Em outubro de 2022, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ganhou destaque no noticiário nacional por conta da prisão de quatro estudantes por neonazismo. Um mês antes, uma ofensa racista contra uma aluna quilombola foi encontrada no banheiro da universidade, em Florianópolis (SC). Uma carta nazista, que pregava o ódio contra gays, feministas, pessoas negras, gordas e asiáticas foi entregue ao Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) na mesma época. Esses casos alertaram a gestão universitária sobre a urgência de implementar a Campanha UFSC Antirracista e Antinazista, além de uma política de enfrentamento ao racismo institucional

“Percebemos ser fundamental lançar essa campanha em que a universidade se posiciona como uma instituição que se quer antirracista e antinazista. Aproveitamos esse momento para mobilizar a comunidade universitária em torno desse debate. Foi formulada uma resolução de combate ao racismo na instituição, aprovada por unanimidade pelo conselho universitário em novembro do ano passado. Essa resolução define essas violências e estabelece uma série de medidas de combate a elas”, explica Luana Heinen, secretária de aperfeiçoamento institucional e doutora em direito. 

Um dos principais objetivos da campanha é divulgar os canais institucionais para realizar as denúncias – a Ouvidoria –, assim como visibilizar o andamento dos casos, o julgamento e punição dos responsáveis. Concomitante à campanha, a Resolução 175/2022 instituiu uma ampla política de enfrentamento ao racismo institucional, visando coibir, expressamente, quaisquer violações aos direitos humanos, visando a erradicação de atos discriminatórios e enfrentando as desigualdades raciais no âmbito da UFSC. 

Para a vice-reitora da universidade, Joana Célia dos Passos, o racismo e o neonazismo precisam ser apurados, mas ela também defende um processo educativo, pedagógico e preventivo para que essas práticas não ocorram. “A política de enfrentamento ao racismo institucional é o principal instrumento que nós temos hoje para assegurar que as situações de racismo e neonazismo tenham consequências. Temos um fluxo de denúncias e também de acolhimento das vítimas. Essa política também irá pensar além dos comportamentos no território UFSC, vai pensar o currículo, o acesso das pessoas a uma literatura diversa na biblioteca, em efetivar, de fato, as ações afirmativas no concurso público”, diz a vice-reitora, que tem uma trajetória dedicada à educação, ao feminismo e ao antirracismo

Para que não haja dúvida, a resolução normativa, no seu Art. 23, caracteriza o que não será tolerado: “São considerados atos de racismo toda manifestação que faça distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,  descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto, ou resultado, anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em igualdade de condições de direitos humanos e liberdades fundamentais, praticada no âmbito universitário e que recorra ao uso do arbítrio da violência, incluindo-se humilhação, assédio moral, sexual, emocional ou psicológico”. Alguns dos exemplos citados são o racismo interpessoal, religioso e linguístico; a injúria racial; a xenofobia; os discursos de ódio nacional, racial ou religioso; a apologia ao nazismo e antissemitismo. 

“As violências vão sendo construídas e permitidas aos poucos. Quando autorizamos microviolências, contribuímos para que elas se tornem macro. Quando temos uma instituição que silencia, que não apura ou olha para a situação, estamos autorizando. Quando dizemos que não toleramos, que repudiamos e apontamos os caminhos para a apuração e responsabilização, estamos dizendo que não é permitido. Colocamos um limite simbólico fundamental”, explica a jurista Heinen.  

Vice-reitora Joana dos Passos em frente ao cartaz de divulgação da campanha. Foto: Bianca Taranti.

Universidade aposta na responsabilização para combater práticas racistas

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 aponta que Santa Catarina é recordista em casos de injúria racial. Em 2020, foram feitos 2.908 registros, sendo o estado com a maior taxa a cada 100 mil habitantes. Em 2021, 2.408 casos foram formalizados, deixando SC com a segunda maior taxa. Por outro lado, o Tribunal de Justiça catarinense aponta que somente 133 casos de injúria racial chegaram ao Poder Judiciário, de agosto de 2018 a agosto de 2021. No mesmo período, 122 pessoas foram condenadas pelo crime.

Diante desse cenário, uma das apostas da universidade com a campanha foi a divulgação dos canais institucionais que recebem as denúncias, o aprimoramento no fluxo das mesmas e o esclarecimento sobre como são realizadas as apurações. Segundo a Ouvidoria, o canal oficial de recebimento das denúncias na UFSC, o efeito foi imediato. Apesar de ainda não terem um levantamento oficial, após o lançamento da ação, o setor afirma que recebeu mais denúncias, se comparado com períodos anteriores. 

Quem deseja formalizar uma queixa, deve registrá-la na plataforma Fala.Br, que serve para acompanhar as manifestações e ter acesso às diferentes informações sobre o caso. Para denunciar, é importante ter elementos mínimos de materialidade e autoria com referências a data, local e pessoas envolvidas. A universidade se encarrega de apurar a responsabilidade administrativa, mas a responsabilidade civil e criminal deve ser averiguada nas devidas instâncias.  Quando a conduta for caracterizada como crime é necessário registrar boletim de ocorrência na Secretaria de Segurança Institucional (SSI), presencialmente ou por meio de formulário digital. No Brasil, a Lei nº 7.716, de 1989, prevê como crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, bem como formas de divulgação do nazismo. 

“As punições previstas nas resoluções da universidade e no código penal para todos esses crimes, precisam ser aplicadas, porque elas contribuem para que a responsabilização desse sujeito se dê. A punição faz parte do processo de responsabilização, que envolve o elemento simbólico de comunicar publicamente que isso não pode acontecer, mas também inclui aplicar as penas previstas. Faz parte dos nossos mecanismos institucionais que não são perfeitos, mas é o que temos para colocar um limite para a violência”, afirma Hein. 

Clique aqui para saber como denunciar o racismo e o nazismo na UFSC.

A Ouvidoria é o canal oficial de recebimento das denúncias na UFSC. Foto: Bianca Taranti.

UFSC amplia políticas educativas e preventivas para combater violência 

Mesmo com o esforço da administração em repudiar publicamente qualquer tipo de violência, no início deste semestre mais um caso, dessa vez de misoginia e homofobia, foi exposto por um grupo de pesquisadoras mulheres e LGBTQIA+. Elas denunciaram o comentário de um doutorando do Programa de Pós-Graduação em Química (PPGQ). Ele teria dito que alguns problemas que estariam ocorrendo na instituição acontecem “porque o laboratório está cheio de mulheres e bichinhas” e que “quando só tinha homens isso não acontecia”. 

Para evitar situações como essa, a UFSC prevê o desenvolvimento e a ampliação das políticas, programas e ações de caráter pedagógico, preventivo e permanente à comunidade universitária. A intenção é que o enfrentamento ao racismo seja estrutural e transversal. Entre as inúmeras ações previstas, estão a garantia do cumprimento da reserva e a ocupação das vagas por candidatos negros, quilombolas e indígenas em concursos públicos, processos seletivos simplificados para servidores e a proposta de diretrizes para implementação de cotas epistêmicas nas matrizes curriculares, garantindo o uso de autores fora do eixo eurocêntrico em todas as áreas de conhecimento.

“A campanha tem sido nesse sentido de letramento racial, com medidas educativas e ampliação das ações afirmativas. Já tínhamos ações afirmativas nos concursos públicos, mas precisamos prever em todos os editais da instituição, seja por meio de bolsas ou de transferências. Também nos espaços deliberativos, nas comissões que são formadas pela instituição. Essa resolução aumenta, sobretudo, a presença de pessoas que fazem parte de grupos que são alvo do racismo estrutural ou pontualmente”, explica a secretária de aperfeiçoamento institucional.  

Um serviço de atendimento às vítimas de violência, vinculado à Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe), criado na atual gestão, também saiu fortalecido com a recente normativa. Ele deve garantir o acolhimento às vítimas, oferecendo escuta, atendimento psicossocial, orientação e acompanhamento da pessoa na vida estudantil e laboral. O serviço vem sendo estruturado, com a atuação de uma enfermeira e um psicólogo, que trabalham na criação de protocolos para que os servidores da universidade saibam como atender e encaminhar pessoas que venham a ser vítimas de violência. 

“São mecanismos que nós estabelecemos para que a comunidade universitária se sinta mais segura, porque não tem sido fácil ser mulher, negra, trans, lésbica, em um espaço acadêmico. Todo dia é um conjunto de enfrentamento que essas pessoas precisam fazer para se manter, isso é responsabilidade nossa. A universidade não pode ser esse lugar que produz tanta violência. Embora ela seja parte da sociedade e a sociedade seja violenta. Mas precisamos amenizar essa dor, esse sofrimento, e buscar, pela educação, formar as pessoas para a convivência”, afirma Passos. 

Ligada à política de enfrentamento ao racismo institucional, está sendo construída a Cátedra Antonieta de Barros: educação para a igualdade racial e combate ao racismo. Com o objetivo de combater o racismo nas suas múltiplas dimensões e promover a educação para a igualdade racial, ela deve reunir professores(as), pesquisadores e estudantes com atuação em pesquisa e extensão relacionados ao tema. A iniciativa será submetida à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).  

“Ela terá a função de subsidiar a formulação de políticas públicas, seja dentro ou fora da UFSC. A cátedra é para uma rede de universidades, porque o que nós queremos é criar um selo de universidade antirracista. Se a universidade atender a determinados critérios, que possam ser avaliados, ela poderá receber o selo de universidade antirracista. O antirracismo precisa ser mais do que uma bandeira, precisa ser uma ação efetiva das universidades”, defende a vice-reitora.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

Últimas