o Brasil é signatário da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres, devendo assim tratar de seguir as recomendações do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Nesse sentido, a Recomendação n.º 35 do referido Comitê determina o seguinte:
“Violações da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tais como (…) gravidez forçada, criminalização do aborto, negação ou atraso do aborto seguro e de cuidados pós-aborto, continuação forçada de gravidez, abuso e maus-tratos de mulheres e meninas que procuram informações, produtos e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, são formas de violência de gênero que, dependendo das circunstâncias, podem ser equiparadas à tortura ou ao tratamento cruel, desumano ou degradante”. [8]
Pois é disso que se trata. Até quando assistiremos meninas covardemente violadas serem novamente violentadas pelo Sistema de Justiça e impedidas de acessar o aborto legal, por meio de um falsário discurso moral de proteção à vida. A vida de quem? A vida da menina do Piauí e de todas as nossas meninas e mulheres importam!
[1] https://oglobo.globo.com/opiniao/e-se-fosse-sua-filha-24593032
[3] https://catarinas.info/juiza-nomeia-defensor-do-feto-contra-crianca-estuprada/
[4] https://theintercept.com/notas/estupro-menina-do-piaui-deputada-pede-cnj-proibir-defensor-de-feto/
[5] Estudo realizado pela OMS em parceria com o Instituto Guttmacher publicado em outubro de 2017 na revista científica The Lancet.
[6] https://theintercept.com/notas/estupro-menina-do-piaui-deputada-pede-cnj-proibir-defensor-de-feto/
[7] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf
.[8] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf